quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Caprichos do Amor: Domingo, 22 de Julho ( 6º DIA )


Domingo, 22 de Julho 
( 6º DIA )




As onze horas de domingo tilintaram sem que o adolescente se mexesse. Ao meio-dia menos um quarto, o arquitecto foi encontrá-lo a jorrar felicidade por todos os poros. Naquela noite, Rui Patrício iniciara uma deleitosa viagem pelo sensual mundo erótico. Fitando-lhe os bocejos matinais, o padrinho sorriu e retirou-se sem se atrever a acordá-lo, tão elevado no sono o sentira. Porém, assarapantado pelo barulho, o nefelibata saltou da cama, lavou-se e, consultando o relógio, vestiu-se rapidamente. Ao passar pela cozinha ainda bebeu um sumo de laranja e mais nada. No corredor, a velhota ria como uma perdida. Os padrinhos haviam desaparecido! Limpando-se à pressa, o sonhador correu para a garagem.
― Dina!!! ― exclamou estupefacto.
Ela não respondeu. Conservou a pose, sorriu e, suspirando baixinho, empiscou-lhe. O marido retirava a viatura. Ouvindo o motor ronronar, Rui olhou à sua volta e, sentindo-se só, beijou-a de fugida entre o rosto e os lábios vermelhos. Como jubilava! Assim, com o cabelo cortado, Dina era realmente a tara que imaginara. E o redobrado fascínio deixou-o estático a vê-la partir.
No passeio, o padrinho buzinava. Correndo lesto, foi assentar-se no banco de trás e, fechou os olhos artificialmente sonolentos, não fossem eles denunciá-lo ao marido daquela por quem sonhava há tanto tempo.
O arquitecto olhou-o pelo espelho e, empiscando à esposa, exclamou:
― Realmente este novo look faz da sua madrinha uma mulher de sonho!
― Ah, o padrinho também gostou deste corte!
― Muitíssimo! Adorei imenso! O Rui nem imagina a felicidade que senti quando dei com os olhos nela. Estou tão feliz que nem sei como lhe agradecer.
― Ah, o padrinho não sabia que os talhadores de diamantes ou de pedras preciosas são quem mais felicidade tem?!
― Parem lá com isso que ainda me fazem estalar o verniz ― suplicou corada, sentindo-se tão desejada.
E, subjugados como estavam, os homens não ousaram contradizê-la.

No solar, todos saudaram e apoiaram a metamorfose da jornalista. Como na antevéspera, o afilhado do arquitecto foi calorosamente recebido pelos pais da Cristina que, ostentando um vestido florido, o acolheu com um largo sorriso e um beijo. Como estava sedutora! Incomodado com tanto charme, o adolescente afastou-se discretamente e, cheirando carinhosamente as rosas do jardim, encaminhou-se para a piscina onde espelhou o nervosismo que tinha na alma. Um cadeirão de praia jazia à sua disposição. Assentado-se, pôs-se na direcção do Sol e fechou os olhos para não se encandear.
Pouco depois, surgiu a doce Cristina com um copo de Martini bem gelado.
― Aqui tem o seu aperitivo, Rui, ― disse carinhosa.
― Obrigado, Cristina, ― agradeceu o envergonhado.
― Como se sente? Está tudo bem? Em que praia esteve? Viu lá muita gente?
― Tantas perguntas de uma só vez, Cristina?
― O Rui bem sabe que as mulheres são muito curiosas, não sabe?
― Sei, mas espere um pouquinho, por favor! ― implorou meigo, ondulando o aperitivo e bebendo um trago, antes de prosseguir calmamente. ― Olhe, menina, cronologicamente falando, primo, sinto-me como um lagarto que vai perder a pele; secundo, penso que podia estar melhor; tércio, fui para a praia da Azambujinha e quarto, não encontrei lá nenhuma gatinha que merecesse uns arranhões. Satisfeita?
― Sim!...
― Mais alguma curiosidade?
― Não! Estou muito feliz por te ter aqui bem pertinho de mim ― volveu carinhosa, pousando as retinas esverdeadas na efígie dos Beatles.
― Eu preferia estar sozinho contigo numa ilha deserta, Cristina.
― Dá tempo ao tempo, Rui! Os frutos não se devem colher antes do tempo.
― Certo, menina, mas o que fazer quando se acaba de atravessar um deserto cheio de fome e de sede e subitamente surge um oásis? ― questionou malicioso, bebendo um golo.
― Ah, aí não sei! ― respondeu confusa, corando como uma cereja.
― Come-se e bebe-se o que há!
― Sim, mas..., e se for proibido?!
― Proibido, ora essa?! A proibição acabou com o pecado original. E ainda bem que existiu uma Eva porque senão o pobre do Adão...
― O Adão ou a Eva?! ― perguntou embaralhada, não vendo a malícia.
― Sim, menina, se a Eva não fosse corajosa e não tivesse ousado provar daquela fruta apetitosa, o burro do Adão ainda agora estaria a olhar...
― Está bem, porém esta fome de que falamos não mata, pois não?
― Se não mata, enlouquece, o que é muito pior, Cristina.
― Também tens razão ― anuiu atrapalhada, virando-lhe as costas.
― Acalme-se que o jogo não terminou ― disse teimoso, retendo-a pelo braço.
― Cuidado, Rui, eles estão a olhar-nos! ― advertiu ela, respondendo aos acenos dos adultos lá no varandim.
― O teu pai está a olhar-me com uns olhos!
― É impressão tua, Rui. Ele acha que tu és um bom menino, que...
― Ainda bem! Então anda lá. ― ordenou risonho, seguindo-lhe as pegadas.
À mesa, as duas famílias ficaram face a face. Aos Sampaio, porém, faltava o Júlio, o primogénito, a cumprir o serviço militar na Ota, uma base da Força Aérea Portuguesa perto de Lisboa, e cujo sonho era ir para a Guiné ajudar o General Spínola, o Governador Militar, a ganhar aquela guerra maldita que nunca mais acabava.

Depois do almoço, os homens foram passear pelo pinhal até aos extremos da quinta, aproveitando para fumar uma cachimbada. As esposas e os adolescentes preferiram ficar perto da piscina, assentados debaixo dos pára-sóis, a digerir o almoço para poderem mergulhar. A meio da conversa, Dina revelou à amiga que o afilhado fora o mentor do seu novo visual. Pensativa, a Cristina desfolhava um malmequer e nem prestou atenção à confidência da jornalista, ao invés do moço que, sentindo-se traído e imprensado pelos olhares maliciosos das mulheres, se levantou corado como um pimento.
Apesar da brisa suave por onde navegava a maresia refrescante, ele fingiu-se sufocado e resolveu deixá-las, indo entreter-se com a donzela.
― Deu sim ou não? ― perguntou curioso.
― Oh, não faz mal, devo ter-me enganado! ― respondeu ela aborrecida.
― Queres ver como tenho mais sorte? ― disse confiante, cortando outro.
― Se calhar! ― balbuciou ela expectante.
― Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer... ― repetia convicto, arrancando as pétalas da flor uma a uma.
À medida que a flor se despia, o olhar da moça afinava-se e a respiração retinha-se por segundos. Afónica, ela quase delirou ao ouvir o moço exclamar:
― Bem-me-quer, Cristina!
― Foi sorte! ― desabafou trémula, dissimulando um sorriso por detrás dos punhos cerrados e cruzados como a figa da sorte.
― Ah, não seja má perdedora, menina! Comigo dá sempre bem-me-quer.
― Tens a certeza, Rui Patrício?
― A certeza, a certeza, ninguém é infalível, mas aposto contigo.
― De acordo. E o que vale? ― inquiriu curiosa.
― Um French kiss ― replicou sério, fixando-a obstinadamente.
― Apostado! ― exclamou ela, empiscando-lhe maliciosa.
― Vá, corta lá outro malmequer e dá-mo. Até te faço mais, podes dizer-me por onde começar, por bem, por mal, por se calhar ou por talvez. Seja como for, eu sei que vou ganhar ― afiançou emproado.
― Pega neste e diz bem-me-quer, mal-me-quer... ― ordenou corada.
― O.k! Olha bem que eu vou começar. Um, dois, três bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer... ― repetiu certinho como um relógio suíço.
― Sim..., sim..., sim.. ai-ai... ai! ― gritou ela, tapando a boca com os dedos.
― Bem-me-quer! Perdeu! ― bradou ele vitorioso, mordendo os lábios.
― Oh, por favor, perdoa-me desta vez!
― Perdoar, eu? Não! ― recusou peremptoriamente.
― Tchut, elas podem ouvir! ― implorou ela aflita, olhando o pára-sol.
― Onde vais? ― perguntou baixinho, obedecendo aos acenos discretos que ela lhe fazia por detrás de uma roseira.
Ele deu dois passos e seguiu-a. Escondendo-se na vegetação, Cristina parou junto de um pinheiro e encolheu-se nervosa. As suas retinas amedrontadas lançaram ao predador um olhar louco, como que a pedir-lhe remissão, mas em vão. Depois de se certificar que ninguém os via, Rui Patrício abeirou-se dela, encostou-a à árvore e, amarrando-a contra o peito arquejante, segurou-lhe o queixo, beijando-a demoradamente. As suas línguas limaram-se desesperadamente. Ela ainda tentou, num impulso defensivo, afastá-lo, mas a febre do desejo subiu-lhes à cabeça, descontrolando-os. Acometido pela indómita e rude tumescência, ele apostrofou-lhe a cintura pélvica com o rígido membro viril e, colando as mãos nos seios dela, circundou-os carinhosamente. Um silêncio sufocante saltou sulfuroso dos seus ventres convulsivos, fazendo-os delirar. Naquele beijo obcecante, eles experimentaram as delícias da inefável felicidade que os seus corações tanto desejavam. Aquele fora o minuto mais breve da vida deles. Prisioneiros do crescente ardor passional, eles amedrontaram-se e separaram-se desnorteados cada um para seu lado.

Cristina desapareceu no meio dos arbustos, fazendo-o correr assustado. Perplexo, Rui Patrício regressou vagarosamente ao canteiro das rosas; aborrecido, começou a contar os passos à volta do trampolim: o seu espírito intimidado procurava uma porta de saída, mas a consciência sussurrante reprimia-o, implacavelmente.
Estava naquele conflito interior, quando viu surgir a sua presa, mais jovial do que nunca, ostentando um biquini branco para fazer sobressair o bronzeado e um sorriso mágico. Ele olhou-a boquiaberto e sorriu também. Que bela!
― Não tens calor, não? ― perguntou a tentadora, pondo-se em bicos de pés.
― Se tenho, Cristina! ― bradou cortês.
― Então... ― retorquiu a mãe da donzela, surpreendendo-os.
― Ah, são vocês, D. Susana! Não trouxe o meu calção, pois não, madrinha? ― inquiriu muito envergonhado.
― Venha comigo, Rui, ― disse a catedrática, convidando-o a ir escolher um.
― Não me arranjas um, Susana? ― perguntou a jornalista, mostrando à colega um sorriso malicioso.
― Claro, Dina! Anda, vem escolher um.
― Não demorem que ela está boa! ― bradou a donzela, chapiscando a água.
E não tardaram. Mal dera uma volta à piscina e hei-los que voltavam joviais. A jornalista trazia um discreto biquini azul e o moço ajustava uma bermuda do Júlio. Mais atrás, a mãe vestia um monoquini preto e carregava umas toalhas da Riopele.


Exibicionista, Rui Patrício subiu ao trampolim, atirou-se para a água de pés juntos e nadou para o canto oposto ao da Cristina, que soltou uma gargalhada por ele beber água e tossir. Dina e Susana assentaram-se no muro, batendo os pés na água morna. Depois, molhando as espáduas e os braços, deixaram-se cair e mergulharam também. Foi então que a jornalista se lembrou que não sabia nadar e começou a atrapalhar-se, estranhando a impulsão da água, muito mais fraca que na Azambujinha.


Atento, o jovem socorreu-a imediatamente, segurando-a com um braço e nadando com outro. Vendo-a aflita, a professora indicou-lhe a zona onde tinham pé, mas ela não quis dar parte de fraca e, agarrando-se ao bordo, tentou nadar calmamente os três metros que a separavam da amiga. Lá no seu canto, Cristina ria-se como uma perdidinha, enquanto Rui encorajava orgulhosamente a temerária.
― Vá, madrinha, mostre que já sabe nadar! Mais uma braçada, isso, isso!
― Força, Dina! ― apoiou a catedrática.
― Uf, é difícil, Susana! ― desabafou a aprendiz, respirando cansada.
― Com um professor destes, podes nadar de olhos fechados no mar alto, Dina.
― Oxalá que sim, porque senão desisto e juro para nunca mais.
― Se fosse na praia, ela já nadaria sozinha, D. Susana.
― Acredito, Rui Patrício. Pronto, deixe-a comigo e divirta-se, que eu cuido-lhe dela ― disse a professora, retirando-se com a amiga para a relva.
Cristina, vendo-se livre da presença da mãe, fitou-o bem e sugeriu:
― Queres apostar como eu aguento mais tempo debaixo de água que tu?
― A menina pensa que é uma sereia? ― respondeu irónico.
― Se és homem, aposta ― retorquiu nervosa, fustigando-lhe a virilidade soberba com um olhar enfurecido.
― Ai, ai, menina! Olhe que as apostas nunca deram bom resultado. Veja lá...
― Não queres perder, não é? ― insistiu ela teimosa.
― O.k, aceito, mas só para ter o prazer de te ver engolir a piscina!
― Ah, querias! Ei, se ganhar, quero um prémio especial ― disse a caprichosa.
― Se tiver para dar... ― concordou o zombador.
Postados em cantos opostos, olharam-se, desafiaram-se e mergulharam debaixo de água, nadando de respiração suspensa e espiando-se de fugida. Submerso, inexplicavelmente sem fôlego, Rui mal teve tempo para lhe ver e admirar as coxas como era seu desejo, desistindo rapidamente, enquanto ela, que o vira levantar-se e encostar-se às escadas metálicas, sorria e dava uma volta triunfal à piscina, tal sereia orgulhosamente enamorada.
― Ei, podes parar, Cristina!
― Coitadinho do bebé! ― exclamou ela trocista, empiscando-lhe maliciosa.
― Também não precisas de te rir assim de mim! Ah, é esse o teu prémio!
Ela meneou negativamente a cabeça e, sorrindo feliz, esticou-lhe, voluptuosamente a tentadora língua sequiosa. Ele mergulhou na água e foi nadando até perder o fôlego para evitar sucumbir à tentação e, sobretudo, esmorecer a tumescência. Ofegante, agarrou-se às escadas metálicas e aproveitou para amassar discretamente a virilidade irreverente contra os azulejos azuis. No lado oposto, Cristina exibia as credenciais da sua resplandecente feminidade, esperançada em o encadear, mas ele evitou-lhe o olhar insidioso, fugindo para fora da piscina.

Mal pisara a relva e já a madrinha atenta lhe estendia nos ombros a toalha onde ela mesma se limpara, enxugando-o carinhosamente, perante a enciumada atonicidade da vingativa dulcineia.
― Estás assim tão desgostoso da vida, tolinho?!
― Não, Dina, ― negou ele, limpando os olhos avermelhados.
― Vá, seca-te e vem que eu passo-te um bronzeador nessas espáduas.
― E elas?!...
― Deixa-te de complexos que elas não são bruxas ― cochichou a jornalista, largando-lhe a toalha nas mãos trémulas.
À professora, que apanhava sol e lia Fernando Pessoa, Dina desabafou:
― Ah, aquela timidez é demasiado doentia, Susana!
― Então? ― questionou a catedrática, retirando os óculos de sol.
― Apenas vê uma mulher fica logo desajeitado. Bonito é, mas parece que tem medo das mulheres! ― confidenciou ela, referindo-se ao afilhado.
― Não é nada disso, Dina. Coitado, ele está a viver o conflito tumultuoso da puberdade. Se por um lado, fisicamente, se sente adulto, por outro, psiquicamente, ainda mistura certamente o sonho com a realidade, o que lhe deve provocar um mal-estar terrível.
― Se calhar, mas, com quase dezoito anos, já não devia ser assim.
― Não acho, Dina. Queres ver? Rui Patrício! ― bradou a professora.
― Diga, D. Susana, ― respondeu prontamente.
― A sua madrinha anda preocupada consigo.
― Ah, bom?! Mas porquê? ― indagou surpreendido, pousando a toalha.
― Assente-se aqui que eu explico. Pegue neste bronzeador e escute estes versos de Fernando Pessoa - sugeriu simpática, lendo-lhe pausadamente algumas linhas do livro do recém-desaparecido poeta e ensaísta lusitano.

Todo ouvidos, Rui Patrício fechou os olhos e escutou-a em silêncio, permitindo que lhe aplicassem ao mesmo tempo o bronzeador. Dina, essa, ouvia a declamação ritmada da amiga. Entretanto, Cristina pegara também uma toalha e, limpando-se, observava-os curiosamente. A poesia, dita com aquela entoação, infiltrava-se nos caracóis do nefelibata, domava-lhe o medo e atirava-o para as margens da doce nostalgia, lá onde o sonho se vivia em pleno dia e o coração batia ao ritmo da paixão. Voando pelas galáxias da ilusão, ele perdeu-se e, abstracto, deitou-se de bruços a fantasiar.
― Que beleza, Susana! ― exclamou a jornalista, retirando os óculos de sol.
― Tchut! ― sussurrou a professora, fechando o livro e pegando no tubo para o ludibriar.
Absorvido pelas miríficas quimeras, o adolescente mal sentiu o líquido gorduroso escorregar-lhe pelas espáduas, arrastado por uns dedos esguios e meigos como os da mãe.
― Que bom! ― bradou distraído, inspirando a brisa suave.
Ninguém respondeu. Pouco a pouco os dedos foram cessando o vaivém e ele, sempre de costas, murmurou baixinho:
― Essas sim, são mãos de fada!
― Você dizia? ― perguntou a madrinha, tocando-lhe no pé.
― Nada, não foi em si que eu pensei ― escusou-se ele intrigado.
― Gostou do poema, Rui? ― interferiu a professora, escondendo as mãos.
― Muito, D. Susana, mas a doçura das mãos que me aplicaram o bronzeador era bem mais relaxante, tal como a voz era melodiosa ― confessou envergonhado, desconfiando daquele riso cúmplice que ambas se trocavam.
― E a massagem não o atrapalhou, não?
― Não, porquê, D. Susana?
― É que a Dina diz que você se irrita e foge das mulheres, como o diabo de água benta. Os homens...
― Por amor de Deus, D. Susana! Longe de mim tais pensamentos!
― Estás a ver como não é verdade, Dina?
― Ai ela pensa que eu... ― deduziu ele, soltando uma enorme gargalhada.
― O Rui sabe qual de nós lhe aplicou o bronzeador? - volveu a professora.
― Foi você ― respondeu prontamente, olhando-a com uma ternura filial.
― Eu?! Como é que adivinhou? Ah, o malandro fingia que dormia!
― Juro que não, D. Susana, ― confessou cabisbaixo, acrescentando melancólico: ― Eu tive a impressão que era a minha mãe quem me passava o creme. Os seus dedos tocavam-me com aquela ternura e aquela leveza maternais que essas meninas estão longe de possuir. As mãos delas estariam certamente muito mais nervosas, não acha?
― Se você o diz! ― bradou a professora, sorrindo e mostrando-lhe as mãos gordurosas para lhe confirmar a justeza dos pressentimentos.

Incrédulas, Dina e Cristina piscaram-se e viraram a cabeça para dissimular um riso trocista. Ele apercebeu-se, mas não se deu por achado e jurou que, haveria de se vingar, antes de o Verão acabar. Aproveitando a ausência da catedrática, que fora lavar as mãos, ele fixou-as furioso, mergulhou intempestivamente na piscina para tirar o bronzeador e desapareceu, largando-as a cochichar debaixo do pára-sol. Quando as beldades decidiram ir mudar de roupa, cruzaram-no já vestido e penteado no patamar da entrada. Vendo-as, ele esticou-lhes raivosamente a língua, simulou-lhes a silhueta ondulante e, imitando-lhes a marcha sobranceira, afiançou desdenhoso:
― Cá se fazem, cá se pagam!
Elas, porém, não lhe deram ouvidos e prosseguiram nos bicos de pés, indiferentes à pirraça do rapaz que, rejeitado por quem mais amava e mais desejava neste mundo, partiu frustrado à procura dos homens, dizendo-se que com elas só arranjava chatices. Passando pela entrada do solar, reparou que a viatura do padrinho não estava no lugar. Cabisbaixo, voltou para dentro, percorrendo lentamente a alameda florida, que o sol poente inundava de rubro manto, e cismando com as hipotéticas inclinações homossexuais que a madrinha injuriosamente lhe desconfiava. Só lhe apetecia violá-la publicamente e mostrar-lhe que estava redondamente enganada. Ai Dina, Dina! Foi nesta exacerbação que ela, aureolada como uma santa pelo astro-rei, lhe cortou subitamente os passos meditados e lhe sorriu carinhosamente. 
Como estava sedutora!


Diluído o rancor, Rui Patrício precipitou-se-lhe nos braços e pediu-lhe perdão, agarrando-lhe e beijando-lhe desesperada e apaixonadamente as palmas das mãos. Quem os visse não precisava de mais nada para saber como se amavam. Nos olhos turquesa da madrinha espelhava-se um coração solitário à beira do abismo, quiçá do suicídio. Rui sabia muito bem que só ele a poderia salvar, mas os medos e os tabus, rédeas da sua consciência atribulada, iam-no retendo. Por quanto tempo mais, sobretudo agora que o penteado lhe devolvera verdadeiramente a Dina com quem desejava aprender a ser homem e a descobrir a inefável magia do amor, a loucura que tanto queria conhecer.


Entrementes, Cristina, a outra face do amor, antecipou-se-lhe e desculpou-se pelos risos trocistas. Muito mais atrás, Dina disfarçava mal a emoção que ele lhe suscitara e tentava recuperar a máscara invisível que a protegia da suspeição alheia. Na sala de jantar, Rui Patrício soube que os senhores doutores só voltariam de madrugada depois de terem visto o Padrinho, um filme sobre a engrenagem mafiosa. À mesa, vendo-as tão dóceis e simpáticas, ele imaginou-se um Pachá num harém adulado e servido pelas mais belas odaliscas da Terra. Assentada ao lado da mãe, cada vez que cruzava o olhar dele, Cristina lembrava-se daquele gostoso beijo furtivo que ele lhe dera contra o pinheiro. Oh, como era bom sentir-se assim possuída e desejada! E o sonho começou...

A criada serviu-lhes o café ao luar à volta da mesa redonda, onde jogaram uma suecada para matar o tempo. As senhoras quiseram rir-se dos adolescentes, mas a sorte não as bafejou naquela noite. À segunda chitada, elas desistiram para júbilo dos jovens que humorados descobriram novas afinidades. O serão terminou diante da televisão a ver um filme francês legendado. Apesar de ser a preto e branco, o enredo da história maravilhou-o. Quantas vezes não quisera ler O Conde Monte Cristo? Afinal, nem foi preciso. Instaladas nos sofás de couro, Dina e Cristina tossiam, espiando-lhe os trejeitos, sobretudo quando a heroína o fazia corar e tocar-se discretamente as partes viris.

E já era segunda-feira, quando regressaram a casa. Extenuados pela sonolência, adormeceram mal caíram em cima dos lençóis...


continua em: Segunda, 23 de Julho ( 7º DIA )

Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Caprichos do Amor: Sábado, 21 de Julho ( 5º DIA )


Sábado, 21 de Julho 

( 5º DIA )





Incapaz de dominar a insónia, Rui Patrício levantou-se pela alva diluente e refugiou-se na cozinha. Aliciada pelo aroma do café, a senhora Noémia, que também não pregava olho desde as cinco da madrugada, por se ter deitado cedo na véspera, ergueu-se e foi reconfortá-lo.
Entretanto, ouvindo o relógio bater as oito badaladas na sala de jantar, ele saiu apressado. Curioso, correu ao quiosque, comprou o Diário e, excitado pela capa, trouxe também a revista brasileira Ele & Ela.

O Sol subia no alto e os padrinhos ainda dormiam. Depois de ler o matutino, ele arrumou o quarto e escutou os êxitos de o telefone toca, programa da Rádio Renascenca, a emissora católica portuguesa, seleccionados na véspera, esperando que os padrinhos se levantassem ou fizessem pelo menos barulho. O silêncio, para ele sinónimo de cansaço, enervava-o. Mirando-se no espelho, viu que a noite mal dormida lhe deixara marcas à volta dos olhos.

Impaciente, ainda pensou ir acordá-los, mas desistiu. Estava naquela indecisão quando ouviu tilintar. Correndo veloz, pegou no telefone, esboçou um sorriso imenso e exclamou:
― Cristina!... Cristina!...
A alegria saltou-lhe das órbitas. Ofegante, apertou o auscultador contra o ouvido e, bafejando-o levemente, ele foi dominando a indescritível exuberância e respondendo timidamente a média voz:
― Sim. Sim... Eu também te amo muito, Cristina. Quando?... Ah bom!?... Claro!... Sim, mais ou menos, porquê?... Achas?... Se for preciso inventa-se uma nova língua. Aqui? Está bem... Eu também... Outro do tamanho do infinito. Sim... Adeus, Cristina!
Beijando amorosamente o auscultador, Rui pousou-o e, felicíssimo, foi para o terraço espraiar a felicidade da paixão que agora desabrochava, tentando descortinar no horizonte qualquer coisa que pudesse oferecer à Cristina.

A senhora Noémia, que passou todo o tempo a sorrir maliciosamente até às dez, pensando que os patrões estavam a fazer o bebé que todos ansiavam, começou a aborrecer-se por serem quase onze horas e ter ainda a casa por arrumar. O come-pó, a alcunha do aspirador, a quem ralhava quando se arreliava, esse, estava mortinho por roncar, mas a austera velhota impunha-lhe um silêncio desleixado. Vendo-a andar à nora, Rui Patrício encheu-se de coragem e encaminhou-se para o quarto dos dorminhocos para lhes bater à porta, mas eles, adivinhando-lhe os intentos, anteciparam-se, colhendo-o a galgar as escadas.
― Bom dia! ― bradou o casal, sorrindo harmoniosamente.
― Bom dia, seus dorminhocos! ― respondeu furioso, ostentando o relógio.
― Então, e a dor de cabeça de ontem?
― Ah, já era, padrinho! ― exclamou jovial, dando-lhe o ósculo filial e oferecendo desdenhosamente o rosto à madrinha que, recuando e olhando o marido, acrescentou irónica:
― Ai, ai, Félix, parece que o seu afilhado beija melhor os homens que...
― Ó madrinha, você também... ― retorquiu corado e zangado, beijando-a envergonhado.
O doutor Félix sorriu apenas e virou as costas, concedendo-lhes um ápice de intimidade. Abandonados, Rui e Dina lançaram-se um olhar tão fustigante que a senhora Noémia, que se aproximava de aspirador em punho, teve que se virar para não os encarar. O adolescente adiantou-se, sorriu à velhota como se nada fosse e foi buscar o jornal ao padrinho, largando as mulheres a cochichar.

Entretanto, os libertinos foram beber um café bem negro e comer uma torradinha com geleia de cereja. Escondendo-se sorrateiramente atrás da porta, Rui Patrício declamou entusiástica e sarcasticamente um parágrafo do Diário:
― O futuro deste planeta azul, onde é tão bom respirar, dependerá destas novas tecnologias de diabólica precisão que são os computadores. Sem eles, qualquer sonho interestelar será vão porque para se chegar ou passear pelo infinitamente grande será indispensável dominar o infimamente pequeno que compõe a estrutura do Universo. Não será de admirar se a comunicação for, no próximo século, o motor e o elo da Unidade dos Mundos do Infinito. Disto estou convicta. Assinado, Dina Sepúlveda Fontoura.
Saindo do esconderijo, ele surpreendeu-os a rirem-se e concluiu malicioso:
― E então nesse mundo-cão da comunicação serão elas quem mais mandarão e se desforrarão deste mundo-machão, quer eles queiram ou não! E então...
― Bravo! Bravo! ― aplaudiu o padrinho perplexo, imitando-lhe o tom jocoso.
― Senhor doutor, ― acrescentou o bobo, fazendo-lhes uma vénia ― a sua mulher não é um amor qualquer!
― Muito bem, muito bem, Rui Patrício! Você acordou inspirado ― aplaudiu o arquitecto, fitando o olhar emocionado da esposa que, depois de rir, ameaçava chorar.
― Não, padrinho, não acordei com a corda toda, mas um telefonema bastou para me dá-la ― esclareceu jovial antes de se virar comovido para a jornalista e acrescentar sério, solenemente: ― Parabéns pela sua crónica, madrinha! Gostei.
― Eu também, Dina! ― apoiou o marido.
― Vocês são uns amores! ― agradeceu a jornalista de voz trémula, mirando-os alternadamente com os seus olhos lacrimosos.
E a felicidade fê-la abraçar demoradamente os homens que tanto amava.

À mesa, enquanto eles tomavam o café e reliam na integra o artigo da jornalista, o bobinho esfolhava a revista brasileira, admirando as cariocas torradas que havia no interior. Quem mais o fascinava, porém, era sem dúvida a sexy e lourinha actriz brasileira Vera Fischer, por quem se apaixonara meses antes quando, ao descer a Marginal em S. Pedro do Estoril, a viu exposta no quiosque. Quantas vezes não sonhara e masturbara a olhá-la, quantas?! O arquitecto, concentrado, não se apercebia de nada, porém a esposa filtrava discretamente as reacções do adolescente, a quem aquele jogo sugestivo tanto excitava interiormente. Ambos sabiam que a inocência dos olhares escondia o mais voluptuoso dos desejos; que as suas almas prisioneiras davam guarida à mais vagabunda das paixões e que o magma incandescente dessa libidinosa demência, artificialmente lacrada pela moralidade, acabaria por enlouquecer os seus corações e fazer explodir o indomável vulcão passional.
O fio daquele sofisma sentimental ameaçava quebrar-se a cada instante mais ardente, contudo, a adoração, que ousaram confessar-se na véspera, continuava invariavelmente platónica e ainda bem. Supostamente obcecado pela ex miss Brasil, Rui nem ouviu o padrinho interpelá-lo, respondendo-lhe com uns segundos de atraso.
― Desculpe, o padrinho dizia? ― perguntou aéreo, fechando a revista.
― A Dina quer que você a ensine a nadar e como ela tem muito medo das ondas não facilite. Por isso veja lá não me a mate, porque eu não quero voltar a casar-me, Rui. Aliás, nem sei se me devia ter...
― O padrinho não diga tolices. Quando é que quer começar, madrinha? ― perguntou eufórico depois de admoestar o nostálgico taciturno.
― Porquê? Se está comprometido com alguém...
― Esta tarde não, mas amanhã, se me deixassem, gostaria de sair um pouco.
― Se o seu padrinho nos levar à praia...
― Não, Dina, ― interferiu prontamente o marido ― vocês podem ir quando quiserem. O Mercedes está à vossa disposição. O Edgar virá buscar-me.
― Agora ou depois de almoçarmos, Félix?
― Olha, como estamos a tomar o café ao meio-dia, eu acho que fariam melhor irem aproveitar o Sol e almoçar fora. Você precisa tanto de se bronzear...
― Eu sei, Félix, não precisa de mo repetir todas as noites. Rui, quer ensinar-me a nadar ou não? Eu pago-lhe! ― disse nervosa, fitando o marido de soslaio.
― Pagar-me? Não me ofenda, madrinha! Vocês são tão generosos...
― Vá, folhas de papel, despachem-se que o sol...
― Não goze! O padrinho já se olhou ao espelho, já? Daqui a uma semana, quem vai gozá-lo sou eu, vai ver! Até logo!
― Até logo! ― respondeu o arquitecto, acenando-lhes enigmático.
Da janela do escritório, viu-os entrar no Mercedes e desaparecer radiantes. E aquele olhar pesado e mórbido, perdido em mística contemplação, só foi libertado do pesadelo pela buzinada intempestiva do amigo que o chamava. Alertado pela governanta, o pensativo arquitecto ergueu-se, largou o jornal e correu a ter com o doutor Edgar Sampaio.

Entretanto, segurando bem o volante, Dina, que seguia a direcção do Estoril, ia urdindo a teia da sedução por detrás de um levíssimo vestido de praia que lhe cobria o biquini verde. Com os chinelos brancos, em vaivém constante, ela carregava no pedal do acelerador, cobiçada vorazmente pelas órbitas viris. Desde os cabelos pretos, apanhados por um gancho de couro, até aos joelhos brancos donde sobressaíam as rótulas irrequietas, ela era mentalmente devorada pelo irreverente predador.
Perto de S. Pedro do Estoril, Dina reduziu a velocidade e virou para o sítio abrigado da praia da Azambujinha, estacionando o carro perto do vendedor de gelados. Saíram mudos como vieram. Com o saco de sisal grosseiro a tiracolo, Rui Patrício cortou-lhe os passos e, pisando o areal escaldante, mirou os rochedos, procurando um lugar sossegado onde pudesse continuar tranquilamente a adoração da sua dulcineia, mas a voz da consciência fê-lo mudar de ideias e sugerir à madrinha que escolhesse o sítio que mais lhe agradasse.
― Vamos, sonhador? ― convidou a jornalista, estendendo-lhe uma toalha.
Ele não respondeu. Acenou simplesmente e seguiu-a escravo de uma sombra fantamasgórica que lhe punha o corpo em delírio. Prisioneiro da impetuosa insolência sexual, era-lhe difícil evitar o desejo e o consequente sentimento incestuoso. Que Deus lhe perdoasse, se podia. Pela praia, Rui e Dina não se atreveram a quebrar o fio do pensamento. Os veraneantes mais fanáticos sofriam os escaldantes assaltos solares e, enquanto do outro lado da estrada o mundo seguia a dura azáfama quotidiana, ele descobria o prazer e a dor de uma paixão que nascera antes do tempo. Os óculos escuros vieram dissimular-lhe o faminto furor interior. A magia do amor que lhe ardia incessantemente no peito, mas sem nada consumir, fazia-o cismar. Os passos meditados da jornalista, com as nádegas e as coxas vistas por detrás, excitavam-no terrivelmente. Sabendo-se intrinsecamente desejada, Dina descomprimiu o coração e bradou boquiaberta:
― Uf, que sufoco! Este Sol mata!
― Não mata, assa!
― Quer que alugue uma tenda, quer?
― Quem paga, manda.
― O.K! Pegue no porta-moedas que está no saco e vá ao vigia alugar uma. Olhe, veja se pode ser aquela amarelinha. Eu espero ― disse descontraída.

Partindo como uma seta, o mensageiro voltou como um tiro, ostentando entusiasticamente o recibo do aluguer. Depois, segurando novamente o saco, correu e espreitou para o interior da tenda. Dina sorriu e, descalçando os chinelos, fechou-se lá dentro, nivelando a areia com os pés. A malícia saltava-lhe das órbitas semicerradas e resvalava-lhe voluptuosamente pelos lábios humedecidos. Entretanto, Rui estendeu primeiro a esteira e depois a toalha gigante e cobriu o chão onde ela se ajoelhou. De costas, ela pousou os óculos de sol e encolheu os ombros, deixando o vestido deslizar-lhe pelas costas e cair. Depois, virando-se lentamente, lançou-lhe um pedido langoroso:
― Por favor, Rui, passa-me o bronzeador.
Ele ajoelhou-se também e abriu o saco, procurando nervosamente o tubo. Corado, sentindo-se tal mosquito prisioneiro na teia translúcida da traiçoeira aranha, não conseguiu reagir e libertar-se a tempo. Distraído a procurar, nem viu as unhas irresistíveis da fera cravarem-se-lhe nos pêlos do peito.
― Madrinha!... ― suspirou aflito, agarrando-lhe as mãos esguias.
― Madrinha, não! Dina! Só Dina! ― sussurrou a opressora, amassando os seios contra as irrequietas espáduas do mancebo.
― Por favor, não! - implorou ele, segurando-lhe firmemente os pulsos.
― Desculpe... Por favor, esqueça este gesto tresloucado. Perdoe-me, Rui!
O adolescente meneou a cabeça e libertou-se, levantando-se confuso. Revoltado consigo mesmo, decidiu dar uma volta pelo areal escaldante para se mortificar. Descalço, despiu a t-shirt, que atirou ao acaso, e mergulhou desesperadamente nas ondas alterosas. Um grupinho de raparigas desatou a aplaudi-lo, soltando alaridos histéricos, mas ele, debatendo-se com as vagas, nem as ouviu.
Passados quase dez minutos, decidiu voltar. De jeans a pingar, sacudiu os caracóis e dirigiu-se às moças, pedindo-lhes a camiseta que ele lançara ao chão e não encontrava. Sentindo-se encharcado e como nenhuma lhe respondesse, encarou a mais desavergonhada e perguntou:
― Desculpe, a menina viu a minha t-shirt?
― Âh! Âh!... ― resmungou a rapariga, mirando-o sobranceira de alto a baixo e escondendo as mãos atrás das nádegas.
― E vocês, não viram nada? ― insistiu nervoso, mirando as restantes.
Fez-se um silêncio total. Como nenhuma ousasse quebrar o pacto, ele sorriu irónico e, apalpando inadvertidamente os testículos para que a água escorregasse melhor, disse num tom mais sossegado:
― Eu estou diante daquela tenda amarela. Não se prive, quem me quiser...
E, atirando-lhes um beijo safado, retirou-se altivo.
Diante da tenda, a madrinha apanhava os primeiros raios de Sol daquele maravilhoso Verão de 1973 deitada de bruços na toalha. Apercebendo-se da chegada dele, ela virou-se e, vendo-o encharcado, fechou os olhos como se não tivesse visto nada e dormisse. Rui pisou cautelosamente a areia e, desprendendo a lona que fazia de porta, refugiou-se no interior da tenda. Sozinho, despiu as peças molhadas, torceu-as e vestiu o calção de banho. Depois de pendurar as Lewis na piqueta que segurava o tolde, enxugou-se à toalha e deitou-se ao lado da jornalista, contemplando e desejando-a platonicamente, tal escravo submisso.
De bruços, apoiando o queixo nas mãos, não se cansou de a espiar. Como o fascinava! Assim, embebido naquele corpo de mulher, o seu coração imaturo sentia a atracção sexual dominar-lhe fatalmente a razão, roubar-lhe o discernimento e deturpar-lhe a consciência moral. Meu Deus, como a amava!
E a Dina que tanto o fascinava não se mexia; a madeixa preta, enrolada num poupo estético, desnudava-lhe o pescoço altivo; o baton vermelho remodelava-lhe os lábios sedutores; o biquini apertado avolumava-lhe os seios tentadores; as nádegas esbeltas atiçavam-lhe a gula; as coxas e as pernas esguias faziam-no sonhar e imaginar as colunas de uma catedral gótica onde se perderia em fervorosa e ardente oração.

" Ó Dina, se soubesses como sofro por não te poder amar! Como te quero e tanto medo tenho de te perder! Oh, se soubesses como te desejo e me custa afastar de mim esta tentação? Ah, como invejo quem é livre e pode amar, quem lhe apetece! Dina, tu és o tudo de quem não posso ter infelizmente nada e, sobretudo, o prazer que me vem como uma espada, me faz viver esta paixão danada e me traz a alma atribulada! Tu és o paraíso do inferno onde tanto me apraz arder e o ardor desta paixão que obriga este pobre coração a sofrer o gélido furor do Inverno em pleno Verão, a única estação que a paixão conhece! ” - dizia-se cegamente, mortificando ainda mais a sua mente.

O sono estava quase a libertá-lo do pesadelo, quando foi sobressaltado por uma simpática donzela que lhe devolvia timidamente, a t-shirt. Sensibilizado, ergueu-se e, segurando a efígie dos Beatles, disse sensibilizado:
― Obrigado, menina. Eu sabia que seria você, quem ma devolveria. Posso dar-lhe um beijinho?
A moça corou e ofereceu-lhe nervosamente o rosto que ele beijou levemente.
― Mais uma vez, muito obrigado, menina...
― Tânia ― respondeu envergonhada, mirando a jornalista.
― Prazer em conhecê-la, Tânia. Au revoir! Good-bye! ― disse o poliglota.
― Au revoir! Good-bye! ― repetiu ela, devolvendo-lhe o sorriso carinhoso.
Dina, que entretanto se pusera de costas, assistira sem pestanejar à cena.
Muda, ainda pensou interrogá-lo, mas não teve coragem de o afrontar novamente. Aquele impulso animal deixara-a envergonhada. Oxalá não ficassem traumatizados por muito tempo! Indisposta, foi meter-se na água, seguida instintivamente pelo conquistador. Passando junto das raparigas, ele deu um olá! àquela que julgava ser a única virgem do bando e fustigou as restantes com um desdém tão insolente que nenhuma ousou desafiar a sua ira.

Como a madrinha se intimidasse com o ímpeto das ondas, Rui Patrício molhou-se lentamente e mergulhou nas vagas. E, nadando, convidou-a a segui-lo, mas a medrosa recusou o desafio, obrigando-o a voltar para junto dela. Chapiscada pelo brincalhão, Dina assustou-se e enfiou-se debaixo das ondas, atrapalhando-se. Socorrida instantaneamente pelo afilhado, que a ergueu e a amarrou contra o seu peito arquejante, ela chorou e riu de alegria. O remorso libertou-se das garras da consciência e o pesadelo, que arrastava consigo desde o incidente na tenda, metamorfoseou-se na maior das inefáveis felicidades. Fixando-a platonicamente como antes, Rui Patrício reparou naquele translúcido véu por onde a olhava descaradamente sem se envergonhar e a confiança instalou-se novamente nas suas retinas vorazes. Então, oferecendo-lhe as mãos, afastou-se lentamente e segredou:
― Vem, Dina, vem!
Fitando-o confiante, ela partiu hipnotizada atrás do guru. Cega de felicidade, lá seguiu o mestre até ao canto abrigado entre os rochedos, onde a maré não se fazia sentir. Leve como uma pena, a aprendiz abeirou-se de um rochedo e, sentindo a terra firme, estancou o natural vaivém dos pés e das mãos. Rui Patrício nem queria acreditar no que via! A felicidade da aluna fê-lo esquecer tudo. E, radiante, mergulhou novamente e, oferecendo-lhe o pé esquerdo, arrastou-a calmamente para a praia. Atravessando a maré humana sem pestanejar, lá voltaram à tenda. Depois de se enxugar, Rui Patrício foi comprar duas sanduíches que, esfomeados como estavam, eles devoraram num abrir e fechar de olhos. Insatisfeito, o mestre levantou-se e dirigiu-se para o parque de estacionamento, regressando pouco depois com dois gelados de fruta para adoçarem a língua. As lambedelas, reatando os seus jogos voluptuosos, reacenderam-lhes a cúmplice malícia que morava nas suas íris insensatas. Depois de enterrar o pau do sorvete, ele assentou-se e, apoiando-se nos cotovelos, indagou curioso:
― Qual é a verdadeira cor dos seus cabelos, madrinha?
― A mestiça, Rui ― retorquiu irónica, mostrando-lhe a língua afiada.
― Eu gostava que a Dina, ― emendou corado ― experimentasse um corte de cabelo mais curto. Realçava-lhe melhor esse pescoço esbelto.
― Como assim? ― retorquiu envaidecida, apanhando a madeixa.
― É, mais ou menos. O seu rosto e o busto ganham outra dimensão, outro encanto, outra..., como direi?, outra classe!
― Acha? Oh, posso ficar pior! Eu sempre usei este penteado, Rui!
― Claro, tolinha! A menina também nunca mais aprende a sonhar!
― Ah, você já me imaginou com outro visual!
― Obviamente que se sonha muita coisa em quatro anos!
― Claro que em quatro anos se passam muitas coisas. Quatro anos!... O menino, quer passar-me o bronzeador nas costas? ― perguntou risonha, olhando-o com ar de troça.
― Vá, não seja má para mim! ― bradou-lhe brincalhão ao ouvido, salpicando-lhe as espáduas de nívea.
― É, você até é o mauzão da fita e sou eu que fico com a culpa, não é?
― Vá, esteja quietinha, senão... ― ameaçou o gozão, desenhando nas costas da madrinha um coração trespassado.
― Senão o quê, seu trocista?! Seu... ― desabafou queixosa.
― Ora mexa-se e verá! ― concluiu ameaçador.
Enquanto lhe passava o bronzeador nas espáduas, Rui espreitava-lhe os seios lácteos. Ao alastrar o bronzeador nas costas da vénus, ele sentiu a tumescência cerebral baixar-lhe aos endurecidos órgãos genitais e parou, pedindo-lhe que acabasse. E desatou a correr para resfriar a insolente fúria genital na água. Pouco depois, voltou arrepiado e, enxugando-se, pediu à madrinha que lhe retribuísse o favor, o que ela fez prontamente. Enquanto a madrinha lhe passava o bronzeador, ele forçou os músculos para a impressionar, mas, insegura e temendo atear as labaredas libidinosas que lhe consumiam as entranhas, Dina preferiu renunciar ao vaivém deleitoso.


Durante quase uma hora, permaneceram deitados, olhando-se sem pestanejar. Perto das cinco horas, receando uma insolação, Dina refugiou-se na tenda para a evitar, enquanto Rui se distraia nos rochedos, olhando e cobiçando as donzelas que passavam. Antes de voltar a casa, ele ainda a convidou para um último mergulho, mas ela recusou gentilmente, dizendo-lhe que não teria tempo para secar e molharia o assento do carro.

Afinal, o retorno foi muito divertido. Alegres, eles ora contavam anedotas, ora trauteavam os sucessos dos Beatles, dos Rolling Stones ou dos Green Windows, a banda do José Cid, o pai do rock português.

Na vivenda, a senhora Noémia aprontava a ceia e o arquitecto efectuava os últimos retoques no esboço do anteprojecto de Alcabideche, dado que o orçamento tinha sido definitivamente aprovado durante a tarde. O barulho do motor fê-los largar tudo e vir saudá-los.
Naquela noite, o calor e o cheiro do marisco incitou-os a jantar no terraço. Curioso, o Dr. Félix não se cansou de os elogiar, perguntando-lhes, todavia, se seria coragem ou demência afrontar os caprichos do Sol tantas horas a fio. Depois do duche, os vermelhões eram mais visíveis nos braços e nas pernas deles.
Mais tarde, ao luar, falaram da família Sampaio, com quem almoçariam no dia seguinte, e da situação política em Portugal. De todos os temas abordados, a guerra do ultramar foi o que mais impressionou o afilhado, tão receoso dela e de um hipotético e fatal face a face com os assassinos dos pais. Mas quando viu que os padrinhos mudaram a conversa para temas de foro íntimo, que poderiam traí-lo, perspicaz, Rui deu-lhes as boas-noites, beijou-os no rosto e retirou-se, concedendo-lhes a pudica intimidade que eles mereciam.

No quarto, o sono não lhe deu tempo para se perder nas divagações imorais ou em desejos proibidos. Cansado, adormeceu de porta aberta, estendido sobre a colcha e de tronco nu. O coração, esse, devia deambular pelas paradisíacas margens da sua Dina. Sonhar não era proibido...

continua em: Domingo, 22 de Julho ( 6º DIA )
Caprichos do Amor

Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

Caprichos do Amor: Sexta, 20 de Julho ( 4º DIA )


Sexta, 20 de Julho 
( 4º DIA )




Sexta-feira, 20 de Julho, Rui Patrício ergueu-se de manhãzinha e foi dar umas corridinhas pela praia, questão de não deixar entorpecer os músculos. O padrinho, acordando muito mais tarde, passou pelo quarto do afilhado e, sentindo os lençóis frios, abriu a porta da esplanada. Ao longe, lá onde a baba salgada se desfazia, o adolescente executava figuras geométricas na areia. O astro-rei emergia preguiçoso do ventre do oceano.

Às oito horas em ponto, descortinando o vulto do arquitecto na sacada, ele respirou fundo e desatou a correr para casa. Descalçando as sapatilhas na entrada, limpou cuidadosamente a areia dos pés, enxugou o rosto suado com as mangas e voltou ao seu quarto sem deixar marcas nos azulejos do corredor.
No primeiro andar, a velhota aspirava as soalhadas vazias e limpava o pó.
― Bom dia, senhora Noémia! Hoje está muito madrugadora.
― Já falta pouco para a sua madrinha chegar e eu quero que ela encontre tudo a brilhar. Por isso não deixe nada fora do lugar, Ruizinho. Veja lá!
― Fique sossegada. Diga, quer uma ajudinha, quer?
― Estas não são contas do seu rosário, menino.
― Ora essa! Onde está o mal, senhora Noémia?
― Os homens são feitos para trabalhar na rua, nos campos, nas fábricas...
― Pronto, não a vou contradizer. Ah, queria pedir-lhe uma coisa...
― O quê?
― Se a menina Cristina me telefonar quando a madrinha cá estiver...
― O Ruizinho fala-se com a filha do senhor doutor Edgar, fala? Eu sabia...
― Sabia o quê, senhora Noémia?
― Ah, ela é tão bonitinha, simpática e tão dada! Sim senhor, uma menina como já não se vêem nos nossos dias. Diga, Ruizinho, vocês...
― Não, ainda não namoramos, mas penso que...
― O Ruizinho tome cuidado que os seus padrinhos e os pais da Cristina são como unha com carne! Veja lá, olhe que...
― Está bem, fique tranquila que não acontecerá nada. O padrinho já saiu?
― Ah, estou bem esquecida! ― disse alarmada, deitando as mãos aos cabelos brancos. - O senhor arquitecto pediu-me que lhe dissesse para dar uma vista de olhos naqueles assuntos que estão no escritório. Acho que lhe deixou um bilhetinho junto do quadro da sua madrinha.
― Muito obrigado, senhora Noémia.
― Ora essa, sempre às ordens, Ruizinho, ― concluiu graciosa, ligando novamente o barulhento comilão de poeira, como ela gostava de tratar o aspirador.

Enquanto a senhora terminou a limpeza, o moço tomou um banho e mudou de roupa. Depois de arrumar o quarto, Rui Patrício desceu à cozinha e bebeu uma chávena de café, mastigando uns biscoitos caseiros. Enquanto se restaurava, Cristina apareceu-lhe magicamente na maré do café. O vestido branco emergia da negridão fluida que ele absorvia lentamente para melhor a saborear. Ainda pensou levá-la consigo, mas o café resfriou e ela eclipsou-se subitamente como tinha aparecido.

Encerrado no escritório, executou as ordens do padrinho. No canto da secretária, a Dina desafiava-o, tentava-o, suscitando-lhe pensamentos perversos que se desvaneciam com a imediata aparição da gatinha que domara na véspera. Cambaleando à esquerda e à direita de rosto encrespado, ainda procurou um álibi para despistar a contradição e a devassidão mental. Ao passar perto da biblioteca, escancarou a porta, entrou e estatelou-se no sofá. Aborrecido, lançou um olhar pelas prateleiras, procurando tudo, nada, um romance, algo que nem ele sabia, mas em vão. Irrequieto, o seu pensamento vagabundo obrigou-o a erguer-se nervoso. De pé diante dos calhamaços, foi despertado por uma enciclopédia. Tirou-a, abriu-a à sorte e voltou a sentar-se, colocando-a nos joelhos. Foi assim que descobriu, mais uma vez, as diferenças biológicas do homem e da mulher, tabu que o colégio se vangloriava de cultivar religiosamente. Fortemente excitado pelas imagens sensuais e acometido por uma vaga tumescente, esqueceu-se da realidade temporal e começou a divagar ingenuamente pelas margens da imoralidade.

Desvendados os meandros da enciclopédia, fechou-a, arrumou-a no seu lugar e, estatelando-se novamente no sofá, esfregou os olhos. Depois, fechando-os, imaginou-se numa ilha tropical nos braços da Cristina. Aí, caído em adoração aos seus pés, viu-se arrependido, mas muito mais velho, a pedir-lhe perdão e a beijar-lhe desesperadamente as mãos de fada. O ruído do motor a gasóleo estancou-lhe subitamente a mirífica visão.

Aprontou-se, mirou-se no espelho e foi espreitar pela janela. Oh!.. Era a doce Dina que acabava de chegar! Colado no vidro, ele contemplava-lhe os trejeitos e as deambulações fascinantes sem pestanejar. Mas como mudara em três meses! Ao vê-la assim tão sedutora o desejo e a atracção que sentia por ela não eram os mesmos. Mas como a desejava santo Deus! De livros debaixo do braço e com um saco da TAP ― os Transportes Aéreos Portugueses ― a tiracolo, a jornalista precedeu o marido e saudou a governanta logo na entrada. Depois, subiu as escadas e deu com os olhos no afilhado:
__ Rui!
__ Madrinha!!
Atónitos, estancaram-se, olharam-se perplexos e beijaram-se no rosto.
― Mas, meu Deus, você está um homem feito!
― A madrinha acha? Olhe que eu só farei dezoito anos em Novembro!
― Só?! E eu vinte e quatro! Fazia-me mais velha? ― empiscou maliciosa.
― Não! ― disse corado, desviando o olhar do proeminente busto feminino.
― Vá, ajude-me a levar estes livros.
― Onde quer que lhos coloque? No seu quarto ou na biblioteca?
― Na biblioteca, se fizer o favor. Eu mudo-me rapidinho e volto já, sim?
E não disseram mais nada. Olharam-se apenas, sorriram-se, acenaram-se e partiram cada um para seu lado, lançando-se dois beijinhos. Curioso, o adolescente abriu os livros da congressista, mas, como eram em inglês, voltou a fechá-los e postou-se na porta, esperando que ela descesse. Ansioso, começou a roer as unhas. Entretanto, surgiu na sua retina flamejante a imagem do casal de mão dada, rindo feliz.
Naquele dia, a senhora Noémia florira e adornara a mesa como nos dias festivos. É que lhe metia dó ver o amo triste, sobretudo antes do Ruizinho chegar. A presença da patroa dava outra alegria àquelas paredes.

Durante a refeição, Rui Patrício não parou de os mirar. Interiormente, dizia-se que ela mais parecia sua filha que sua mulher. Agora, que a luminosidade do sol, batendo nos talheres se reflectia no rosto maquilhado da jornalista, compreendia porque é que o padrinho se casara com ela. O julgamento intrínseco alheara-o e fizera-lhe perder o tino à conversa dos padrinhos. Entre dois pratos, saciada a curiosidade, o arquitecto mudou de assunto e segredou à esposa:
― Dina, parece-me que o Rui Patrício está apaixonado.
Ela sorriu ligeiramente, olhou o nefelibata e perguntou curiosa:
― E quem é a felizarda?
― É a Cristina ― cochichou baixinho o marido.
Numa pausa abstracta, o jovem fisgou-os e, pelo movimento dos lábios, viu que haviam pronunciado o nome da sua amada. Corando instantaneamente, desviou os olhos e baixou-os sobre o prato. A madrinha ainda lhe apercebeu a contracção facial, mas não lhe disse nada para não o envergonhar ainda mais. Depois de um longo e absurdo silêncio, o adolescente perguntou trémulo:
― Madrinha, é verdade que o Big-Ben de Londres é assim tão impressionante e bonito como dizem?
― Sim, mas só o Big-Ben e outros monumentos, porque o fog, o nevoeiro é realmente doentio. Se quer que lhe diga, eu não trocaria este Sol e o nosso mar por nada, um palácio que fosse!
― Nem pelo de Buckingham?
― Bom, rainha de Inglaterra...
― E o padrinho que diz? Também pensa que Londres...
― Sinceramente eu não conheço muito essa cidade. Só lá estive uma vez e de passagem, no aeroporto de Heathrow, se não me engano. Depois desta semana a Dina tem obrigação de a conhecer de cor e salteado e pode-lhe contar...
― A madrinha quando entra de férias? ― inquiriu o jovem, mudando perspicazmente de assunto.
― Eu estarei de férias logo à noite, se esta tarde ainda conseguir escrever o artigo para o Diário.
― Que bom! Assim já tenho com quem ir à praia, não é padrinho?
― Claro! A Dina apreciará, por certo, a sua protecção, Rui Patrício!
― Félix, acha que a Cristina o deixará ir comigo à praia, acha? ― perguntou a esposa, com uma maliciosa insolência estampada nos olhos.
― Vocês também?!...
― Não precisa de ficar assim corado, Rui! ― volveu a jornalista, apertando os dedos do marido ― É tão natural na sua idade. Não se esqueça que nós também já passámos por isso. Diga, então não é bonito ter-se alguém que nos ame? Vá, não fique assim arreliado! Se quer que lhe diga, você teve muito bom gosto. Ela é muito gira.
― Desculpe, Rui Patrício, mas eu fiquei tão surpreendido e admirado...
― Eu sei, padrinho, eu sei
― Pronto, não falemos mais nisso. Outra coisa, quando é que vocês querem ir à praia?
― Hoje não, Félix. Venho tão cansada! Amanhã, depois, você é que sabe da sua disponibilidade, querido.
― A Dina tem razão. Está na hora de o senhor também tirar umas férias, padrinho. Anda sempre tão triste! ― disse o afilhado, olhando-o compassivo.
― Eu vou pensar, eu vou pensar ― desabafou o arquitecto taciturno.
― Olhe que nós só vivemos uma vez, padrinho!
― Eu sei, Rui Patrício, porém neste momento estou sobrecarregadíssimo com aquele projecto de Alcabideche. Se calhar nos próximos quinze dias não estarei disponível, mas sei que poderei contar consigo para me substituir no que for preciso.
― Bem entendido, padrinho! ― exclamou ele entusiasmado.
― Esta tarde vai sair, Félix? ― perguntou a esposa, mergulhando a ponta da língua no molho do pudim.
― Porquê, você queria ir a algum lado, querida?
― Não, eu vou ficar aqui a rever uns apontamentos que tomei no congresso e talvez precise de uma ajuda para escrever a crónica de amanhã. Hoje, sinto-me tão desinspirada!
― Eu tencionava sair com o Edgar, mas se você...
― Não, deixe que eu lá resolverei. É, tem razão, sozinha terei outra paz de espírito...
― O Rui Patrício fica aqui consigo. Acredite, Dina, ele pode-lhe ser muito útil.
― Então o Rui vai ou fica? ― insistiu a jornalista, sentindo a hesitação do afilhado.
― Se calhar... Espere um minutinho. Com licença ― respondeu duvidoso.
Limpando os lábios, o adolescente levantou-se, correu à cozinha a cochichar com a velhota e voltou ligeiro para confirmar:
― Sim, madrinha, pode contar comigo depois de fazer a digestão.
― É, vocês dormem a sesta e depois trabalham ― adiantou o arquitecto, olhando o relógio, apressado. Bom, até logo!
― Acalme-se, Félix, acalme-se! ― implorou a esposa, gesticulando nervosa.
― Desculpe, Dina, mas já estou tão atrasado! ― retorquiu o marido, inquieto, limpando os lábios.
― Senhor doutor, o seu cafezinho! ― berrou a criada pelo postigo da cozinha.
― Não tenho tempo ― respondeu ele no corredor, carregando o estojo.
― Félix, espere! ― ordenou-lhe a esposa, saltando da cadeira para o beijar.
Rui Patrício levantou-se também e, olhando pelo espelho, viu-os abraçarem-se e beijarem-se demoradamente como no cinema e fechou os olhos, esperando cabisbaixo e amuado. No íntimo, os ciúmes começavam a devorar-lhe a alma. Assentando-se novamente, Dina acabou de comer o pudim. Quando lambia a colher, a madrinha sorriu-lhe ternamente e perguntou:
― Esta tarde o Rui Patrício tenciona sair?
― A senhora precisa mesmo de mim? ― perguntou-lhe ele, fitando-a sério.
― Por enquanto não, Rui. Se quiser sair...
― Não, eu vou dormir a sesta, madrinha. Acorde-me quando quiser ― volveu tímido, desviando o olhar da ravina dos seios que ela fizera ondular caprichosamente com um suspiro.
― Eu só vou ajudar a senhora Noémia a arrumar a cozinha.
― Até já, madrinha, ― murmurou ele de voz rouca, lançando-lhe discretamente um tchau carinhoso.
Ela respondeu-lhe com um riso discreto e começou a separar e a empilhar a louça. Entretanto, na cozinha, a governanta lavava os pratos da sopa e nem se apercebeu que a patroa estava a tentar abrir a porta toda dobrada sob o peso das terrinas de porcelana.
― A minha senhora vá descansar que eu cá faço o trabalho. Vá, dê-me esses pratos senão temos cacos da Vista Alegre ― disse ela, socorrendo-a decidida.
― Senhora Noémia!...
― Já lhe disse. Não ateime, está bem? ― repetiu a velhota, peremptória.
Largando a louça nas mãos da governanta, a patroa não insistiu e, passando pelo escritório onde pegou nuns apontamentos, retirou-se para os aposentos conjugais. Entrando no quarto, ela fechou a porta e estatelou-se no colchão. A fadiga da viagem e a frustração que o marido lhe causara, por não ter ficado para lhe dar o carinho que ela tanto esperava e desejava, depois de uma semana de total abstinência, decepcionavam-na terrivelmente. E pensar que ela sentira tanto a falta dele no Hotel em Londres e resistira à proposta indecente de um colega de profissão. O Félix era muito bom para ela, o melhor dos maridos que uma mulher pode imaginar, mas quando entrava no quarto... Assim frustrada, Dina sentia-se realmente cada vez mais à deriva e começava a perguntar-se se, porventura, valia a pena continuar a ser-lhe fiel. Oh, se os homens não a enojassem tanto!

Aos vinte e quatro anos, a jornalista, casada há quase cinco com o célebre arquitecto, que conhecera dois anos antes numa recepção em casa de amigos comuns, instigadores dessa união, atingira a maturidade e conseguira, finalmente, aquele equilíbrio físico-psíquico-emocional que lhe permitiria assumir a tão desejada maternidade. Apesar do marido ter quase o dobro da sua idade, eles sentiam-se tão felizes que as deficiências sexuais eram de somenos importância. Afinal, o Dr. Félix Fontoura ajudara-a a realizar todos os sonhos profissionais e a apagar, sobretudo, as nódoas da fase dissoluta da sua vida quando, por premente necessidade, tivera que conhecer outros homens. Arrastava consigo, porém, desde há um ano, a mágoa de não ter conhecido ainda a alegria da tão desejada e tão implorada maternidade. Como queria ser mãe! E essa frustração, fruto de uma inexplicável e teimosa relutância do marido em ser verdadeiramente pai, provocava-lhe um certo nervosismo.

Como poderia experimentar a felicidade maternal se o arquitecto raramente conseguia levar uma cópula até à deiscência? Traumatizado pela morte da sua primeira esposa e do filho que ele tanto adorara e com quem brincara na barriga da mãe durante a gestação, o Dr. Fontoura ficava irritadíssimo quando alguém lhe recordava que precisava de um herdeiro. Mas porquê tamanha hesitação? Mesmo quando a esposa, no calor dos seus jogos amorosos lhe pedia que a fecundasse, ele retraía-se e desistia imediatamente, como que apavorado. Quantas vezes, Dina, olhando-o na alma, tivera a impressão de que havia um segredo que ele se obstinava em não revelar. Sim, o marido escondia-lhe algo de terrível. Mas o quê? O feitiço de uma amante não seria certamente porque não o julgava homem para isso, se bem que por vezes chegasse a duvidar e a pensar que ele tivesse outra mulher... E foi naquele turbilhão sentimental que a madame Fontoura passou a sesta.

Às quatro da tarde, passadas duas horas de cismática solidão, decidiu pôr-se a pé e ir procurar o atencioso e adorável afilhado. Depois de disfarçar as olheiras, ela esticou os jeans amarrotados e apertou os cabelos em rabo de cavalo com uma fita. A crónica do congresso, que deveria entregar na redacção do jornal antes das oito da noite, preocupava-a. Querer não lhe faltava, mas inspiração nem sombra. É que, famosa, ela não podia decepcionar o patrão nem os leitores, a quem devia a fidelidade e o respeito. Haviam sido eles a dar-lhe a estrondosa notoriedade que conhecia e por isso devia, depois daquela semana em Londres, escrever-lhes um artigo que os fizesse sonhar e quebrar a monotonia desse país à beira-mar plantado, mas adormecido à sombra do passado e onde nada de extraordinário, a guerra colonial à parte, acontecia há cinco séculos.

No terraço, balançando-se no cadeirão do padrinho, Rui devorava tranquilamente um romance de amor. Da janela da varanda, a madrinha, apesar da urgência da sua tarefa, não resistiu à tentação de o olhar como um estranho e de, pela primeira vez, o desejar fisicamente. O dever, porém, fê-la descer, mais reservada e distante para não o induzir em pseudo deduções, lhe suscitar falsas ilusões ou uma qualquer impossível esperança.
― Olá, Rui Patrício! Então, vamos?
― Vamos, madrinha.
― Há muito que está à minha espera?
― Sim, há um bocado, mas não dei o tempo por perdido, sabe?
― Então porquê? Descobriu algo de interessante nesse livro?
― Quando lê, a gente aprende sempre. Muitas vezes, quando menos contamos, descobrimos coisas simples, mas que nos fazem felizes. Sabe, madrinha, - adiantou filosofal - hoje, por exemplo, descobri que quem não tem passado, não tem raízes, quem não tem raízes não tem futuro, quem não tem futuro não pode sonhar e quem não pode sonhar, nunca poderá ser verdadeiramente feliz porque a felicidade é vida e a vida é impossível sem raízes.
― O quê?! Estarei eu, porventura, diante um filósofo? ― desabafou atónita.
― Também não exagere, madrinha! ― implorou risonho, lançando-lhe um olhar irónico para dissimular a felicidade interior.
― Pode mostrar-me esse livro, pode?
― Mas para quê?
― Para copiar esse magnífico silogismo, Rui.
― Ah! a madrinha pensa que eu copiei isso do livro, não é? Pois, eu sei que para si nunca passei do coitadinho do afilhado do senhor arquitecto! ― desabafou o moço revoltoso, fitando-a com desdém.
― Rui...
― Largue-me! ― gritou afónico, cerrando a ira na garganta e fechando os olhos, estático.
Nas suas retinas inocentes aparecia um orgulho ferido. Lendo-lhas instintivamente, a jornalista vira quanto o magoara e não lhe perguntou mais nada. A evidência saltava aos olhos: o Rui mudara muito! Deixara-o rapaz amuado em Abril, nas férias da Páscoa, mas ele voltava-lhe homem feito e mais ousado no Verão. E se ele tivesse arranjado uma namorada assim tão depressa só para lhe causar ciúmes e lhe dizer que estava pronto para amar?

Pensativa, Dina afagou-o com um abraço, um beijo na testa e viu-o mudar radicalmente: a decepção metamorfoseou-se num júbilo tão profundo que, num ápice, a felicidade iluminou o seu rosto cândido. Assentando-se no sofá de couro castanho de pernas cruzadas, a jornalista tentou desesperadamente encontrar a fórmula mágica que lhe permitisse sair do beco onde se encerrara, escrevendo, escrevendo, mas a musa estava zangadíssima com ela.

De pé junto da estante da biblioteca, Rui Patrício meditava. Um silêncio absurdo, apenas cortado pelo ruído das folhas e a respiração da amnésica, enchia o escritório até ao tecto. Forçadas, as palavras recusavam-se-lhe obstinadamente. Foi então que, subitamente, ele lhe pediu que fosse tomar um chazinho inglês, respirasse um pouco, fechasse os olhos e que escutasse bem o mar sussurrante e os gritos pipilantes das gaivotas. Hipnotizada, a jornalista obedeceu sem pestanejar, largando a esferográfica sobre os gatafunhos que trouxera de Londres. Seguindo-a pela janela, Rui Patrício mirou-a dos pés à cabeça e sorriu confiante.

Sozinho, o adolescente assentou-se calmamente na cadeira do padrinho e, tirando uma folha branca da gaveta da escrivaninha, desenhou um hexágono e escreveu-lhe nos lados seis perguntas. No centro desenhou um coração e um ponto de interrogação. E, pousando a bic do hotel, foi-se embora pelas traseiras da vivenda. No portão, avistou-a debruçada sobre a grade do terraço e, apontando para a janela do escritório, desatou a correr para a praia.


As gaivotas pipilavam atarefadas e os pescadores de fim-de-semana lançavam o anzol, enquanto as sibaritas infortunadas esperavam que algum cavalheiro com fome de amor as convidasse para um passeio gratificante.


Evitando as ondas para não molhar os pés, o aldeagante procurou o rochedo onde a água não batia e assentou-se pensativo, fixando a linha do horizonte. E a musa complacente infiltrou-se na maresia e, entrando-lhe de roldão pelas narinas, removeu-lhe o tear pensante, inspirando-lhe:


Lá longe,
tão longe que o olhar
com profundo pesar
se esmorece, 
vejo a agonia de uma sereia
que de paixão se fenece
nas vagas da maré-cheia 
pensando que não merece
a maldita traição
de quem lhe arrancou o coração... 
Lá longe,
nos confins do mar,
existe a redenção da flor
que não soube curar
o primeiro desgosto de amor
e atraída pelo abismo profundo
quer dizer adeus ao mundo ...


Mas como era bom colher a maresia quando o dia ainda nem se fenecia! O tempo sumira-se breve e tão de leve que nem escutara uma voz de fada roçar-lhe sibilina pela fronte, tão mansinha como a neve, e reter-lhe a febre afogada no seu olhar. Tapando os ouvidos, murmurou eu sei, seu sei , como se a musa lhe devolvesse os ecos apaixonados dos corações, por quem começava a morrer verdadeiramente de amores.

Erguendo-se arrepiado, o sonhador devolveu ao horizonte o fio da mirífica exaltação que o prendia ao céu e aterrou. Uma inebriante sensação de pureza reflectia-se-lhe no rosto transfigurado. Não admira pois que a aura do poente não o largasse. Mal transpôs os portões da vivenda, deu com os olhos no Mercedes e sentiu-se mal, fustigado pelos pensamentos indecentes, mas logo se dominou e partiu decidido à procura dos padrinhos. Encontrou-os no escritório em confidências. Olhou-os discretamente e prosseguiu sem lhes ligar. Pouco depois, no seu quarto, escutou o arquitecto chamá-lo:
― Rui Patrício!...
― Já vou padrinho, já vou.
Correndo lesto, desceu aos três os degraus e perguntou ofegante:
― O padrinho que me quer?
― Faça o favor de acompanhar a Dina à 5 de Outubro a Lisboa.
― É longe? Vamos demorar? Estou bem assim? Voltamos tarde?
― Dentro de uma hora devem estar de volta para jantar. Você nem precisará de sair do carro. É só para que ela não se aborreça durante a viagem. Eu não posso ir porque estou à espera de um telefonema. Vá, cuidado e não se demorem! ― aconselhou o arquitecto.

O adolescente obedeceu, correndo a assentar-se ao lado da madrinha. A viatura desapareceu na direcção de Oeiras, mantendo-os silenciosos durante mais de dez minutos. Embalados pela doce canção dos Moody Blues, as palavras eram inúteis; a estranha sensualidade da melodiosa Nights in the white satin resvalava com fragrância pelos deleitosos contornos femininos.

Rui Patrício tentou esconder o fascínio que ela lhe provocou e virou os olhos esfomeados para a Ponte de Salazar que atravessava o Tejo e ligava Lisboa ao Cristo-Rei de Almada, na outra margem, mas foi-lhe impossível resistir a tanto charme: os lábios vermelhos, os seios, as sobrancelhas, os olhos, os cabelos e o perfume que ela exalava, foram mais fortes. Assim subjugado, à medida que os quilómetros passavam, aquele jogo, inicialmente delicioso, ia-lhes viciando irremediavelmente o corpo e a alma. Adivinhando o ponto de ruptura, ela, que fixava a estrada e segurava bem o volante com as duas mãos sem pestanejar, arrepiou-se e soltou um tchim que a fez espirrar e balancear anormalmente os seios. Sentindo-a libidinosa, sorriu-lhe e murmurou timidamente:
― Santinha!
― Obrigada, Rui, ― agradeceu afável, retribuindo-lhe o sorriso carinhoso.
― Ainda falta muito, madrinha? ― perguntou o adolescente, olhando a azáfama das buliçosas ruas da cidade.
― Estamos mesmo a chegar, Rui. Espere um pouco que eu não demoro ― respondeu ela, estacionando o carro sobre o passeio de basalto.
― Não demore, Dina ― recomendou ele impaciente, olhando-lhe as ancas.
Ela, desconchavando-se toda, ajeitou a roupa em plena corrida, e entrou por uns portões de vidro. Pela janela, ele via-a gesticular com um velhote muito atencioso de uniforme cinzento. Ela parecia tão ansiosa que nem viu que a folha e o envelope que estendia ao porteiro caíra ao chão. Aflita, voltara-lhe as costas e correra a assentar-se ao volante. Não demorara um minuto. Disfarçando o olhar cobiçoso, Rui Patrício sintonizava o rádio. Accionado o motor de arranque e levantado o travão de mão, o Mercedes começou a deslizar pela calçada.
― A madrinha voou! ― exclamou radiante.
― O Rui é bem imprevisível...
― Porque diz isso, madrinha?
― Mas é ou não é verdade?
― Talvez. A Dina sabe...
― Ah, até que enfim! O menino assume-se como homem e ainda bem, porque senão será um castigo para quem tiver que o aturar pela vida fora.
― Aturar, madrinha?!
― Sim, afilhadinho. Porventura já imaginou o pesadelo daquela mulher que casa com alguém que não é capaz de assumir as suas responsabilidades?
― Olhe, madrinha, eu nunca fugirei às minhas responsabilidades, nem me tornarei tampouco, deliberadamente claro, pesadelo de alguém, sabe? Preferia morrer! Oh, esqueça, que estas não são contas do seu rosário.
― Morrer?! Credo, Rui, não me diga que está assim tão desgostoso da vida?!
― Oh, desculpe se a incomodei, Dina!
― Se alguém se deve desculpar sou eu, Rui. Há pouco fui bem estúpida, não fui? Vá, não finja que eu detesto mentiras.
― Está a referir-se ao incidente do silogismo, é?
― Sim. Fui estúpida não fui?
― Estúpida não direi, porque você ainda não me conhece, nem sabe do que eu sou capaz, mas orgulhosa certamente...
― Então que devo fazer para que você me perdoe?
― Nada, absolutamente nada. Ah, sim, sorria-me, por favor!
― Só? Mas isso não custa nada, Rui! ― desabafou sorridente a jornalista.
― Tudo nada vida tem um preço, Dina, e para mim não há dinheiro que pague uns olhos assim. Os seus são tão lindos! ― balbuciou emocionado.
― Lindíssimo foi aquele silogismo. Você nem imagina a alegria e a sensação interior que senti! Enfim! ― confessou arrependida, fitando-o de fugida para que ele não lhe visse os olhos mareados.
― Se começou a chorar para os tornar feios, enganou-se redondamente.
― Você está a mexer comigo, sabia?
― Talvez, mas então isso é recíproco, Dina.
― O Rui pensou no que disse, pensou, ou...
― Eu sabia, enfim, desconfiava, mas agora tenho a certeza, meu Deus! Oh, o que é que eu fiz?! Perdoe-me, madrinha, mas é verdade que penso muito em si.
― Desde hoje, desde quando, Rui?
― Desde sempre, Dina, desde sempre!
― Rui!?... ― volveu confusa e envergonhada, mordendo os lábios e segurando bem o volante com as duas mãos.
― Não sei se devo contar-lhe a verdade.
― A verdade nunca fez mal a ninguém, Rui.
― A primeira vez que a vi, ― prosseguiu impávido ― recordei ápices da minha infância e pensei que você seria a mãe que o destino me roubou brutalmente; depois, curada a fase da nostálgica reminiscência, passei a olhá-la apenas como a madrinha, mas agora, que me sinto crescer em maturidade, desculpe, mas só a vejo como a mulher fascinante que é e um homem deseja. Sabe, no calor dos meus sonhos, você é apenas a maravilhosa e doce Dina, a musa que adormece comigo todas as noites, mesmo sabendo que depois, quando acordo, tenho que pedir perdão a Deus...
― Amar não é pecado pois não?
― A si, talvez? Enfim, não sei, mas..., desculpe, esqueça...
― Eu também te amo muito, Rui. Vá, não te atormentes.
― Eu bem queria, mas não consigo. Por vezes até me pergunto que diabo de bicho sou eu, quando não penso que sou um bicho do diabo!
― O que vai ser de nós, Rui, o que vai ser de nós?
― Deus vai ajudar-nos, madrinha!
― Se soubesse como me sinto confusa!
― Eu sei que para si não é fácil nem evidente viver na mesma casa com dois homens, um que o é, mas não o assume integralmente e outro que, ainda não o sendo verdadeiramente, tanto o quer ser e vive a sofrer por não poder amar quem mais deseja no mundo, por muito querer ao moribundo sentimental, a quem tudo deve...
― Você tem o condão de ler na alma dos outros e de lhes dizer o que eles sentem e nem sempre têm a coragem de assumir, não é, Rui?
― Talvez, Dina, talvez... ― repetiu dubitativo e melancólico.
― Como se sente? Porquê esses olhos tristes? Estará porventura a pensar que eu fui, sou ou serei infiel ao seu padrinho?
― Longe de mim tais pensamentos. Não!
― Rui, saiba que nunca na minha vida consegui ter com ninguém uma conversa tão íntima e franca como esta que agora estou a ter consigo.
― Eu sei! O seu olhar diz tudo.
― Está a desejar-me não está?
― Sim, mas não como a Dina pensa.
― Sexualmente, quer dizer?
― Sim. Quando iniciámos a viagem, aí, sim, desejei-a fisicamente porque o seu charme feminino me excitava e há muito que me subjuga, mas agora, que lhe pude falar e abrir o meu coração e, sobretudo, conheço a nobreza da sua alma, adoro-a ainda mais e tê-la assim perto de mim suscita-me um prazer interior muito maior do que o sexual, porque eu tenho a certeza que você, quando tiver que ser, será minha e então amá-la-ei como um homem ama uma mulher.
― Que Deus me ajude a merecê-lo e a manter-me digna de ser quem sou.
― Oxalá, Dina, oxalá!
― Tchut! ― balbuciou serena, acariciando-lhe os lábios com os dedos finos.
Aquele gesto bastou para selar os seus corações e devolver-lhes a dignidade e a frieza que o respeito lhes impunha. Mais três minutos e estariam novamente face a face, distantes, respeitosos e joviais como dantes.
O arquitecto aguardava-os diante dos portões escancarados. De cachimbo entre os beiços, ele não parava de andar nervosamente para trás e para a frente e de se debruçar sobre o muro da estrada Marginal. Uf! Graças a Deus, hei-los que chegavam!...
― Seus malandros! ― gracejou irónico, retirando o cachimbo fumegante.
― O padrinho estava inquieto? A madrinha rola devagar, mas é boa condutora. Durante a viagem nunca largou as mãos do volante.
― Você ainda não conhece as manhas desta estrada, meu filho! A Dina tem razão: de Cascais até Lisboa a paisagem é tão linda que certos condutores se esquecem de guiar, mergulham no mar e ...
― Senhor doutor, venham comer! ― gritou-lhes a governanta aflita.
Antecipando-se aos padrinhos, que haviam tranquilizado a velhota com um aceno, Rui foi lavar-se e pentear-se à pressa. Quando entraram na sala de jantar, os padrinhos surpreenderam-no a murmurar baixinho com a senhora Noémia na cozinha.

" Cristina não é do meu mundo! " ― dizia decepcionado por ela não lhe ter telefonado como prometera na véspera. A frustração tirara-lhe a vontade de comer. Aborrecido, tomou apenas a sopa e, desculpando-se, retirou-se. Mal virou as costas, a velhota correu a cochichar aos patrões:
― O Ruizinho pensava que a menina lhe telefonava. Coitadinho, ficou tão triste que nem comeu nada!
― O Rui é muito corajoso e saberá dar a volta aos desgostos ― acrescentou a patroa, insensível, apertando a mão do marido.
― A Dina tem razão, senhora Noémia. Isso passa. Ele é muito novo e amanhã, se Deus quiser o amuo ter-se-á eclipsado. Vá, não se aflija.
― Deus o ouça, senhor doutor, Deus o ouça! ― implorou a governanta, benzendo-se devotadamente.
Depois do jantar, o casal retirou-se para o terraço. Abraçados, eles contaram as estrelas e mataram, finalmente, as saudades, beijando-se amiúde. Divertida, Dina ora roubava o cachimbo ao marido, ora ameaçava atirá-lo ao mar.
Entretanto, a velhota fora deitar-se cansada.


Sozinhos, excitados pelas mordeduras e as apalpadelas sensuais, eles apagaram a luz do terraço e aninharam-se um no outro, deixando-se embalar pelos sussurros do mar. A jornalista sugeriu ainda ao marido uma noite romântica ao luar, porém ele recusou, preferindo ir mais cedo para a cama. Pudico e tímido, o Dr. Félix sempre fora muito introvertido, porém, depois da morte da Alice, o primeiro e único amor da sua vida, com quem se casara e que perdera num ensolarado 15 de Agosto, a culpabilização por essa tragédia traumatizara-o e roubara-lhe a felicidade.


Todavia, desde a chegada do afilhado, sentiu a chama da apetência reavivar-se, apesar de o boletim clínico, que ele escondia à esposa, lhe aconselhar prudência. E aquela noite, depois de uma semana de penitência, deve ter sido realmente mágica. Esfomeados, os seus corpos devem, certamente, ter-se desforrado e conservado acesa a chama do amor até alta madrugada.


continua em: Sábado, 21 de Julho ( 5º )

Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson