quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Vidas Drogadas - 3º Capítulo e... notas soltas !


III



Nesta quinta-feira, 8 de Outubro de 1998, Vera, que passara a noite a cismar com o futuro e a tentar desliar o tão embaralhado novelo da sua vida, só se ergueu às nove e meia para ir a Larochette falar com patrão. Agora, mais que tudo, e por muito que lhe custassem as críticas e as piadas recriminatórias, o trabalho era a


E se nem a prisão lhe conseguiu roubar a Liberdade e a evasão que o sonho procura, a quem nele acredita indomitamente, não seriam as coscuvilheiras das colegas ou más línguas justiceiras que a demoveriam dos seus nobres propósitos ou a impediriam de alcançar a felicidade por Deus prometida à Humanidade.única chave que lhe podia entreabrir as portas do inferno para, depois de uma efémera e obrigatória passagem pelo purgatório, poder aspirar e sonhar, como qualquer mortal, com o paraíso.

Enquanto conversava com a empregada, vendo a Brasserie encher-se de gente, o patrão, que começava a sentir o seu coração frio entrar em ebulição e apiedar-se com a narração plangente da empregada, sugeriu-lhe:

E, se em vez de amanhã, vestisse já o avental, Vera?

Está a falar a sério, senhor André?

Ainda duvida, madame?


Não, mas, como tencionava ir às compras, vim toda pintada e…

Melhor! Assim os clientes comem com mais vontade! atalhou jovialmente o patrão, acenando a um amigo que passava de cheque na mão para a Banque Internationale, que fazia paredes ameias com a Brasserie de l’ Ernz Blanche.

É, tem razão! aceitou a empregada.

Carminda!!! gritou o luxemburguês de origem espanhola.

Sim, patrão!

Vá buscar um avental à Vera e, por favor, ceda-lhe o seu lugar na caixa, porque ela não está preparada para ir para a cozinha!

Com certeza! aceitou desdenhosamente a divorciada, fustigando de soslaio a criminosa com um olhar polvoroso.

Empiscando à Vera na passagem, o patrão retirou-se para não ouvir os insultos sussurrantes que as cunhadas foram trocando discreta, mas venenosamente entre elas, enquanto a azáfama do meio-dia não dissipou o rancor odioso que morava nas suas cabeças ociosas.

Pelas treze horas, surgiu no terreiro um rapazito barbudo que começou a acenar e a gesticular jovialmente na direcção da caixa para desviar a atenção da Vera da gaveta dos trocos. Como ela não lhe passasse cartucho, encheu-se de coragem e, esticando as sobranc

elhas espessas, ajustou a boca entre as palmas das mãos e chamou baixinho:

Ó madame! Ei!…Madame!

Como ninguém lhe respondesse, berrou zangado:

Vera!!

Tchut! Fala mais baixo, Valdir! sussurrou a empregada, fazendo menção de se abeirar discretamente dela.

A senhora Dora quer que a madame passe lá por casa!

Porque? Há novidades, Valdir?

Novidades?! Que novidades? Eu não sei de nada, Vera! declarou o in

ocente, embasbacado com a silhueta da Carminda que não tirava o olho dele.

Está bem, diz à senhora Dora que eu irei ter, logo que possa. Obrigada!

Tchau, madame!

Tchau, Valdir! bradou grata, esboçando um sorriso tão brilhante que fez o coração do simplório pular de alegria, narcotizando-o para o resto do dia.

E, ajustando a casaca de plástico com reflectores nocturnos, o lusitano deitou as mãos à carreta e lá se foi pensativo pela calçada.

O Valdir é um homenzinho que, pela sua simplicidade e uma certa ingenuidade espiritual, se torna o bombo da festa do chico-esperto saloio que, mais não tendo para

dizer ou escarnecer, passam a vida a implicar com o pobre rapaz.

Baixinho, de corpulência franzina e débil estrutura mental, o Valdir ficou órfão em tenra idade. O suicídio do pai, alfaiate e amante do desporto, deixou-o ao Deus dará, porque a mãe, a braços com o dificílimo e árduo sustento da família, não tinha um minuto a perder com mimos, porque era de pão para a boca que a sua prole necessitava. No Fielser Stuff, café onde está hospedado, Valdir já faz parte da mobília e da quezília quotidiana. Raros é o compatriota que, tomando-o por um idiota, não lhe acizente a mioleira. Basta dizer mal do Benfica, para que ele salte logo aos arames, mas a zanga é passageira e, ficando-se pelas palavras, quase sempre termina com a barriga dos contentores encostada ao balcão, para gáudio das empregas da Ana e do Zé, os patrões, a quem complacência reinadia sempre caiu como mel no goto dos compatriotas, que fazem do café a arena das suas embriagadas e alteradas tertúlias desportivas, quando não é do s

exo fraco e dos azares da vida que se fala. Depois de passar de patrão em patrão como uma moeda de troca, Valdir, que herdara do pai a mania dos futebóis, conseguira um lugar de faxineiro municipal, profissão que orgulhosamente exercia desde que ficara sem o rendimento mínimo garantido. Pequeno e modesto, o Valdir tem, sem dúvida, uma alma gigante de generosidade, e a sua simplicidade vale-lhe o mais carinhoso afecto da comunidade, que muito se alegra de o ver brincar com os meninos da escola como se fossem homens da sua idade! Mas como seria bem melhor o mundo, se mais Valdires houvesse por toda a parte! Assim, até nem seria preciso muito dinheiro, engenho ou arte para que este planeta azul deslizasse sobre ouro!

À tardinha, como as mesas estivessem desertas, o senhor Andrez empiscou à

empregada, que ajudava as colegas a limpar as bancas da cozinha e, apontando para o relógio, despachou-a discretamente para a retaguarda, onde a autorizou a largar o seu posto de trabalho mais cedo, a fim de poder ir ao supermercado fazer as compras de que lhe falara de manhã.

Largando o avental, Vera nem se lembrou de pentear os cabelos e enxugar o rosto suado. E, pegando na bolsa, atravessou a estrada, desaparecendo pouco depois no Mazda 123. Ao passar diante do Fielser Stuff, não se apercebeu dos acenos e dos sorrisos que o Valdir lhe lançou jovialmente até a perder na esquina da rua do Pão. Obcecada, ela só pensava nos chocolates que havia de comprar para a filha nas Caves de Portugal, que ficava cinquenta metros mais a cima, mesmo em frente da farmácia.

Servida pela Paula, a caçula do primeiro ensaiador dos Campinos do Ribatejo de Larochette, o mais célebre rancho folclórico juvenil português do Grão Ducado, que casara com o Noribal, um perspicaz jogador de sueca transmontano da Campeã, a Vera, que deixara o motor ligado, agarrou-se ao volante, apressou-se a carregar no acelerador e a desaparecer na embocadura da rua Michel Rodange, o Camões luxemburguês, onde morava a senhora Dora.


Reconhecendo o ruído ronronante da viatura, a ama colou o dedo sobre os lábios para impor silêncio às crianças e gritou:

Abra! A porta não está trancada!

Incomodada pela vizinha, que a espiava da esquina da rua, Vera entrou de roldão e sem prestar atenção e quase ia atropelando a menina que se encontrava no meio do corredor sombrio.

Desculpa minha…Florbela!!! Oh, obrigada, meu Deus! És tu, Florbela? explodiu atónita, baixando-se instintivamente para abraçar e cobrir de mil beijos desesperados e langorosos a filhinha.

Para onde foste, que demoraste tanto, mamã?? questionou a menina.

Fui para longe ganhar sussú para a Barbie, minha querida!

Para longe?! Muito longe, mamã??

Sim, Florbela, eu o teu papá fomos para muito longe!


E o papá? Ficou em casa a fumar e a brincar com as agulhas?

Não, filha, o papá mandou-me embora de lá para cuidar de ti!

E o papá ainda vai demorar muito, mamã?

O tempo que Deus quiser, filha, mas…tu estás muito linda! Diga, senhora Dora, a Florbela portou-se sempre bem ou não? questionou curiosa por cima dos caracóis da criança, empiscando para disfarçar.

Ah! A sua Florbela foi dar um passeio à cidade e veio de lá uma mulher feita, D. Vera! revelou a ama, acariciando a menina.

À cidade?! Qual cidade? Então quer dizer que ela não esteve aqui? inquir

iu espantada.

Como a madame foi para longe, a Florbela quis ir à sua procura pela cidade, mas só lá viu crianças! respondeu a senhora, fitando a criança.

É verdade, Florbela? insistiu a mãe.

Sim, mamã, na casa grande há muitos meninos e meninas e mesas muito grandes, quartos muito grandes e panelas muito grandes…

Panelas muito grandes?! Não me digas que é para cozer o João Ratão da Carochinha?

Oh! És bem tola, mamã! As panelas grandes cozinhar a sopa e as batatas e as couves e as cenouras e o arroz! Onde é que já se viu os meninos e as meninas comerem ratos? A minha mãe parece não vem muito boa de lá longe, pois parece, mamã Dora? argumentou desenvolta, levando o indicador à cabeça.

E gostaste de ter ido à cidade, filha?


Muito mamã! Sabes, eu gostei tanto que até prometi à madame Ginette que hei-de lá voltar com o Huguinho, o Miguel e a Celina. Vós ides lá comigo no carro do ti Florindo, pois ides, cambada? indagou com ares de chefe.

Ver a mesa grande e a sala grande e…

Sim, Celina, ver a casa das coisas grandes, ides ou não? insistiu séria.

Vamos! responderam as crianças em uníssono, arregalando os olhos de júbilo e lançando-se aos trambolhões uns para cima dos outros.

Cuidado, senão ainda vão parar ao hospital que também uma casa muito grande! avisou a senhora Dora, retirando a casaca da Florbela do cabide.

A propósito, com quem vieste da cidade, filha? perguntou Vera cur

iosa, ajudando-a a apertar os botões.

Com a madame Ginette e um senhor muito simpático que falava português como nós! — respondeu sem hesitar.

Um senhor simpático, Florbela?!

Sim, mamã, ele beijou-me e disse-me que te conhecia a ti e à Aline!

E como se chamava esse senhor simpático?

Hugo! Acho que se chamava Hugo, não é, mamã Dora?

É! O senhor que acompanhou a Florbela até aqui chama-se Hugo Amado! confirmou a ama, dando de olhos à Vera.

Vá, filha, diz adeus à senhora Dora até amanhã!

Hum! Tchau, Hugo! Tchau; Miguel! Tchau, Celina! disse a menina, acenando radiante, depois de beijar carinhosamente a mamã Dora no rosto.

Tchau!!! Tchau, Florbela!!! bradaram os companheiros, gesticulando felizes e reinadios.

E, orgulhosa por ir ao colo da mãe, Florbela lá se deixou arrastar até ao M

azda. Do balcão, a senhora Dora ainda a viu lançar-lhe um beijo pelo vidro de trás e desaparecer na calçada calcária da Michel Rodange, a rua onde nascera e brincara tantas vezes o poeta que lhe dera o nome.


Notas soltas,

confidências,

preocupações,

decisões...

Bissen, quinta-feira, 23-09-1999 6h:19’:15”.



Apoquentado por ânsia febril de dar corpo à tragédia da Vera e do Hugo, quase não consigo dormir. É assim comigo, quando se mete qualquer coisa na minha cabeça: não descanso enquanto não terminar o que comecei e de realizar o que sonhei. E será por isso que o meu secreto desejo de menino de bibe e pião ser advogado para fazer justiça e meter na prisão os larápios que puseram o meu pai à falência, mudando radicalmente a vida de sonho da filha do Sr. Macedo, que com aquela ousada ou suicidária coragem salvou de morte certa colegas e oficiais sitiados e sob intenso fogo alemão naquele 9 de Abril de 1918, engrossando a extensa lista dos heróis de la Lys? Sinceramente não sei!

É nosso destino passarmos por este mundo sem sabermos o que este dia nos reserva e se o de amanhã chegará a ser. Mas deixemos que o tempo se cumpra ou seja....

Há uma hora que não consigo recolar o sono perdido com a enxurrada que se abateu sobre estas paragens da Gutland luxemburguesa: impaciente de chegar ao fundo do túnel que as “Vidas Cruzadas ” abriu em mim, de nada me adiantam as voltas e reviravoltas na cama e o dorme da deusa que atura este barril de pólvora, que eu sou, me sussurra ao vido.

Desde segunda-feira à noite, que não paro de pensar e reflectir na maneira de engendrar este romance que ouvi na pacata aldeia de Ermsdorf, onde estivera para fotografar e filmar o casamento da Beth, filha de amigo de infância que sempre admirei, com o Joeri, um simpático holandês. Fui vender um terreno ao Gilberto e à Aline e, quando o negócio falhado, entrou a Vera pela sala dentro e, ao fim de quatro nostálgicas horas de reminiscência saí de lá com o prédio vendido e esta história comprada.

Enquanto a chuva batia no telhado e para fazer horas de levar a Sara, a caçulinha que acaba de escrever a sua primeira história em francês, à escola, revivi o percurso destes três dias de azáfama, em que tudo se engendrou no tear pensante que Deus me pôs sobre o pescoço.

Terça-feira de manhã expliquei à minha confidente as razões que me fizeram entrar perto da meia-noite no paraíso para onde viemos morar no mês em que a Vera foi atirada para o inferno de Schrassig e, como eu na véspera, também ela se comoveu. Encorajado comecei logo a matutar no enredo e a lutar para chegar ao fim do segredo e da verdade destes degradados filhos da diáspora lusitana.

Pensei e cogitei até a luz despontar neste enigmático pedaço de massa encefálica. Depois de deixar na lixeira a pubelle do SIDEC de Erpeldange os papéis e os plásticos armazenados ao longo de duas semanas, desci a Diekirch para falar com a Vera, mas deparei com o pai do Hugo numa garagem da rua de Bamerthal e parei para ouvir o homem educado e simpático com quem jogara vezes sem conta, mas que o meu impetuoso espírito revoltado matara mentalmente horas antes.

Cumprimentei-o e recordei-lhe as palavras que ele me dirigira meses antes no Banco Totta e Açores, na rua da Gare, desculpando-me pela pouca atenção que lhe prestara, apesar da tragédia que viviam. Disse-me que o Hugo ia melhor e que, por enquanto, os negócios dele lá continuavam entregues aos colegas. Falou-me também da gravidade do acidente e da convicção de que o internamento dele na Clínica St. Louis em Ettelbruck fora prejudicial, o que vinha contratar com o que me fora dito antes. Apressados como estávamos ambos, ainda lhe recordei o jovem pacato que conheci em 1990, quando, confrontado com as despesas da faculdade, o estudante de direito respondeu a um anúncio e me apareceu no Hotel Sheraton para descobrir as técnicas de venda que lhe ministrei, mas, confesso, sem grande sucesso porque, introvertido e demasiado tímido e, quiçá, inocente, o futuro advogado vivia ainda inconsciente no mundo de sonho que os seus pais lhe haviam idealizado. Depois de desejar umas rápidas melhoras ao Hugo, despedi-me do pai dele, pedindo-lhe que me telefonasse logo que fosse possível.

Ao apertar de mão do senhor Leonel, olhei-o e senti que por detrás da sua natural e sorridente bonomia se escondias um mundo de contradições e arranquei, indo estacionar o Opel Omega mesmo ao lado do carro da Polícia. Peguei em três livros e bati a porta, correndo à procura do escritório do pobre advogado que, segundo as frescas indicações paternas, ficava perto da ponte sobre o rio Sûre, no local deixado vago pelos electrodomésticos do irmão do Hugo. A vitrina, antes super iluminada para melhor vender os robôs movidos a electricidade, estava totalmente recoberta com um manto de plástico translúcido, por detrás do qual os clientes do neo-advogado haviam certamente confessado e posto à luz do dia a mais obscura privacidade ou, mentindo, tentado seduzir o defensor da verdade para escapar à justiça e recuperar a liberdade.

E o meu coração comoveu-se ainda mais, quando, lendo “ Avocat à la Cour .” escrito em letras negras cavadas na placa dourada que a família do advogado orgulhosamente ali mandara gravar, não resisti à tentação de a tocar com a ponta dos dedos, como se da mão do Hugo se tratasse. Num ápice imaginei-me no lugar dele, mas em 1979 e em Coimbra, e arrepiei-me! Quem me garante que, se o meu sonho de criança se realizado, como eu tanto desejava, o destino não me tivesse atirado abaixo do pedestal, para o qual parecia talhado e onde sempre me quis ver, para fazer sofrer comigo aquela que me deu o ser?

E, rezando mentalmente para que o advogado apaixonado não sucumbisse sem conhecer a verdadeira felicidade, atravessei a rua para me refugiar no Bistro, o novo café branché de Diekirch gerido pela Vera.

Como ela não estivesse, voltei para casa, imaginando as vezes que um e outro, fingindo espraiar uma virtual dor de cabeça ou a pretexto de aliviar o stress profissional com um cigarro fumado parcimoniosamente à porta do Bureau e do Bistro, se olharam, desejaram e amaram em silêncio, aumentando vertiginosamente a cadência dos corações adúlteros antes de sucumbirem aos assédios da libido e de consumirem o fogo da paixão à média luz no acetinado leito cor-de-rosa.

Aproveitando para ir buscar o meu filho que treinava no Etzella e com quem combinara assistir, no Café da Rosa, ao F.C do Porto Olimpiakos, a contar para a 2ª jornada da Champions League, desloquei-me a Diekirch e entrei no Bistro, deparando com a Vera sozinha atrás do balcão iluminado por spots dourados! Sorri, dei-lhe as boas-noites e pedi um carioca, aproveitando para satisfazer a curiosidade e descobrir as duas salas que ladeiam os cantos opostos do salão principal: máquinas de jogos na maior e nos fundos do café e sofás na menor e contígua à hall de entrada! Dois quadros eróticos, um homem e uma mulher em desnudada expressão corporal, decoram o muro principal, para fazer fervilhar na retina de quem os mira mesmo a esmorecida apetência sexual. Enquanto Vera me tirava pedi que mudasse o televisor do canal da Viva para o da RTPi, porque estava na hora de “os Lobos.”, mas a ensurdecedora música ambiente vinda das traseiras fez-me desistir da novela, até porque era ela quem mais me interessava escutar.

Depositando o carioca num canto da mesa, Vera assentou-se à minha frente e esperou que eu escrevesse uma dedicatória no Escravo do Amor, o meu primeiro romance, que lhe ofereci com duas versões antigas dos manuscritos “ Caprichos do Amor ” e “ Força do Destino”, a quem pedi que lesse e emprestasse à Aline. Entre um golo de café e dois dedos de conversa olhei-a e senti o seu rosto atraiçoá-la!

Peguei então na agenda e comecei a notar as datas de nascimento e de casamento dela, quando entraram quatro donzelas que a saudaram e foram estatelar-se a fumar nos sofás da saleta que ficava ao lado. Para não a empatar, consultei o relógio e, fingindo-me atrasado, puxei por uma moeda para pagar o carioca, mas ela, pegando nos livros, ofereceu-mo com um sorriso. Apertei-lhe a mão e prometi voltar com as primeiras páginas, deixando-a servir as simpáticas e graciosas mademoiselles da noite e correndo para o Café du Coin, onde o Gerson via o jogo com o Filipe, seu colega de equipa no Etzella e filho da Rosa.

O F. C. do Porto ganhava por um a zero e a garra com que encarava os gregos já deixava antever a vitória final. Em casa ainda passei pela CNN, a BBC e a NBC, as cadeias de expressão inglesa da minha parabólica, mas, como Timor não apareceu no ecrã, desliguei a televisão e fui-me deitar, adormecendo a recordar as vidas das personagens aqui retractadas, destacando, cruzando e colando factos longínquos que a memória me devolvia e pedia que desenterrasse e libertasse do esquecimento. E a todos dei vida, até que o sono me levou para o inconsciente mundo do sonho, onde tudo se planeia e desencadeia inevitavelmente.

Na manhã de quarta-feira, 22 de Setembro, depois de levar a minha princesinha à escola, tomei o café, lavei os dentes e, olhando para o sol que batia na vidraça, sorri: um raio de luz acabava de se acender no coração do buraco negro onde por onde viajava vertiginosamente esta intuição. E as palavras começaram a surgir fluidas, como agora, na folha imaginária deste ecrã computadorizado, metamorfoseando magicamente o sonho artificial que trazia na ideia e a realidade virtual que, irrompendo do nada, nos deixa a mente cheia.

De tarde passei por Larochette para confrontar esta ficção ebuliente, que o meu coração sente e tanto se apraz a endemoninhar ou deificar, com a gente que dá vida a este drama. Deles ouvi outras versões que procurarei confirmar, se o Hugo não se deixar arrastar abulicamente até definhar e passar definitivamente para o outro lado e o Ireneu sair do inferno prisional.

Agora, prisioneiro desta liberdade, que a criatividade cerebral me insufla nas veias e os neurónios me procuram, só me resta atravessar este túnel para ver o que está do outro lado.

Tive que largar o romance para ir picar a carta à ADEM e sofri uma desilusão: daqui a 3 semanas estou enforcado! Sem emprego e sem dinheiro…

À noite fui averiguar um pouco mais a Vera e saber a data da morte do Miguel!

Fiz-lhe ver que ela está a proceder exactamente como os pais dela e a causar à filha os mesmos traumas; falei-lhe da importância da vida e sugeri-lhe que escrevesse uma carta ao Hugo e, depois de lhe agradecer tudo o que ele fez por ela, lhe abrisse o coração dela e lhe confessasse que já não o amava, se é que o amou verdadeiramente algum dia. Mais que amor, ela pagou-lhe com o sexo a vergonha de que ele a livrou ao tirá-la da prisão.

Vera reconheceu que a paixão se consumiu rápido de mais e a união nunca seria total, porque entre eles havia diferenças insuperáveis. Além do estatuto social, o advogado herdara dos pais o complexo de superioridade e olhava os seus irmãos como seres inferiores. “ Agora que tens outra classe, não podes agir com os zés ninguém da mesma maneira!” “ Depois vais estudar para me ajudares no escritório e me seres útil…”

Quando a monotonia sexual esmorecesse, tudo acaba e, inevitavelmente, mal…porque o sexo é animal e jamais pode preencher o lado espiritual do homem, que é bem mais exigente e insaciável, mesmo se às vezes até parece que Deus não passa de uma realidade virtual.


Bissen, sábado, 25-09-1999 9:15:25

Acabo de reflectir com a Lina sobre as lições da véspera e as drogas da vida de uma pessoa. Neste momento inclino-me para “ vidas drogadas “, porque e, pensando bem, a nossa vida é sustida por várias drogas ao longo da sua existência: o sexo, o dinheiro, Deus e os estupefacientes a droga além do álcool e do tabaco. Depois de cogitar sobre o paralelismo das vidas das personagens, quisemos saber quando é que o dinheiro se transforma num vício, numa droga! E chegámos à conclusão que isso acontece quando esses valores fúteis e passageiros nos obcecam o livre-arbítrio, a ponto de os trocarmos pelos valores morais e vitais que realmente contam….


Bissen,13-12-2000 12:07:16

Só agora revi o romance, pois a vida tem-me obrigado a encontrar uma solução que me permita ser livre, realizar os meus sonhos e, sobretudo, manter dignamente a minha família.


Bissen, 08-08-2001 9:23:51

Revi partes do romance e, relendo as notas, vejo que Deus é realmente muito bom para comigo. Hoje, sinto-me mais confiante e sei que nada me imedirá de ter sucesso na minha vida, porque, no fundo, eu sei que estou a servir e ajudar muita gente e, assim, ajudando-o os outros, ajudo-me a mim!

Só espero que, quando tiver mais disponibilidade, a inspiração não me tenha abandonado.


Bissen, 04-01-2012

Talvez um dia possa terminar VIDAS DROGADAS, se tal for o desígnio de Deus !

Vidas Drogadas - 2º Capítulo


II

Quinta-feira, 1 de Outubro de 1998, quando se deitou, Vera só pensava em morrer. Os mais tenebrosos pensamentos subiam-lhe à cabeça, e por aí passavam com a mais perfeita ligeireza, para se colarem como sanguessugas no seu atribulado coração suicida. E aquela mórbida endofasia fê-la reviver fugazmente a sua vida solitária e pedir mentalmente perdão a quem mais amava, antes de dizer adeus ao mundo e, cerrando as pálpebras, implorar o Omnipotente para que não a deixasse ver a luz do dia e a levasse para o outro lado, se fosse para viver assim.
E o sono teve o condão de, não só lhe limpar o suicídio do coração, mas, sobretudo, de a pôr em contacto com o ente querido que mais amou e por quem mais chorara: o paizinho que Deus lhe roubara um ano antes.
“ És tu, pai? Por favor diz-me qualquer coisa, papá! Vá, não sofras mais por causa de mim e pede a Deus que me leve para junto de ti. ”
“ E a Florbela, filha? Tu tens que viver, nem que seja por ela! ”
“ Ah! Se não fosse a Florbela, já me teria cortado as veias ou… ”
“ Não desesperes, que hora a hora Deus melhora, filha! ”
“ Quando não piora, papá! Até parece que Deus se esqueceu de mim… ”
“ Não digas tolices, Vera, que Deus não castiga ou tampouco se esquece de ninguém! Deus, escreve direito por linhas tortas, filha! ”
“ No Paraíso, onde Ele é Rei e Senhor, talvez, mas na Terra, pelo que vejo, quem manda é o diabo, que não descansa enquanto não nos mete ou faz da nossa vida um inferno! ”
“ Ai como andas afastada de Deus, filha! Largaste tudo…, mas, desculpa, ia ser injusto contigo e acusar-te do mal que te fiz, quando, abandonando-te, corri para a Venezuela à procura de melhor vida! Eu troquei-te pelo dinheiro, filha, e por isso agora sofro tanto, aqui neste vale de lágrimas que é o Purgatório… Reza por mim e perdoa-me, Vera! Essa é a melhor forma de me amares, filha! O resto, agora, aqui e na verdade não conta mais… ”
“ Tá bem, papá, eu vou passar a rezar por ti, mas, tu, por favor, ajuda-me, senão ainda me deixo morrer…”
“ Vive, filha, vive por ti, pela Florbela, pela tua mamã, pelo teu irmão e, sobretudo, por Deus, se queres ser digna da verdadeira Felicidade! Vá, coragem e… mil beijinhos. Adeus, meu bebé! ”
“ Papá!! Não te vás embora, papá! ” gritou desesperada, tentando agarrar-se ao manto de luz que se afastava.
E, estremecendo aflita, acordou, dando com os olhos na escuridão, onde nada havia e donde nada caía. Nada! Mas…, persistindo, do nada jorrou um raio de esperança que fez renascer no seu coração a desleixada e amargurada Fé em Deus.
Cansada de perscrutar a negridão, Vera acendeu o candeeiro e virou-se de bruços, mas a inquietação fê-la dar mil voltas na cama e apagar a luz para retornar escuridão. A claridade, desnudando-lhe o olhar, envergonhava-a, aterrorizava-a! É que assim, trancada na obscuridade, tinha a sensação de recuperar a Liberdade.
Nesta sexta-feira, 2 de Outubro, a presa quase não almoçou. Mais que a fome e a vontade de comer, faltava-lhe a razão de viver. Retornando à cela, deitou-se para matar o tempo e acabou por adormecer.
Às 15 horas foi intimada a dirigir-se illoco presto à sala das visitas, onde era aguardada. Lavando os olhos para dissimular o sono, Vera penteou-se à pressa e aplicou um desodorante debaixo dos braços. E, seguindo o corredor, lá se encheu de coragem para afrontar a primeira e a mais vergonhosa reprimenda da sua vida.
Desembocando na sala de visitas, deparou com as mesas quase cheias de prisioneiros a conversar com a família, e, suspendendo a respiração, percorreu-as uma a uma, mas seu conhecido não viu ninguém. Erguendo-se da cadeira, onde esperava certamente por alguém, um homem jovem fez-lhe sinal com a mão trémula, interceptando o seu olhar mórbido.
Vera? indagou o estranho, dirigindo-se aos eu encontro.
Sim, sou eu mesma!
Ah! Afinal você é mais… bradou embasbacado, estendendo-lhe a mão.
Mais?
Nada, desculpe, eu sou o Hugo Amado e estou aqui enviado pela Aline!
E para quê?
Para a tirar daqui! Não é isso que a senhora quer? Mas assente-se e conte-me lá o que lhe aconteceu!
Olhe, se veio para me reconfortar ou dizer palavras lindas, não perca o seu tempo que não é disso que eu preciso, senhor Hugo!
Ah bom?! E poderei eu saber do que é que a madame realmente precisa? Vá, diga lá! insistiu sério, pegando na caneta para anotar os desejos da ré.
Desculpe, mas o senhor não me pode ajudar! desabafou desanimada, vendo-o seu interlocutor corar profundamente e baixar os olhos.
Porque? A madame faz de mim bem fraco!
Eu preciso de um homem, de um advogado que me tire deste inferno, Hugo!
E a Vera está mesmo inocente?
Estou!
Jura?
Pela alma do meu pai, com quem sonhei esta noite, e pela saúde da minha filhinha, que é o que mais adoro neste mundo, juro, Hugo, juro!!! bradou lacrimosa, elevando a voz e fazendo todo os presentes olhar para deles.
Tchut! Fale mais baixo! sussurrou envergonhado, tocando inadvertidamente com a ponta dos seus dedos tímidos nas mãos dela.
Eu estou inocente, Hugo, eu estou inocente! murmurou desnorteada, limpando ao punho a lágrima irreverente que lhe resvalava pela face.
Não chore mais, que eu vou tirá-la daqui, Vera! garantiu sereno.
Como? Não! Não acredito! O senhor é advogado? indagou perplexa.
Quer acredite, quer não, eu serei o seu homem, Vera!
Você?! O Hugo…
Sim, a cara de menino que a madame vê à sua frente, e por quem não dá um vintém furado, será o seu homem, Vera! Se dentro de oito dias, ainda estiver aqui, esquecer-me-á, mas se não…
Se não…pagar-lhe-ei e ficar-lhe-ei eternamente grata, Dr. Hugo Amado! Mas…, diga, diga, o senhor queria dizer-me qualquer coisa, não?
Não, não era nada! Ou melhor, sim, era, mas asneira!
E a ver pela cor do seu rosto, devia ser grande, doutor!
Enorme, madame! Imensíssima!!
De que tamanho? Da ponta dum dedo ou dum pedaço de gelo?
Oh não, está muito longe e muito fria, madame!
Então? Do tamanho do mundo não pode ser, pois não, doutor?
Pode! A asneira que eu lhe direi quando a tirar daqui é muito maior que o universo, madame!
Infinita?
Talvez!
Então será melhor guardá-la para si, doutor!
Sábia decisão, madame, porque eu não me acharia com coragem para lha revelar, por enquanto…
Mas depois…, já que a pensou, diz-ma, doutor?
Certamente!
Então jure e bata-me na mão! desafiou divertida, esboçando o um ligeiro sorriso e estendendo-lhe timidamente os dedos esguios.
Juro! exclamou sério, retendo-lhos firmemente e olhando-a decididamente sem pestanejar nem vacilar!
E, subitamente aterrorizados pelo desafio que acabavam de se lançar, Hugo e Vera prosseguiram cabisbaixos o sibilino diálogo. Tal padre no confessionário, o advogado ouviu-a pacientemente de confissão e, perscrutando-lhe subtilmente as palpitações cardíacas, tentou resistir ao íman sentimental que metamorfoseava em paixão a piedade que a tristeza da presa lhe suscitara logo no primeiro olhar.
E o término da visita soou cedo de mais para que a parcimónia e a rigidez, impostas pela ética profissional aos homens de leis, não cedessem aos impulsos libidinosos, separando irremediavelmente aqueles dois corações em desordenada palpitação.
No trajecto de retorno a Diekirch, a capital da cerveja, onde instalara o seu Bureau d’Étude o escritório e era impacientemente aguardado pela secretária, uma luxemburguesa de olhos azuis e cabelos loiros, o jovem advogado não conseguia resistir à inexplicável atracção que sentia pela mulher com quem acabava de passar aquela tarde.
De repente, Hugo, tão tímido, introvertido e submisso, ousou revoltar-se contra os tabus e autoridade paternal que, impondo-lhe uma ditadura virtual, mas tremendamente devastadora, lhe barravam o caminho da felicidade. Hermeticamente fechado desde a infância, o seu órgão vital vira-se atrofiado e mais parecia um motor eléctrico, habituado a obedecer à corrente, que um coração de gente. Ao pagar-lhe o diploma, o pai impusera-lhe leis draconianas, transmitindo-lhe obrigações e sujeitando-o a privações, que lhe atrofiaram o carácter e limitaram o seu livre-arbítrio.
Estacionando o carro no parcómetro virado para o rio, o advogado pousou a pasta no pilar e, debruçando-se para o jardim, respirou fundo, vociferando toda a raiva que sentia por não ter a coragem de soltar bem alto o seu grito de revolta e acabar de vez com as aparências e sórdida aquiescência paternal.
Boa tarde! disse melancólico e pálido, transpondo a porta do escritório.
Boa tarde, maître! respondeu a secretária cabisbaixa, prosseguindo a tarefa que tinha em mãos.
Uf! A que horas temos a próxima audiência, Martine?
Às dezoito… O senhor doutor sente-se bem? perguntou preocupada, vendo-o desatar a gravata e abrir o colarinho para respirar melhor.
Bem só me sentirei quando a Vera sair da prisão!
Vêrá?! Quem é? Não me diga que é a … questionou admirada, afrancesando o nome da portuguesa.
A Vera é, uma mulher de sonho, Martine!
Vê-se, doutor!
O quê?
Que o senhor se deixou contagiar e amarrar pelo charme da prisioneira!
Ela é linda, Martine!
Se você o diz… Bom, quer que lhe vá buscar um café ao Bistrot, doutor?
Ah! Agradecia!… implorou mimado, esticando-se todo.
Sorrindo, a secretária abriu a gaveta e, retirando da caixa cem francos, foi comprar dois cafés. Aproveitando a ausência da colaboradora, Hugo saltou do sofá e correu a deitar água no rosto, mergulhando as retinas avermelhadas na água fria que retinha na cova da mão. Depois, enxugando os olhos e as mãos, apertou o colarinho e a gravata, retornando ao seu cadeirão negro, onde consultou o dossiê que devia defender à noitinha.
E, nos dias que se seguiram, Hugo quase não advogou, concentrando todas as suas energias na causa mais importante da sua vida e que não o deixava dormir em paz: a do amor!
Entretanto, enquanto Vera desesperava por não ver a hora de deixar a prisão e voltar a abraçar a filha adorada, Aline telefonava para o senhor Marxen da polícia judiciária e para o Dr. Juiz Alphons Schmitt, para que eles não se esquecessem da prima, sem contar as horas que passava ao telefone com o Hugo.
Em Larochette, Florbela, afeiçoada à senhora Dora, que a cobria de mimos, não quase não dera pela ausência da mãe. Por vezes, à noite, antes de se deitar, ainda perguntava por ela, mas logo vinha a ama com um ursinho, um docinho e um beijinho para a distrair e, porventura, suprir a falta do carinho maternal.
Inácio, esse, parecia condenado e conformado a viver recluso toda a vida, tão pouco lhe ligava a família e tantas eram as agravantes da sua culpabilidade. Coitado, o réu ficara órfão com um ano de idade e sempre vivera rodeado de mulheres, a mãe, que sempre lutou pela sua prole como um homem, e as irmãs, a Carminda, que dera com os pés ao marido em Portugal e ao filho e viera tentar a sorte neste país frio, embarcando nas mais tórridas aventuras, e a Célia, que continuava na Suíça, para onde arrastara o mano quando ele atingiu a maioridade.
Que triste destino, o do pobre Inácio! Ao dez anos, quando sonhava com os livros e queria ser professor, para mostrar à mãe que era alguém, viu-se obrigado a pegar na enxada e ir para a jorna com os tios e os primos para atenuar a labuta maternal e lhe aliviar o sofrimento. É que, além das varizes, a senhora Joana arrastava com ela a mágoa de se saber condenada por um bicho que lhe ia sugando inelutavelmente a vida.
E, aos dezoito anos, o filho, agigantando-se e, porque tendo barba, homem se julgava, encheu-se de coragem e foi para a terra onde os bancos passam a vida a abarrotar o bucho de dinheiro, sujo ou limpo, pouco importa! Mas a ilusão, alimentada nas horas de desespero e solidão, que a invernia da serra suscita, quando a existência parece ter caído em desdita, rápido se desvaneceu.
Afinal, a Suíça não era nada como a pintavam!
De garçon de restaurante, onde serviu a burguesia e se imiscuiu pela via do sonho, a ajudante de maçon, Inácio experimentou vários biscatos, mas sem sucesso, até que, aos vinte e dois anos, no casamento de uma prima, conheceu a Vera. E a adolescente, atraente e irrequieta, conquistou-o definitivamente.
Ao fim de quatro anos de assídua correspondência, casaram-se! Ele, julgou ter encontrado a Bela Adormecida, e ela o Príncipe Valente que a faria descobrir o país encantado que lhe parecia o Grão Ducado do Luxemburgo, onde viviam os seus padrinhos de casamento, a Lídia e o Valdemar, e muitos dos convidados.
E o sonho cor-de-rosa, lindo a princípio, começou a ver a escuridão entrar nos meandros da realidade e a obscurecer-lhes a linha do horizonte, antes de lhe cortar o fio da felicidade. Perdida a dignidade, só lhes restava sofrer as consequências e viver o opróbrio da sociedade até quando houvesse vontade e o demónio ou o destino quisessem, porque de Deus já esperavam mais nada: haviam nascido para sofrer!
No dia 6 de Outubro, terça-feira, a prisioneira cruzou a responsável do seu bloco no corredor, mas, desanimada como estava, passou por ela como o diabo pela cruz.
Vêrá!!! gritou a guardiã, agitando o braço.
Sim!
Não se esqueça de ligar o despertador para as sete, porque às oito deve estar pronta para ir para a audiência.
Audiência, madame? estranhou Vera, franzindo o testa.
Afinal não é verdade o que você me disse ontem: o seu advogado não se esqueceu de si! Chapéu! Grande homem, sim senhor!
Você acha, madame?
Claro que acho, Vêrá! E você não?
Oh! Aquilo parece mais um menino mimado que…
Desconfie dos homens frágeis! Eles são um perigo, Vêrá!
Pois, é, mas, infelizmente, o seu conselho chega tarde de mais, madame!
Ah! Não seja assim tão pessimista! Nunca é tarde de mais! Vá, ligue lá o despertador e, amanhã, não se esqueça de se vestir com toda a pompa que a circunstância merece e de gritar ao juiz a sua inocência, se quer ver a sua filhinha antes do Natal. Ciao e… merda! exclamou a guardiã, cruzando os dedos para lhe desejar boa sorte.
Obrigada, madame, obrigada! agradeceu Vera, refugiando-se na cela.
E da noite escura jorrou um raio de esperança envolto num sorriso resplandecente, como se as súplicas dos últimos dias fossem, finalmente, exorcizadas!
Mentalizando-se para o frente a frente com o juiz, Vera adormeceu muito tarde, mas um ciclo de sono bastou para lhe revigorar o corpo e a alma. E nem foi preciso despertador: a insónia impediu-a de voltar a cerrar as sobrancelhas. Impaciente, ergueu-se e tomou banho, lavando-se e ensaboando-se por várias vezes, até deixar a pele limpa e perfumada. Como tempo era coisa que não lhe faltava, lixou as unhas, pintou-as e, bufando-lhes, esperou que o vermelho secasse; mirando-se ao espelho, afinou as sobrancelhas e sorriu demoradamente. E o brilho dos seus olhos desfez-se num sorriso mais enigmático que o da Gioconda;: pelos seus dedos esguios e macios, apesar das intermináveis jornadas de lava-pratos, raquete e rodilha na mão, voltou a deslizar um resquício de amor.
Os derradeiros cinco minutos foram um verdadeiro suplício para a condenada: não tivesse tido tanto trabalho para se aprimorar e mandaria tudo às malvas com uma cabeçada nas grades, depois de roer as unhas até ao sabugo e fazer esguichar o sangue pelas cutículas.
Está pronta Vêrá? murmurou a vigilante.
Sim, madame! Desde a cinco da manhã! respondeu baixinho, abrindo a porta da cela.
Você vai espantar o juiz, madame!
Porquê?
Qualquer homem com dois dedos de testa sabe que tamanha classe não pode ter descido tão baixo! A sua inocência salta aos olhos e o Juiz não é cego, Vêrá!
Então só espero que ele não tenha acordado de bunda para o ar, sofra de miopia ou apanhado alguma conjuntivite nos últimos dias!
Certamente que não! Vá, deixe de franzir a testa e sorria, que o sorriso será a melhor prova da sua inocência. Isso, assim! Cuidado, não fuja com a minha prisioneira, senhor Alex! avisou a guardiã, empiscando ao colega encarregado do conduzir a furgoneta até ao tribunal do Luxemburgo.
O condutor gracejou e, sorrindo, indicou o caminho à presa. Retomando o ar compenetrado, Vera obedeceu e seguiu-o cabisbaixa. E as portas, accionadas pelos guardas, foram-se abrindo uma a uma até à antecâmara da liberdade, onde lhe foram aplicadas as algemas.
Vinte minutos mais tarde, descarregada mesmo à porta do tribunal, Vera sentiu o nervosismo miudinho da viagem apoderar-se dela e perturba-la. Irritada, começou a friccionar as mãos e a olhar em todas as direcções, como que a pedir socorro, mas ninguém lhe valeu naquele aflição, e lá subiu as escadas até à sala de audiência, onde cruzou o sorriso cândido do Hugo tranquilizá-la e aliviar-lhe o terrível sufoco que lhe apertava a garganta e não a respirar pausadamente.
Olá! Vá, não se enerve! Calma, que eu estou do seu lado, madame! aconselhou o advogado, tocando-lhe ligeiramente no antebraço.
Ainda bem que veio, senhor doutor! Uf! Ui! Nunca pensei que custasse tanto! suspirou corada, esboçando um tímido sorriso.
Eu já falei com o Senhor Doutor Juiz! Ele é um homem simples e compreensivo! Por isso, fale devagar e não se enerve. Conte-lhe a verdade e tudo correrá bem. Vá, respire fundo e sorria que dá gosto vê-la sorrir disse calmo, pautando a convicção das suas palavras com gestos suaves e olhares joviais.
Obrigada pelos seus conselhos, senhor doutor!
Pst! Aquele senhor de cabelos brancos que ali vem é Senhor Doutor Juiz!
Maître Amadô, madame, bonjour! Mestre, Amado, senhora, bom dia! saudou sorridente, meneando a cabeça e dirigindo-se para a sua cátedra.
Bonjour, Monsieur le Juge! Bom, Senhor Juiz! responderam Hugo e Vera, retribuindo-lhe o sorriso amável com que os olhara.
Deixando-se guiar pelos polícias, que a conduziram até à cadeira que ladeava a do escrivão, a presa sentou-se e aguardou pacientemente que a audiência começasse. Perto dela, o advogado acenava-lhe discretamente e mimava-lhe calma, baixando e subindo lentamente a mão direita.
Obedecendo à ordem do juiz, Vera levantou-se e, adoptando uma posição vertical, procurou exteriorizar o orgulho e a dignidade que arrastava na alma, sorrindo serenamente.
Precisa de intérprete, madame?
Em princípio, não, porque eu compreendo muito bem Sua Excelência, Senhor Doutor Juiz, mas, se for preciso, peço ajuda ao Dr. Hugo Amado.
Com certeza, madame! anuiu o juiz, dispensando o intérprete.
Descontraída por este aparte, Vera ganhou confiança e sorriu ao advogado, que retribuiu a gentileza, aconselhando-lhe calma e empiscando jovialmente.
E o silêncio arrebatou à sala os derradeiros ruídos irrequietos dos sapatos que roçavam no sobrado encerado. Virando-se para trás, a acusada passou rapidamente o olhar pelos presentes e, porque ninguém pertencia ao seu mundo, não se sentiu incomodada!
Você procura alguém, madame?
Não, Senhor Dr. Juiz!
Bom, o Mestre Hugo Amado, introduziu um recurso contra a sua detenção, alegando que a prisão só pode prejudicá-la e traumatizar a sua filhinha. Eu acredito na boa fé do seu advogado e presumo que seja assim, mas os factos atestam o contrário, a menos que a senhora me prove o contrário. Eu sou todo ouvidos, madame! disse o juiz, cedendo-lhe gentilmente a palavra.
E o que é Vossa Excelência quer que eu lhe diga?
Tudo!
Tudo?!
Sim, tudo o que possa abonar e provar a sua inocência. Quando chegou ao país, o que fez, como se deixou enredar nesta rede…
Rede?! Mas que rede, Senhor Dr. Juiz?!
A madame não me diga que não sabia da vida que o seu marido e a súcia dele levavam?
E que vida levava o meu marido? Roubava? Matava? Por favor diga-me, Senhor Dr. Juiz, que eu juro pela saúde da minha filha que não sei.
Então o que é que a madame sabe?
A única coisa que eu sei é que fui enganada e explorada pelo meu marido durante meses. Mais, ele trocou-me pela droga!
Pela droga?!
Sim, Senhor Dr. Juiz, o meu marido deixou de dormir comigo para se trancar e drogar às escondidas na garagem.
Às escondidas?! Explique-se, madame!
Quando a nossa vida começou a correr mal, o Inácio fez alguns biscatos para me ajudar a pagar as despesas de casa, o aluguer e a electricidade e parte da comida. Foi barman num cabaré, taxista e guarda nocturno…
Tem a certeza que ele foi realmente isso, madame? Algum dia lhe viu, porventura, a folha de paga?
Não, isso nunca vi!
Porquê?! Nunca lha pediu?
Pedi, todavia, ele sempre se desculpou com a fiduciária, dizia que estava lá até ao dia em que deixou de me trazer o menor cêntimo para casa e começou a roubar-me parte do pouco que ganhava para viver.
E porque nunca se queixou à polícia?
Ele disse que, se alguém soubesse, me arrancaria o coração pelas costas, como mandou fazer um rei Português aos assassinos da sua amada…
Pois, é a história de D. Pedro e D. Inês de Castro.
Ah! O Senhor Dr. Juiz também a conhece essa história?
Sei essa e muitas mais! Porém o que me interessa, agora, é a aprender a sua!
Oh! A minha é muito triste, Senhor Dr. Juiz!
Talvez, mas, por enquanto, ainda não morreu ninguém!
Não?!
Que eu saiba, não, mas, pelo que vejo, você não é da mesma opinião!
Agora, que eu sei que o meu marido vendia droga, duvido muito que essa porcaria não tenha morto ninguém.
Ainda duvida ou tem a certeza, madame?
A certeza que eu tenho, Senhor Dr. Juiz, é que, por causa da droga, perdi o marido, perdi o bom nome que herdei dos meus pais, perdi a confiança, perdi…, perdi quase tudo!
Quase tudo?
Sim, Senhor Dr. Juiz, se eu ainda não perdi a vida e esperança, é porque tenho que viver e trabalhar para que a minha filha, o tesouro que me resta, seja feliz! Ela tem esse direito! A Florbela é muito pequenina e precisa mais de mim do que pão para a boca. Pão, Senhor Dr. Juiz, qualquer pessoa lho pode dar, mas o amor de mãe só eu! Por favor, deixe-me lutar por ela e defendê-la.
Defendê-la?! De quem?
De tudo e de todos! Do mundo, da indiferença e até da compaixão. Eu quero que a Florbela tem alimento para a alma; quero que ela saiba donde veio e, sobretudo, que saiba que não está só no mundo e que pode sonhar como qualquer outra criança e que também merece e tem o direito de ser feliz. Dinheiro, não darei, porque não sou rica, mas o que eu lhe garanto, ai garanto, mais, juro e ela alma do meu pai, que amor, pelo menos, nunca lhe faltará! Pobre de amor, Senhor Dr. Juiz, a minha filha nunca será, acredite Vossa Excelência ou não na inocência da mãe dela afiançou comovida, encarando energicamente o homem de quem dependia a sua liberdade e a felicidade da filha e enxugando as lágrimas.
Quer acrescentar mais qualquer coisa, madame?
Posso fazer-lhe uma pergunta, Senhor Dr. Juiz?
Poder pode, mas eu só respondo se quiser!
Com certeza, Senhor Dr. Juiz. É Vossa Excelência quem decide!
Faça!
Que a minha filha seja inocente o Senhor Dr. Juiz não duvida, pois não?
Não, madame! Não duvido! Tenho a certeza!
E que eu esteja inocente, ainda duvida, Senhor Dr. Juiz?
Ainda, madame, ainda!
Então estou condenada?
Talvez sim, talvez não, madame!
Isso quer dizer o quê, Senhor Dr. Juiz?
Que ainda não tomei uma decisão, madame.
Muito obrigada, Senhor Dr. Juiz!
Vá em paz, madame! disse o magistrado, acenando gentilmente.
Procurando desesperadamente os olhos do seu advogado, Vera quis esboçar um sorriso de alívio, mas a inquietação ainda morava nas suas retinas angustiadas. Cabisbaixa até à furgoneta, não abriu a boca. E, sentando-se no banco que o guarda lhe indicou, meteu a cabeça entre as mãos, lá se deixou arrastar para a prisão de Schrassig.
De volta à cela, a presa quis dormir sem comer, contudo a vigilante, amável como sempre, reconfortou-a e, insistindo para que se alimentasse, convenceu-a a restaurar as forças para afrontar a decisão do juiz.
Meio tonta, Vera lá foi mastigando, mais por simpatia que por necessidade o puré com vitela estufada que a guardiã lhe serviu num tacho condicionado, mas a sua garganta lacrou-se antes de terminar e a garrafa de Evian, que a podia ajudar a engolir o pouco que ousar meter à boca, nem a abriu, porque não era de pão ou de água que ela precisa: a inocente tinha fome e sede de dignidade e justiça.
Abatida e abúlica, Vera deitou-se sobre o leito e, cobrindo as pernas para não ter frio, pregou os olhos no tecto. Escorregando no seu pensamento vítreo, o pensamento desembocou no limbo cerebral, que é uma espécie de vazio indolor onde vão parar as ideias ocas, os sentimentos amorfos e os propósitos invertebrados, inexplicavelmente abortados ou rejeitados logo após o nascimento.
E foi nesta visão apática que a guardiã surpreendeu a sorumbática, quando, às 14 horas, lhe bateu estrondosamente na barra de ferro da porta translúcida.
Acorde, madame Vêrá, acorde que está na hora! gritou espalhafatosa, agitando o envelope lacrado que o colega da recepção lhe viera transmitir.
Petrificada, a macambúzia fez ouvidos de mercador, prosseguindo a mirífica e hipnótica contemplação em que parecia irremediavelmente embebida.
Mas que mulher cabeçuda! Nunca vi ninguém tão teimoso como você, madame! Eh! Teimosa e ingrata é o que você é, Vêrá! Prisioneira, levante-se e escute a decisão do juiz! Allez! Vamos! De pé e em continência!! ordenou enérgica, mostrando-lhe uma cara de poucos amigos.
Pardon?! Desculpe! A madame disse juiz? questionou assarapantada, saltando da cama para agarrar o envelope branco.
Para trás, menina insolente! Se fosses minha filha, já tinhas apanhado dois pares de açoites nesse rabistel ou dois bofetões que até andas de lado!
Ah! Você é má!!
Má?! Eu? Má e mal agradecida é a madame Vêrá!
Desculpe, madame, desculpe! escusou-se arrependida.
Bom, por esta vez e porque não quero ficar com má impressão sua, está desculpada, mas para a próxima, se me volta a cair entre as mãos…
Se me volta a cair entre as mãos?! Ouvi bem, madame?
Ah! Afinal a insolente não é surda! Hum! Se eu pudesse rasgava ou queimava esta carta para a obrigar a ficar aqui mais uns dias, mas…
Oh! Merci! Obrigada! Hum! Você foi muito gentil, Renée! Hum! exultou comovida, beijando e abraçando violentamente a guardiã
Eh! Pare e ganhe juízo que as outras prisioneiras vão ficar cheias de ciúmes, Vêrá! murmurou baixinho, recuando assustada.
Eu sou bem maluca, não sou, Renée!
Maluca? Você é tarada, menina! cochichou irónica, empiscando envergonhada e adoptando uma pose autoritária para ler o cartão.
Vá, leia logo! implorou a impaciente.
Eu, Alphons Schmitt, Juiz da Comarca do Luxemburgo, em virtude dos poderes que me são concedidos, ordeno que a Senhora Vera Da Silva Moreira Cabral, seja posta imediatamente em Liberdade. Luxemburgo, 6 de Outubro de 1998, 13h25’. O Juiz, assinado Schmitt Alphons leu pausadamente, antes de acrescentar: Está livre, madame! Vá, arrume as suas coisas e chame um táxi ou alguém que a possa vir buscar. Boa sorte! Adeus! disse cabisbaixa, virando-se.
Renée! Renée!! bradou comovida, obrigando a guardiã a voltar-se.
Sim, Vêrá?
Do fundo do coração, obrigada! Obrigada, Renée!!
Allez! Taisez-vous, sinon je vais pleurer, Vêrá! Vá, cale-se senão vou chorar! disse confusa e corada, desaparecendo no corredor.
Ás quinze horas, a reclusa podia abrir os braços e dar meia volta no terreiro para melhor encher os pulmões com o insípido, mas arrepiante aroma da Liberdade! E até o Sol, testemunhando tamanha felicidade, se desfez em luz para dar mais brilho e mais cor àqueles olhos castanhos que, cheios de gratidão e fitando os Céus, procuravam cruzar os de Deus, mas o Omnipotente primou pela ausência para que a pecadora melhor sentisse a Sua bem-aventurada Presença.
Ao volante do carro que a conduzia até à estação do Luxemburgo, o polícia da judiciária, que, tal escravo, nos últimos meses, a seguira como fosse própria sombra dela, não se cansava de a olhar sorrir a rodos. E até parecia que a alegria contagiosa da prisioneira saltava para a rua, transformando em felicidade todas as pensas de quem, excluído da sociedade, deambulava triste pela cidade.
Merci, merci beaucoup, monsieur Fellens! — Obrigada, muito obrigada, senhor Fellens! — agradeceu grata, apertando acanhadamente a mão do agente.
Il n’y a pas de quoi, voyons! Allez! Bonne chance, madame! Mas…, não tem de quê! Vá! Boa sorte, senhora! respondeu o guarda, intimidado pelo olhar dela, que cruzou ao agarrar-lhe a ponta dos dedos.
Um sorriso, um discreto aceno de adeus e cada um seguiu o seu destino.
Até Diekirch, onde era aguardada pela Aline, Vera não se cansava de mirar através do vidro e, aproveitando a indefinição provocada na paisagem pela velocidade com que a carruagem deslizava sobre a linha férrea, repensar na miséria a que chegara a sua vida. Decidida, porém, a mudar radicalmente e a afrontar o tratante que desposara inocentemente, tomou o propósito de nunca mais se vergar perante nenhum homem, mas se, porventura, tal acontecesse, o felizardo que caísse nos seus braços teria que pagar a preço de ouro o presente para que, quando o fim da aventura chegasse, a sua alma libertina, que seria a dela doravante, se sentisse orgulhosamente redimida do passado, para ousar afrontar sem a menor sombra de pesar ou inquietação o futuro.
Não, a Vera da Silva abandonaria o apelido Moreira Cabral do marido e jamais aceitaria ser a madame de alguém, fosse o senhor de estirpe milionária e se chamasse Gates ou descendesse ele de um Bourbon Nassau Windsor Orléans & Bragança. A prisão abriu-lhe os olhos e fez dela uma mulher insubmissa e livre. Livre! Livre como o vento, o pensamento ou Deus no firmamento.
E nem mesmo um derradeiro solavanco da carruagem a fez mudar de opinião. Obcecada pela Liberdade, a passageira nem se apercebeu que chegara ao fim da viagem e lá permaneceu estática no banco agarrada à sua aprazível miragem.
Vera! Vera!! Ei! Estou aqui, Vera! gritou-lhe a prima, mal a viu colada à janela, agitando espalhafatosamente os braços.
Ah?! bradou atónita, esfregando os olhos.
Acorda, mulher! Hum! Parece que andas com sorte!
Com sorte eu?! Não brinques comigo, Aline!
Então, Vera, se a linha não terminasse aqui, distraída com estavas, ias parar à Alemanha, rapariga!
À Alemanha?! Ao fim do mundo, Aline, ao fim do mundo é que eu iria parar, Aline!
Ao fim do mundo, Vera?! Não me digas que…
Se soubesses no que vinha pensar!…
Nem imagino! Em que pensavas tu, Vera?
Vou pedir o divórcio ao Inácio e nunca mais nenhum homem se há-de gabar de me ter gozado!
Oh! Não?! bradou incrédula, sacudindo a cabeça de espanto.
Agora, que sei o que é a prisão, nem que viesse o rei de Inglaterra para me meter uma argola no dedo, não deixaria! Preferiria mil vezes abrir-lhe as pernas!!
Só podes estar maluca, mulher!
Maluca eu?! Nunca estive tão ajuizada! Os homens são todos uns trastes, mas deixa lá que eles vão pagar-mas, Aline!
Credo! Vens tão mudada, Vera!
Mudada?! Nem imaginas a sorte que tu tens, Aline!!
Sorte? Eu? Porquê?
Na rifa da vida, enquanto a ti te saiu o Paraíso, a mim calhou-me o Inferno!
Vá, dá cá o saco e conta-me lá essa história que agora quem ficou a ver navios fui eu disse Aline, enfiando a trouxa no banco traseiro.
Cuidado com o trânsito! aconselhou Vera, sentando-se ao lado da prima.
Parece que estás com medo de morrer, rapariga!
E não é para menos! Já agora; que conheci o Inferno e o purgatório, não queria ir desta para melhor, sem saber como é o Paraíso! arguiu enigmática.
Por favor, troca me lá isso por miúdos, Vera! implorou confusa.
Calma, que na estrada para Ermsdorf, depois de atravessar-mos a ponte de Diekirch e passarmos a Opel, eu conto-te!
Ah! Passámos diante do escritório do Hugo e eu nem me lembrei de to mostrar! Fica no rés do chão da residência Mirabeau, ali mesmo na esquina! disse Aline, segurando o volante com a mão esquerda e apontando com a direita para trás.
Pois, deixa lá! Outro dia viemos com mais tempo e aproveitamos para passear pelo jardim e levar a Florbela ao baloiço que fica perto do repuxo. Coitadinha da minha filha! Como terá ela passado estes dias todos?
Não te preocupes que a senhora Dora não lhe deixa faltar nada. Vá, conta-me lá essa história do Paraíso!
Paraíso?! Que Paraíso?? volveu esquecida de todo, enxugando a lágrima que chorara pela filha.
Sim, porque é que eu tive mais sorte que tu? Já não te recordas? Ah! Tu estás
perdidinha de todo, rapariga! Diz, os guardas bateram muito na cabeça, bateram?
Oh! Bem se vê que nunca estiveste na prisão, Aline!
Prisão?! Ai, credo, cruzes! Que o diabo seja surdo, Vera! arrepiou-se a prima, accionando distraidamente a buzina que se escondia no centro do volante.
Ei! Não apites que a polícia pode vir atrás de nos! atemorizou-se a presa, mirando instintivamente para trás.
Deixa lá os gendarmes em paz e explica-me lá essa história do Paraíso! insistiu Aline, reduzindo a velocidade para iniciar a subida de Gilsdorf.
Ah! Pois… Tu és uma felizarda porque, depois de uma infância dourada, em que os teus pais que te cobriram de mimos, tiveste a sorte de casar com o Gilberto, que é um homem trabalhador, honesto e satisfaz todos os teus caprichos! Tu estás a conhecer e a gozar o Paraíso na Terra, Aline! desabafou enciumada.
Realmente…, visto por esse prisma, tens razão! Mas, coragem, Vera, que tu ainda és muito nova e, bonita como és, ainda hás de encontrar alguém que te ame e faça muito feliz! Haja fé!
Eu nasci para sofrer! E então agora, que estou manchada e marcada pela desgraçada nódoa da prisão, nunca ninguém me amará de verdade! Achas que se no tempo da inocência não cheguei a tomar gosto e a conhecer o rosto da felicidade, algum dia terei essa sorte? Primeiro, na infância, os meus pais trocaram pelo dinheiro e abandonaram-me como uma trouxa, obrigando-me a afrontar sozinha o mundo dos adultos e ser mulher antes do tempo. Depois, na adolescência, imatura e sedenta do amor que eles nunca me deram, a premente falta de afeição fez-me sucumbir ao charme da na ilusão e embarcar, para desgraça minha, na cantiga do Inácio. Coitado, no fundo, ele até nem era mau tipo e queria oferecer tudo o que eu lhe pedia, mas ninguém pode dar o que não tem, Aline. Se rico não era, amor nunca conhecera nem tivera: o Inácio ainda era mais infeliz que eu! Sozinho, ele vivia no purgatório, mas ao casar-se comigo, e ao arcar com a responsabilidade da família, quis libertar-se da miséria e, sonhando alto demais, começou a perder o contacto com a realidade…
Que se agarrasse ao trabalho!
Falar é fácil, quando nunca se desconhece a verdadeira face da dificuldade, Aline! Sabendo que só podia livrar-se do purgatório pelo sonho, o Inácio quis saltar no abismo, pensando que do outro lado encontraria o Paraíso, mas caiu no Inferno, arrastando-me com ele. Que Deus o tenha dó dele e o ajude a sair de lá, se pode, e a mim nunca mais me deixe aí voltar, se não quer que eu entregue a minha alma ao diabo! ameaçou irada, enxugando as retinas flamejantes onde se reflectia a toda a dor mundo.
Deus é Pai, Vera, Deus é Pai!
Então que não me abandone como o meu!
O teu, Vera?! Se o teu pai te abandonou um dia, foi que tivesses uma vida melhor, um futuro mais risonho! Ele não o fez por mal! Vá, não o julgues…
Eu não o julgo nem tampouco estou zangada, Aline, porque sei que ele vela por mim e pela Florbela. Ainda ontem sonhei e falei com ele…
Falaste com ele?! Então agora dá-te para falar com os mortos, Vera?!
Dá e faz-me bem! Parece estranho e nem sei explicar, mas, depois da conversa, sinto-me muito mais aliviada e confiante na vida. Os nossos mortos também sofrem, velam e rogam por nós.
Deus que me perdoe, mas não acredito nisso!
Pois eu acredito. Como te dizia, ainda ontem sonhei com o meu paizinho e ele disse-me que tivesse coragem, porque hora a hora Deus melhora e hoje estou livre! Se não foi ele quem rogou a Deus por mim, quem podia ter sido, Aline!
Não se tivesse o Hugo ocupado de ti e falado com o juiz e…
O Hugo?! Ah pois, o advogado! Sim, ele mostrou-se muito gentil e ainda esta manhã me deu muita coragem. Se ele não tivesse aparecido no tribunal, me tivesse aconselhado e tocado no braço…
Ah bom?! Então o Hugo tocou-te no braço?
Tocou-me no braço, sorriu-me e passou o tempo todo a meu lado a dizer-me que tivesse calma! É, tens razão, só pode ter sido o advogado quem me arrancou da prisão! disse pensativa, alegrando o seu olhar contemplativo.
E se fôssemos ver a Florbela? sugeriu Aline, na lomba que antecedia a derradeira subida de Ermsdorf.
Claro, mas primeiro deixa-me ir mudar de roupa e deitar um perfume.
Então será melhor deixar-te em tua casa, enquanto faço as camas e dou uma arrumadela à minha, que me levantei de madrugada.
Pegaste mais cedo ao trabalho para me ires esperar estação, não foi, Aline?
Oh! Deixa lá, Vera! Não é a primeira vez que vou acordar a patroa!
Só te meto em trabalhos, eu sei. Um dia, porém, se eu não puder ou não tiver tempo, Deus há-de pagar-te e com juros, Aline!
Se eu estivesse no teu lugar, gostaria que me ajudassem e estou certa que tu também me ajudarias. Ainda bem que, connosco, a família ainda serve para qualquer coisa, Vera!
Ainda bem! Mas, de qualquer maneira, quero que saibas que aprecio imenso a tua ajuda. Obrigada, Aline! acrescentou grata, pegando no saco e saindo para o terreiro, donde saíra com o marido para conhecer a maior vergonha da sua vida.
Ora essa! Não tens de quê, Vera! Vá, não te aparates muito, senão a Florbela ainda pensa que foste para alguma festa e não a quiseste levar traquinou Aline.
Hum! Ciumenta ou invejosa?
Ciúmes, Vera?! Só se for da minha afilhada! Agora quanto à inveja…
Esquece, Aline, esquece! Era asneira…
Asneira?! Tu?! Tu andas com a pulga atrás da orelha, Vera!
Eu?!
Tu, pois, quem devia ser?
Vai arrumar a casa e aproveita para limpar também a cabeça! ironizou Vera, lançando-lhe um beijo de adeus.
Mas tu vieste marafada da prisão, rapariga!
Marafada, estragada, maluca e sem nada na cuca, Aline! berrou galhofeira, saltitando como uma criança.
Depois da prisão, qualquer dia ainda vais parar ao manicómio, Vera!
Manicómio?! E porque não?
Ela vem doida de todo! Ela perdeu o juízo a maluca! monologou Aline, dando meia volta e subindo a ladeira.
Vinte minutos mais tarde, em Larochette, passando diante da Brasserie de l’Ernz Blanche, onde trabalhava, Vera olhou para lá e viu Carminda a paquerar o cliente do costume, um homem casado e pai de quatro filhos, a quem queria lançar o anzol. “ Sua lambisgóia! Desavergonhada! sussurrou entre os dentes e de soslaio para que a prima não se apercebesse da raiva que sentia pela cunhada.
Preocupada com o trânsito, Aline não ouviu nada. E, rolando pacatamente mais trezentos metros, viraram par a rua Michel Rodange para fazer uma surpresa à Florbela, que, àquelas horas, quatro da tarde, já devia estar sentada à mesa a tomar o lanche com os outros meninos. Pedindo à prima que parasse mesmo diante do balcão da casa da ama, Vera saltou do carro e, sorrindo para consigo, correu a carregar na campainha. Foi a senhora Tavares quem abriu a porta e, recuando dois passos, a arrastou pelo braço para o corredor, para que ninguém ouvisse.
Vera!! Você aqui, Vera?! indagou atónita, arregalando os olhos e enxugando a mão molhada ao avental.
A Florbela sentiu a minha falta, senhora Dora?
Um pouco, no princípio, mas depois habituou-se.
Posso vê-la?
A Florbela não está cá, Vera!!
O quê?! A Florbela não está cá?? retorquiu aflita e incrédula.
A assistente social veio cá roubar-ma ontem à tarde! revelou a ama.
A assistente social??… Mas com ordem de quem, senhora Dora? Com ordem de quem?? perguntou desvairada, batendo com os punhos na porta.
Acalme-se, Vera, que a menina saiu daqui a mando do juiz e foi para uma casa onde a justiça põe todas as crianças órfãs e abandonadas. Desculpe, mas a polícia vinha com a assistente social e eu não pude fazer nada. De resto, a Florbela partiu toda contente: eu disse-lhe que você foi trabalhar para longe, porque lá ganharia muito dinheiro para lhe comprar uma Barbie para o Natal, e que depois iria lá visitá-la.
Para onde a levaram?
Para a Casa Dom Bosco.
E onde fica essa Casa Dom Bosco? Sabe, senhora Dora?
No Luxemburgo, mas… Aline!! Chegue aqui, Aline! gritou impaciente, da soleira da porta, acenando desesperadamente.
Ouvindo o apelo, Aline desligou o motor e, arrancado a chave, correu lesta.
A Florbela está desde ontem na Casa Dom Bosco do Luxemburgo, que fica perto do parque do Galcis, onde se faz a festa com os carroceis e a roda gigante.
A Schouberfouer?
Isso a chuvafoua ou lá como é! O parque onde o Papa rezou missa, quando veio ao Luxemburgo, e que fica mesmo diante do antigo Consulado de Portugal.
Sim, sei muito bem onde é, senhora Dora e a Casa Dom Bosco também.
Então correi e ide lá ver a Florbela. E você desculpe e não chore, Vera, que ninguém faz nada contra a justiça! lamentou-se a ama, consolando aquela mãe lacrimosa.
Eu sei, senhora Dora, infelizmente, eu sei! disse Vera resignada, enxugando as lágrimas e cerrando os punhos para arrebatar a aflição na garganta.
Vá! Então? Se foi o juiz quem mandou, a menina está em boas mãos e não lhe falta nada! Sossega, Vera, que a minha afilhada já é uma mulherzinha!! encorajou a madrinha, batendo na espádua da prima.
Mulherzinha? Ó pobre… murmurou a inconsolável, soltando o desabafo que trazia no seu atormentado coração maternal.
Pobre, não! A Florbela é uma rica menina, ouviu? admoestou a ama.
Pronto, vamos lá, Vera, que as lágrimas não chegam ao Céu nem tão pouco resolvem nada! retorquiu corajosamente a madrinha, empiscando à senhora e agarrando a prima pelo braço.
Se a virem e falarem com ela passem por aqui ou telefonem-me, ouviram?
Fique descansada, senhora Dora, que, se falarmos com Florbela, viremos cá dar-lhe o beijinho que ela mandar.
Obrigada, Aline, mas diga lá a esses letzebóias que eles não cuidam melhor da Florbela que eu! Mais rica que a minha, essa Casa Dom Bosco pode ser, mas mais amor não lhe dá seguramente! garantiu comovida, enxugando as lágrimas à ponta do avental.
Ai-ai! Parece que hoje só me saem choramingueiras! Vocês vejam lá o que fazem, que, quando tal, Larochette fica inundado! opinou reinadia, correndo a pôr o motor em marcha.
Saindo cabisbaixa e soluçante, Vera nem respondeu ao aceno da ama da filha, enfiando-se envergonhada no carro.
Deslizando calçada abaixo, a viatura aproximou-se do canto da Farmácia e, espreitando o tráfego que vinha dos lados do Castelo, virou para a Place Bleiche, que contornou, antes de seguir para a capital pela sinuosa estrada que atravessa o vale da Ernz Blanche, zona de florestas e prados verdejantes, propícia para a caça e a pastorícia, onde os soberanos do Luxemburgo edificaram o castelo de Fischbach, residência do príncipe Henri, actual Lieutenant Tenente do Grão Duque, Sua Alteza o Grão Duque Jean, seu pai e neto da Princesa Maria Adelaide de Bragança, em que delegou o poder, depois de trinta e quatro anos de um sábio e próspero reinado.
Chegando à Casa Dom Bosco, Aline estacionou o carro perto do Ciné Utopia e pediu à Vera que dominasse os nervos e a deixasse falar a ela, porque os luxemburgueses são mais atenciosos e respeitosos quando se lhes dirigem na língua deles, dialecto germânico com resquícios de francês, nos primórdios da escrita, particularmente difícil para os latinos, nomeadamente os lusófonos, que lhe preferem a língua de Molière.
A noite começava a cair sobre a cidade, quando, atraídas pela luz que saía de uma ampla janela, se abeiraram dela, espreitando cautelosamente para o interior. Sentada elegantemente à mesa, Florbela comia e sorria como a mais feliz das crianças, comovendo quem a espiava.
Estás tão bonita, filha! cochichou baixinho a mãe, estancando as lágrimas com um lenço de papel que trazia de precaução na mão.
E se a deixássemos e fôssemos falar primeiro com Hugo? sugeriu Aline.
Se calhar não é má ideia anuiu Vera, assoando-se sem fazer ruído.
Vamos, antes que nos vejam! sussurrou a madrinha, lançando um beijo furtivo à afilhada e retirando-se pé ante pé.
E, apesar do orgulho que sentia ao descobrir que a sua menina portava como uma gente grande, Vera obedeceu, seguindo cautelosamente as pegadas da prima, que, adiantando-se e olhando-a, lhe pedia que baixasse a cabeça, a roçar pelo parapeito da janela.
Retornando a casa pela estrada de Echternach, a cidade mais antiga do país, que neste ano celebrava mil e trezentos anos e fora fundada por Saint Willbrod, o bispo que convertera os pagãos destas paragens e aí construíra uma abadia, donde difundira a Fé Cristã pelas terras bárbaras da Europa do seu tempo elas não se encheram de falar da menina dos olhos delas.
Em Ermsdorf, Aline telefonou imediatamente ao Hugo, contando-lhe o sucedido com a Florbela e rogando-lhe que a ajudasse a ela e à Vera, que estava ao lado dela, a tirar a inocente do orfanato onde se encontrava por ordem do juiz. Escutando-a sem a interromper, o advogado pediu-lhe que não saíssem de casa e fizessem um cafezinho, pois dentro de cinco minutos estaria junto delas para as ouvir de viva voz e as aconselhar o melhor que pudesse.
Pousando o auscultador, Aline disse apenas:
O Hugo vem aí!
Ainda bem, porque muito tenho para lhe agradecer, mais lhe pedir e uma pergunta lhe fazer.
Uma pergunta?! Que pergunta?
Ah! Isso… é… privado e não te posso responder, por enquanto, pelo menos.
Estás a deixar-me intrigada, rapariga! Não me digas que…
Que quê, Aline?
Que…, que…, sei lá!… Que lhe estás a lançar…
O anzol como a lambisgóia da minha cunhada ao outro, é?
Anzol não direi, mas um olho charmoso, como dizem os brasileiros…
Não, Aline, não me atreveria a tanto! Estou-lhe muito grata, e sê-lo-ei toda a vida, mas ainda tenho os pés bem assentes no chão e não esqueço quem sou: uma mulher casada, com uma filha nos braços e, já agora, toma lá esta, divorciada, porque o Inácio nunca mais dormirá comigo na cama!
O Inácio não, mas…
Ah claro que não irei para um convento nem tão pouco deixarei de viver plenamente a vida, como qualquer outra mulher. Quanto ao Hugo, que era a ele que estavas a referir, eu percebi-te muito bem, sua malandra, tira o cavalinho da chuva, que o menino, eh! O senhor advogado tem uma carinha de menino!, frisou risonha não é do meu mundo, mas se um dia ele atrevesse a meter-me nele, a família nunca permitiria tal afronta, disso não tenho a menor dúvida, Aline!
Oh! Tens a família dos meus padrinhos em muito má conta! Eles são do nosso mundo, rapariga!
Isso é o que tu pensas, Aline, e é verdade, mas eles…? Quem se julgam eles que são? Por mim, não os conheço e até os julgo, pelo que fizeram pelo filho, pessoas de bem e merecedoras da maior admiração, porque não deve ter sido fácil para eles custear as despesas dos estudos dele e dos irmãos que, que parece, também têm uma óptima profissão.
Então porquê essas dúvidas todas, Vera?
Não sei! Talvez seja o meu sexto sentido ou…
Ou?
Ou medo de sonhar!
Medo de sonhar, Vera?!
Sim, Aline, eu já quebrai tantas vezes a cara que agora nem a sonhar me atrevo! Vá, não me obrigues a sonhar, que dos meus sonhos só saíram pesadelos e medonhos! Monstruosos! Tão monstruosos que me conseguiram arrastar para a prisão! Não! Agora, até de sonhar estou proibida! Deixai-me arrumar primeiro a minha vida, divorciar-me e cicatrizar as chagas que trago em ferida aberta no coração, porque a prisão…
Psch! Ouviste bem? Parece-me que…
É ele! cochichou Vera, mal colou o nariz na janela, ajeitando as calças e passando a língua pelos lábios para lhe avivar a cor.
Ei! Vê lá que pergunta lhe vais fazer, menina! advertiu Aline, antes de correr a abrir a porta ao advogado.
Olá! Como vai, madame Da Silva?
Se a Florbela estivesse aqui, seria a mulher mais feliz do mundo, Hugo!
Como se sente, madame Moreira Cabral?
Melhor, muito melhor, graças a si, senhor advogado! Muito obrigada, pelo que fez por mim nos últimos dias! agradeceu Vera, corando e apertando-lhe nervosamente a mão gelada.
Bom, o que eu vou dizer agora, não tem nada a ver com o Maître Amado, mas sim com o filho da tua madrinha, Aline observou o advogado, entregando-lhe o paletó preto.
Vá! Deixa-te de etiquetas e desembucha, homem!
Então onde está o café que te pedi?
Por fazer, mas não demora, Hugo! Vai lá para a sala que a Vera tem uma pergunta para te fazer!
Só uma é pouco! comentou risonho, pegando na esferográfica.
Estai à vontade…
A Aline disse-me que a madame Cabral quer tirar uma dúvida. Que dúvida é essa? adiantou o advogado, fitando a cliente um tanto incomodado.
Dúvida, doutor?!
Sim, parece que a Vera deseja pôr uma questão!
Eu só queria fazer-lhe uma pergunta, mas já desisti!
Já desistiu?! Assim tão depressa? Fazia-a mais corajosa e combativa, madame! Enganei-me? questionou Hugo, sentando-se no sofá oposto ao dela.
Não! Com certeza que não, senhor doutor!
Uf! Ainda bem!
Só que há perguntas ou dúvidas, se preferir, que têm uma hora e local próprios para se fazerem ou desfazerem, não acha?
Perfeitamente!
Então deixemos essa questão delicada e de foro pessoal e passemos ao que importa. Como e quando é que posso recuperar a Florbela, senhor doutor?
Sinceramente, não sei, mas penso que rapidamente, uma vez que ela deve ter sido posta no orfanato por precaução e na falta da autoridade parental. Agora, porém, como a senhora foi reconhecida provisoriamente inocentada e, como tal, pode exercer novamente a sua autoridade maternal sobre ela e, confesso-lhe, como foi esse um dos trunfos que utilizei esta manhã perante o Senhor Doutor Juiz, a guarda judicial da sua filha já não se justifica argumentou confiante.
Pois, mas quando, senhor doutor? insistiu o seu coração maternal.
Se sair para a semana…
Hoje não, que já é tarde, mas amanhã…
Amanhã?! Você não é a minha única cliente, madame Cabral!
Mas sou a que mais precisa de si!
Ah! Disso já não estou assim tão seguro, madame...
Chega! Por favor, não me chame mais madame Moreira Cabral, que, apesar de ainda o ser, já não me sinto!
Então como prefere que eu lhe chame?
Sei lá! Vera! Madame!
Eu nunca vi uma madame sem nome!
Olhe, se a Vera lhe não der jeito, prefiro que me chame mademoiselle, menina, senhorita! Tudo, menos madame Cabral, ouviu? retorquiu alterada.
Ei, Vera, fala mais baixo que o Hugo não é surdo! repreendeu Aline, segurando um tabuleiro com três chávenas, um bule fumegante, um açucareiro, quatro colheres de chá e uma bandeja com doces.
Desculpe, se ergui a voz, senhor doutor, mas foi sem querer!
Não tem nada que me pedir desculpas, senhorita, e, sobretudo, não mude nada que é assim que tem mais charme! Oh! Desculpe, Vera! confessou ingenuamente o advogado, corando e fitando a anfitriã bastante acanhado.
Uf! Até parecia que a senhorita, como disse, além de ingrata era mal-educada, o que, diga-se, nunca foi, mas, como hoje já lhe ouvi tantas…, não me admiraria nada que a prisão tivesse transformado a Vera numa fera! ironizou Aline, empiscando ao hóspede.
E se tomássemos o café? sugeriu o advogado, adiantando-se às mulheres.
É cala-te boca senão sai asneira! apoiou Vera, pondo a chávena debaixo do bico do bule para que o Hugo a servisse, como ele insistia.
Pois… asneira! murmurou o cavalheiro.
Os advogados também dizem asneiras, Hugo?
Dizem? Ui! É muito pior que isso: fazem, Aline, fazem-nas!
E se deixassem de fitas ou… de asneiras? questionou Vera, corando inexplicavelmente.
Então falemos da Florbela! sugeriu a madrinha.
Como é a Florbela, que não conheço? perguntou curioso.
Ah! A minha afilhada é um amor de criança! Olha, quando soube da desgraça, eu telefonei à ama e disse-lhe que não me oferecia para a perfilhar! confessou vaidosa.
Não me digas que chegaste a pensar fazer isso pela minha filha?
Ainda duvidas, Vera?
Não, não duvido e agradeço-te imenso esse gesto, Aline!
Vocês falam com tanto amor e carinho da Florbela que estou morto por a conhecer! interferiu Hugo, subjugado pelos olhos castanhos da mãe da menina.
Tens bom remédio, rapaz!
Qual, Aline?
Pegas no telefone e convences o juiz a deixá-la vir para casa!
A estas horas, rapariga?! Os juizes não estão sempre no tribunal…
Telefona-lhe para casa ou para o celular! Anda!
Ei, a minha confiança com o Senhor Doutor Juiz não chega até esse ponto e o meu respeito por ele não me autoriza a isso. Hoje não, mas amanhã…
Pronto, tu lá sabes, mas ai de ti que não me tires a minha afilhada do orfanato! Não te pago! ameaçou Aline, empiscando à prima.
Esteja sossegado, senhor doutor, que serei eu quem lhe pagarei os seus honorários, porque fui eu quem fiz a asneira…
Ei, caramba, Vera, até parece que, se ainda não fizeste, te preparas para cometer mais alguma asneira!
Só Deus sabe, Aline, só Deus sabe, o que o futuro me reserva! desabafou cabisbaixa para esconder a inquietação que morava no seu olhar.
Não te atormentes e não caias mais em armadilhas, que a família cá estará para te ajudar, se precisares.
Obrigada, Aline, mas amanhã irei falar com o meu patrão e, se ele quiser, volto ao trabalho, que dinheiro é coisa em não nado.
O seu patrão vai recebê-la de braços abertos, Vera! adiantou Hugo.
Porque diz isso, senhor advogado?
Porque, quando a polícia o interrogou a seu respeito, teceu-lhe os mais eloquentes e honrosos elogios. O seu patrão aprecia muito o meu trabalho, sabia?
Sim, desconfiava, mas…
Mas quê? O que é que receia, Vera?
O ambiente… Ainda não sei como encarar as pessoas, as boas e as más!
Sobretudo não mude nada e marche de sempre de cabeça erguida, porque não há nada que lhe apontar. Pelo contrário, você deve sentir-se orgulhosa do que fez nada vida, pois nem todos teriam resistido como a Vera resistiu a tudo e que tive e tenho todo o orgulho em a defender! Parabéns e amanhã, se Deus quiser, poderá certamente beijar e abraçar a sua menina! acrescentou sereno.
Oxalá que Deus o ouça, senhor advogado! implorou Vera confiante.
Não, de preferência o juiz! corrigiu Aline, empiscando a Hugo.
O advogado segurou o queixo com a mão e, sorrindo à senhorita do seu coração, murmurou confuso e corado:
Com a ajuda de ambos seria bem melhor!
As mulheres olharam-se em silêncio e, meneando as cabeças, manifestaram-lhe a total aquiescência, forçando o homem de leis a franzir a testa, antes de esboçar um esperançado sorriso a ambas.
Depois de tomar o café, Hugo consultou o relógio e, arregalando as órbitas de pasmo, apressou-se a despedir-se de Vera, apertando-lhe a mão de fugida. Acompanhando o advogado à saída, Aline sussurrou-lhe ao ouvido, ao entregar-lhe o paletó negro:
Não sei se já te apercebeste disso, Hugo, mas tu és a única esperança da Vera! Por favor…
Pschiu! Não digas mais nada, Aline!
E realmente as palavras quedaram-se por ali. Desaparecendo irracionalmente na rampa de Ermsdorf, o Volvo 144 do advogado pôs-se em Diekirch num abrir e fechar de olhos. Enfunado por miragem idílica, Hugo parecia viajar noutra dimensão. Apaixonado, aquele coração varonil já nem sentia as palpitações e nas retinas flamejantes daqueles olhos cegos pairavam apenas as imagens libertinas de um amor impossível.
continua CAP_III