quinta-feira, 26 de maio de 2011

A conspiração - I Quid?

A Conspiração - Captítulo I - QUID !



Envoltas nos derradeiros resquícios de negridão, duas gabardinas cinzentas largaram o armazém e, céleres, atravessaram a pista de olho fino e pé ligeiro, rumo ao canto escuro, onde os holofotes de vigilância, que, de dois em dois minutos, iluminavam meticulosamente os pontos nevrálgicos da base aérea, não chegavam.
Imobilizando sorrateiramente a avioneta no terreiro, o piloto desligou o motor e abriu a porta ao passageiro que, mal teve tempo de lhe acenar, tamanha era a pressa dos capangas, que, manu militari, lhe assaparam as manápulas, sem o saudar nem lhe perguntar se fizera boa viagem.
Impondo silêncio ao passageiro, um deles surripiou-lhe a pasta de couro negro, enquanto o outro, agarrando-o pelo braço, o obrigou a forçar o passo e a seguir no seu encalço. Entretranto, estacionado há horas numa viela deserta, o motorista do boca de sapo, cansado de contar os segundos e de espiar o fulcro do horizonte vezes sem conta, começou a ficar nervoso e roer as unhas de desespero: é que, se tiros não ouviu, dos camaradas nem sombra ou cheiro nauseabundo, e já lá iam duas horas. Farto de mirar em vão e de respirar o ar viciado da cabina, preparava-se para acender um cigarro no bréu nocturno, quando um estalido metálico quase lho fez engolir. Depois, dando-lhe um safanão colérico, o chefe intimou-lhe que se pirasse dali. Dando à chave e accionando a ignição do Citroen, o chofer acelerour e, arrancando a toda a brida, levantou uma nuvem de poeira que, iluminada pelos faróis do boca de sapo, criou à sua frente uma ilusória aurora boreal. Calados como ratos, dos passageiros, nem tuge nem muge!

Entretanto, algures, a uma centena de quilómetros de Beja, num bar de alterne, dois noctívagos, visivelmente agastados com a presença do último cliente, a quem não paravam de intimidar com aqueles olhos coléricos, urdiam nervosamente a sua teia. Foi então que um deles, apercebendo-se que o pamonha-macambúzio cobiçava as pernaças da espanhola de serviço, se ergueu e, cochichando ao ouvido da chica, enfiou-lhe discretamente uma quinhenta no slip, antes de retornar discretamente para junto do comparsa. Ainda se acomodava no sofá e já o intruso seguia, tal cão esfomeado, a meretriz por quem a indomável tumescência batia a continência há mais de duas horas.
Empiscando ao barman, encomendaram-lhe uma garrafa de champanhe, que ele retirou maquinalmente do frigorífico, colocou num balde de gelo e entregou à rainha do pub, uma húngara, que a patroa lhe despachara discretamente do salão VIP, onde costumava receber destinado aos seus fiéis e generosos protectores. Toda charme e sedução, a loira não se fez rogada e, derreando-se lentamente, expôs-lhes graciosamente os generosos contornos erógenos, antes de retornar langorosamente ao balcão para buscar as duas taças que o garçon acabava de limpar...

Quase simultaneamente, mais a norte, num bingo clandestino, um quarentão sisudo e com cara de poucos amigos, dava de olhos a dois mariolas e, sentando-se à frente deles, enfiava-lhes discretamente na mão um embrulho de papel, que o matacão metia sorrateiramente no bolso da gabardina. Depois, apertando a mão ao ilustre comanditário, empiscou ao comparsa, que, levantando-se de um pulo, o seguiu sem pestanejar por entre a balbúrdia gananciosa dos apostadores.
Erguendo o braço, o senhor encomendou um duplo whisky seco, que a servente lhe entregou insinuante. Retirando da carteira uma nota, ele pagou-o e, bebendo-o de um trago, retirou-se tão perturbado que até se esqueceu de receber o troco, deixando a moça embasbacada a olhar para a porta, por onde ele se sumiu.

Enquanto uns tramavam na escuridão e outros se divertiam com a Conspiração !...



LMP - Luxemburgo, 1981 - A Conspiração !

Capangas de Camarate - Preâmbulo da Conspiração !


MOSCOVO ― URSS
Kremlin, 13 de Agosto de 1979





No salão imperial, a nomenclatura soviética, alinhada atrás do féretro parece viajar por outras galáxias. Mais que a tristeza pelo falecimento súbito do venerando e mui respeitado camarada Skulakov, os apparatchiks sentem já apreensão dos dias tenebrosos que os ventos capitalistas sopram do ocidente. O silêncio asfixia-os, mas eles não ousam sequer a quebrar a monotonia daquela irracional cerimónia fúnebre: é “ esquizo-pestânico ” supremo, como eles apelidam o Chefe, ultimamente tem andado mal-humorado e os lambe-botas do KGB, para o aliviarem das cefaleias demoníacas, não se cansam de lhe servir bodes-expiatórios ao mata-bicho com as mais tenras gazelas das estepes siberianas.
― Pst! Silêncio! ― sussurrou por entre os dentes o cicerone presidencial.
“ É preciso ser bem idiota para exigir silêncio a moscas mortas! ” ― cogitou um neófito miliciano, oriundo de Murmansk.
Perscrutando as múmias circundantes, mestre bradou eufórico, batendo energicamente os tacões das botas no sobrado luzidio.
― Sua Excelência o Secretário Geral do Soviete Supremo e do Politburo da União das Republicas Socialistas Soviéticas, camarada Boris Kaganev!
Assustada pela ruidosa saudação prestada pelos camaradas vindos dos quatro cantos da Rússia, a viúva do defunto foi acometida por ataque de tremedeira e quase desfaleceu. Valeu-lhe a mão providencial e braço másculo do guarda-costas de Kaganev, que a susteve e suspendeu enquanto que o chefe lhe apresentou os pêsames, antes de a despachar para fora do salão com um sentido ósculo proletário.
Eclipsando-se no meio dos imponentes paletós negros, a velhota furtou-se discretamente, deixando os camaradas estrangeiros apresentar uma sentida e sublime vassalagem ao sisudo esquizofrénico. Tal múmia petrificada, Kaganev em pestanejava, oferecendo maquinalmente a mão aos seus súbditos.
Ainda o cortejo vinha a meio, quando, avistando o representante da Lusitânia encolhido sob um arco, apertou violentamente os dedos do camarada cubano com a mão direita, e o invectivou desvairadamente com o indicador esquerdo, intimando-o a passar adiante e a vir escutá-lo imediatamente.
― Como te chamas, donde vens e quem representas? ― questionou Kaganev.
― Eu sou o camarada Caixinha, venho representar os camaradas do Alentejo...
― Só?! Mas então o camarada Kaganal ainda não chegou ao Minho? Com os sacos de rublos que lhe tenho dado, já era para ter, pelo menos, atingido o Douro. Ó Kaikai, com esse ritmo, nem daqui a cem anos pertenceis de facto à Internacional Proletária Unida.
― Como Vossa Excelência, o engenheiro da Grande Rússia, sabe, agora, lá em Lisboa temos um Primeiro Ministro que veio do Norte e...
― E vale mais que vós todos juntos, seus camelos! Bom, não te assustes, que ainda não é desta vez que te envio para o Gulag.
― Gulag?! Credo, cruzes, valha-me Nossa Senhora de Fátima! — benzeu-se o alentejano, fazendo o esquizofrénico escancarar as órbitas, tal diabo aterrado diante da cruz..
― Sim, Gulag, Cai...
― Caixinha!
― Pois é, camarada Cai... Ora... Ei, escuta, que não to volto a repetir: a partir de hoje, tu és o camarada Kaikai desse canteiro a que tu chamas Portugal, ouviste?
― Perfeitamente, camarada Kaganev. Perdão, camarada engenheiro!
― Engenheiro?! Mas... quem te permitiu tamanha intimidade?
― Perdão! Mil vezes perdão, camarada Presidente, Supremo Engenheiro da Internacional Proletária Unida!
― Basta de lérias, Kaikai! Amanhã, quero que digas ao Kaganal que só lhe dou até ao Natal...
― Amanhã, camarada Presidente?!
― Sim, amanhã! Aliás, ontem, porque eu já estou farto dos aprendizes revolucionários lá da vossa terra. O único que podia ter feito qualquer coisa era o Kutelo, mas... Bom, amanhã...
― Amanhã é impossível porque eu vim de combóio e em segunda classe.
― Niet! Niet, camarada Kaikai! Tu voltas de Topolev.
― Topolev?! Mas...
― Se te atreves a duvidar outra vez, mando-te para o Gulag servir sopa com escaravelhos aos...
― E se o Topolev cai?
― O Topolev nunca caiu, não cai, nem cairá, pelo menos enquanto que o mouro Kagaki nos der uns barris de petróleo...
― E ninguém o sabotar.
― Os sabotadores da revolução estão na Sibéria. Vá, aproveita a viagem para pedir uma ajudinha ao camarada Kagaki e diz ao Kaganal que não me apareça mais diante dos olhos sem ter resolvido todos os vossos problemas, porque a Revolução Suprema não pode esperar pelos atrasados mentais e pelos moinantes que tendes a viver à nossa custa lá no vosso canteiro. Resultados, quero resultados, ouviste, Kaikai?
― Sim senhor, camarada Presidente, Supremo Engenheiro e Comandante da Internacional Proletária Unida...
E mais não lhe permitiu Kaganev, despachando com um aceno. Retirando-se sisudo e mudo, Caixinha escondeu-se envergonhado debaixo do pórtico que protegia os ilustres comunistas da canícula estival: é que no mês de Agosto, Moscovo era um verdadeiro inferno.
A noite caía sobre o Kremlin, quando o Topolev descolou da base militar rumo ao ocidente. A bordo, além de Kagaki e dos seus capangas, seguiam mais duas babuschkas caucasianas que Kaganev lhe dera como prémio pelos serviços prestados à causa proletária. Intimidado com os trejeitos das loiras, Kaikai preferia fingir-se adormecido.

LMP - Luxemburgo, 1981

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Herói em fuga - Adeus até Abril ! - Cap.IV

IV


Perto da meia-noite, apoquentada pelo sono, colou-se ao príncipe para dormir também, mas o inconsciente entrou em delírio, repetindo um rosário de palavras sem nexo. Espevitada, saltou do leito para ir apanhar um bloco e uma esferográfica no armário da sala, mas quando voltou o sonhador emudecera. Enternecida, baixou-se para o beijar antes de dormir e viu-lhe o rosto molhado. Colhendo uma gota com a ponta da língua, confirmou o que a evidência crua e nua: eram lágrimas. E o seu coração entrou em pânico com a avalancha de pressentimentos.
Acordando assarapantado durante a noite, David levantou-se para ir ao quarto de banho e, parando diante do espelho para espremer a borbulha que lhe nascera na testa, descobriu espantado que estava todo vestido. Ao procurar um lenço para se assoar, apalpou a embalagem de comprimidos que o doutor Viegas lhe receitara depois da síncope da antevéspera diante da Giola e comer uns biscoitos para enganar o estômago e assim poder tomar as cápsulas vermelhas. E, sorrindo para o 3x médico gatafunhado na caixa, engoliu quatro comprimidos para recuperar o atrasado. Acalorado, descalçou as meias e despiu as calças e a camisa, entrelaçando-se na voluptuosa Marisa que, sentindo-o agarrá-la fervorosamente, fingiu dormir, deixando-se beijar nas costas, apalpar os seios e as coxas e baixar as calcinhas para que o membro viril arranjasse um aconchego onde cair.
Apesar do desejo, David reteve-se e acabou por adormecer assim, frustrando a vénus suspirosa que, vendo a tumescência esvair-se molemente, lá se resignou a colar novamente no sono. E o novo ciclo foi transcendental! Viajando pelo mundo etéreo do Além, Marisa sonhou, como há muito não se lembrava, e, feliz, ao acordar, quis dize-lo ao seu príncipe. Radiante, roubou-lhe um beijo, sacudiu-o e ele esmoreceu como um daqueles palhaços do circo que se partem todos e caem ao sobrado, antes de saltarem como cabritos.
— Deixa-te de brincadeiras que me assustas, David! — implorou queixosa.
Mas o insolente nem lhe ousou rir-se dela. Pensando que estava a gozá-la e se preparava para a violar, Marisa antecipou-se e saltou para cima dele, pregando-lhe os pulsos contra o colchão e, descobrindo-o inanimado de olhos arregalados, deitou as mãos à cabeça, gritando aterrorizada:
— David!!! David!!! Ó meu Deus!!! Isso não David! Por favor, acorda, meu amor! David!!!
E apesar de toda a dor do mundo explodir naquele grito, aquela hora, ninguém a ouviu. Tetanizada pelo terror, nem o beijou. Correndo a levantar o auscultador, deu com os olhos no cartão que a ex-professora lhe deixara discretamente na véspera, discou o número.
— Alô? Alô? Oh! Pôr amor de Deus, despachem-se!...
— Sim, aqui é...
— Diga à D. Alice que a Marisa encontrou o David inanimado e precisa de um médico. Rápido!!! — berrou a tresloucada, desligando o telefone.
Picada por aquele grito lancinante, a criada perdeu a cabeça e entrou pelo quarto da patroa adentro, bradando aflita:
— Telefonaram-lhe a dizer que o David morreu, mas que fosse rápido com um médico!
— Quem, Amélia, quem?! — indagou a senhora incrédula, saltando abismada do leito.
E, ligando instantaneamente para o Hospital Militar, ordenou que dissessem ao Dr. Viegas que o David estava inanimado e lho levariam para junto da Giola. Depois, baixando e levantando o auscultador despachou o médico das urgências para o apartamento da ex-aluna, ameaçando-o de despedimento se, por negligência, não chegasse a tempo de salvar o filho do Senhor Ministro. E, vestindo-se à pressa, pegou nas chaves do carro, saindo de casa como uma desguedelhada, insensível ao reparo da criada.
Desaparecendo a toda a brida, ainda raspou o Citroen na carreta do jardineiro, mas nem olhou para trás. Dez minutos depois, entrava espavorida no apartamento, abraçando-se à Marisa que, lacrimosa, de pé, e também desguedelhada nuns jeans e numa blusa mal apertados, assistia às desesperadas tentativas de reanimação do médico. David parecia um anjo de calças. O seu rosto era iluminado por um sorriso plácido, caprichosamente irónico.
Auxiliada pela enfermeira que, por falta de ambulância, lhe cedera o carro, o médico colocou o doente sob transfusão e respiração assistidas e, sempre a auscultá-lo, pensando ver a esposa do ministro e a nora desguedelhadas, sugeriu timidamente:
— As senhoras arrumem-se que o helicóptero deve estar a chegar.
— Helicóptero, senhor doutor? — retorquiu a Marisa soluçante.
— Sim, durante a viagem avisámos os nossos superiores do sucedido ao filho do senhor ministro e, nestes casos, o Estado manda utilizar todos os meios de que dispõe.
— O David vai salvar-se?
— Bom, eu fiz o que tinha a fazer e tenho Fé...
— Saiam! — gritou o militar que segurava a dianteira da maca.
Enquanto os soldados amarraram o doente, elas pentearam-se à pressa e, fechando a porta, seguiram-no até ao helicóptero que se mantinha accionado no meio do asfalto da avenida. O médico entregou as chaves do carro à enfermeira e, ajudando os soldados, assentou ao lado do paciente, enquanto, por falta de espaço, as infelizes, depois de os mandar para o Hospital Militar, desapareceram no Citroen.
Vinte e cinco minutos depois, entrando no corredor para se abeirarem do quarto de reanimação, o Dr. Viegas diagnosticava-lhes uma tentativa de suicídio falhada. O moço, talvez psicologicamente afectado pelo estado da Giola, quisera ir ter com ela, mas a dose ingerida não fora suficiente para lhe causar lesões irreversíveis em nenhum órgão vital.
— Tem a certeza, Dr. Viegas?
— Absoluta! — respondeu categórico.
— Acalme-se, Marisa, que o Dr. Viegas sabe o que diz. Vá, venha comigo...
— Posso falar-lhe, doutor?
— Por enquanto não, mas logo que seja possível...
— E a menina Giola?
— Na mesma.
— Posso vê-la?
— Com a Dra. Alice, mas, por favor, não se abeirem muito dela.
— Obrigado, senhor doutor. Ah! só mais uma coisa...
— Diga, menina...
— Não, desculpe, era asneira...
— Asneira?!
— Sim, ideias malucas... — respondeu envergonhada, consultando a mãe da donzela.
— Sim, diga, Marisa, diga que fica entre nós, não senhor doutor?
— Certamente, Dra. Alice.
— Bom, — adiantou medrosa — como eu tenho a certeza que o David não se quis matar, Deus pode ter permitido que tal acontecesse...
— Deus?! Permitir um suicídio?! Não, isso é absurdo, menina! — cortou imediatamente o médico, parando o raciocínio da moça.
— Desculpe...
— Não, doutor, escute que a Marisa ainda não acabou, pois não?
— Oh! deve ser mesmo uma tolice! — retraiu-se intimidada.
— Então perdoe a minha precipitação, menina! Vá, por favor continue.
— E se Deus permitiu que tal acontecesse para eles ficarem mais perto um do outro?
— Mais perto?!
— Sim, doutor, o David anda muito abalado. Só fala em ir ver o que se passa do outro lado, em ficar no mesmo nível da Giola...
— Mesmo nível, senhora professora?!
— Sim, ao mesmo nível, doutor. Se eu bem entendo a Marisa, o David quer ficar em coma para poder comunicar melhor com a minha filha, Dr. Viegas.
— Coitado, o rapaz deve ver muitos filmes de ciência ficção! Daqui a um século, Dra. Alice, não digo que não se tentem experiências deste tipo, até porque a manipulação genética e a clonagem, que estão a dar os primeiros passos, também...
— Desculpe a minha insistência, Dr. Viegas, mas se eles se amavam de verdade. Oh! desculpe, Marisa! — bradou a D. Alice, fitando contristada a rival da filha.
— Por amor de Deus não se desculpe, senhora professora, porque não disse nenhuma mentira. Eu sei muito bem que o David nunca amou ninguém como a Giola.
— Então as senhoras estão sugerir-me que coloque o David em estado de coma...
— Deus me livre, doutor! — bradou aflita, arregalando os olhos para fitar melhor a ironia velada que pairava nos olhos do médico.
— Não se assuste, Marisa, que esse coma é superficial e tem sempre bilhete de ida e volta — explicou D. Alice, segurando-lhe as mãos.
— Ah! não digam que vão fazer experiências com o David! Não isso, não é justo, senhora professora, o David não lhe merece tal... E se as coisas correm mal e ele não acorda mais?
— A menina tem razão, mas falemos com o Senhor Ministro, que deve estar a chegar e aguardemos os resultados de todos os exames que estamos a fazer, como podem ver — disse sério, abrindo-lhes a porta do quarto de reanimação, onde vários médicos se atarefavam com tubos e máquinas à volta do doente.
— Vocês vejam lá o que vão fazer, doutor?! Olhe que com o frágil fio da vida não se brinca!
— Não se assuste que tudo correrá bem, menina, — insistiu o doutor, segurando-a pelo braço para lhe acalmar aquele agitado nervosismo.
— Por amor de Deus, não me agarre!
— Calma, Marisa, calma!
— Não, senhora professora, eu nunca quis sugerir nada disso! Eu só pensei que o David e sua filha ficassem ligados por uns fios... — choramingou espavorida.
— Sossegue! Eu juro-lhe que não tentaremos nada sem o seu vosso consentimento — afiançou a esposa do ministro.
E, olhando-se nos olhos, as mulheres abraçaram-se a soluçar. Comovido, o médico entrou no quarto de reanimação, deixando-as reconfortarem-se mutuamente até que os seus corações contritos anestesiaram a dor ululante que corria desesperadamente pelas suas veias.

Na sala contígua, Giola mantinha-se insensível àquele corrupio geral. Depois de uma noite em claro, o papá da donzela, que dormira apenas duas horas e fora ao Ministério do Interior entregar o relatório da sua missão ultramarina à secretária, a fim de o poder apresentar ao Presidente do Governo no mesmo dia, parecia louco. Foi aí que soube da maluquice do pretensioso e, apesar de todo o ódio que lhe tinha, activou imediatamente o plano de emergência utilizado para as personalidades do regime, mais para agradar à mulher que propriamente salvar o comunista que lhe enfeitiçara a menina dos seus olhos, para quem sempre sonhara o melhor partido de Portugal, o herdeiro de uma das maiores fortunas do país, um Mello, um Espirito Santo ou, quem sabe?, um dos filhos de Champallimaud.
— Olá!, querido! — exclamou a esposa consternada, beijando-o carinhosamente no rosto.
— Bom dia, menina...
— Marisa Belchior! Prazer em ve-lo Senhor Ministro — respondeu pesarosa, estendendo-lhe a mão.
— Marisa Belchior?! — retorquiu o ministro dubitativo, consultando a esposa.
— A professora Marisa Belchior é uma das minhas antigas alunas...
— Ah! Já nem me lembro, mas não se chamava também Belchior a tolinha que livrou o nosso figurão de uma grande surra no liceu, não?
— Essa mesma, senhor ministro — respondeu a intrépida.
— Ah! foi você quem... Sim senhor, a professora Belchior foi uma mulher muito corajosa, mas bem se vê que aquele rapaz não merecia tal sacrifício. Acreditem, ele não tem juízo!
— O senhor Ministro nunca falou com ele, pois não?
— Nem quero! — adiantou categórico, abeirando-se da cama da filha.
E ninguém mais ousou abrir a boca. Revoltada, Marisa olhou a professora e retirou-se para o corredor, onde cruzou o Dr. Viegas que corria aflito para junto do ministro. Espreitando para o interior da sala de reanimação, deu com os olhos na Fátima que, vendo-se livre da presença do chefe, lhe pediu que se despachasse. Sob transfusão, David dormia profundamente, mas via-se respirar.
— Eu sou a Fátima. Sossegue que o David está bem — balbuciou a enfermeira.
— Por favor cuide bem dele, Fátima. Desculpe, eu sou a Marisa e fui eu quem o descobri inanimado. Sabe, ele chegou na sexta-feira e estava comigo.
— Pronto, Marisa, agora é melhor retirar-se para o corredor e esperar pelo Dr. Viegas.
— Obrigada, Fátima!
— Coragem, Marisa, que o David é muito forte.
— Obrigada — balbuciou confiante, saindo pensativa.
Desesperada pelos trinta minutos de cismáticas deambulações pelo corredor, espiou as saídas das salas contíguas e espreitou para a sala de reanimação, pedindo à Fátima que lhe arranjasse um copo de água, pois, àquelas horas sem comer, começava a sentir tonturas. Proibida de abandonar o doente por um segundo que fosse, a enfermeira indicou-lhe a cantina. Menos de três minutos depois, Marisa abria novamente a porta e, dando com os olhos na Fátima a dar mimos ao doente, encostou-se à parede até que, largando a ilustre família por segundos, o Dr. Viegas lhe acenou da soleira da porta.
“ Uf! que alívio! ” — pensou para consigo, acorrendo lesta.
Apenas atravessou a porta, deu com os olhos no Senhor Ministro que, fitando-a envergonhado, lhe estendeu humildemente as mãos. Por detrás, a Dra. Alice piscou discretamente e, cruzando os lábios com o indicador, sugeriu-lhe que não contrariasse o marido. Percebendo aquele pst abafado, perguntou cabisbaixa:
— O Senhor Ministro que me deseja?
— Por favor levante-me esses olhos bonitos, porque se alguém os devia baixar...
— E quem é que aqui terá a coragem de os levantar, enquanto que eles não estiverem livres de perigo?
— Seguramente, senhora professora, morrendo a Giola, acabou-se a nossa razão de viver — acrescentou o ministro emocionado, consultando a esposa. - Sabe, nós passámos a vida a fazer planos, sobretudo para os filhos, mas nunca lhes pedimos opiniões, como se eles pensassem e sentissem do mesmo modo, como se os nossos desejos, quiçá os nossos orgulhos, os nossos ideais e os nossos conceitos de felicidade fosse o papel químico dos deles. Enganámo-nos redondamente e, infelizmente, quando nos apercebemos é demasiado tarde.
— Nunca deve ser tarde de mais, mas nunca o é de certeza no coração de uma mãe — balbuciou trémula, baixando os olhos para não encarar os da Dra. Alice que, comovida, pressionava as retinas contra um lenço branco.
— Que Deus a ouça, Marisa. Pronto, desculpe-me por há pouco e por favor escute o que o Dr. Viegas tem para lhe dizer, enquanto nós vamos tomar um café — disse confuso, deitando um olhar contrito à filha e dirigindo-se cabisbaixo para a saída.
Na passagem, a Dra. Alice encostou timidamente a mão no ombro da ex-aluna e seguiu o marido. Estático, o médico quase nem se atrevia a falar:
— O que é que o Dr. Viegas me quer pedir?
— Bom, a senhora professora conhece bem o impasse em que nos encontramos e a afectividade que liga o David e a Giola...
— Sim, paixão é o termo mais apropriado...
— A senhora professora sabe o que ele daria por ela...
— Sei, mas não temos o direito de aceitar tamanha generosidade alguém tão debilitado fisicamente.
— Provavelmete, omoço quis suicidar-se.
— Não, Dr. Viegas, eu já lhe disse que tenho a certeza que ele não tentou acabar com a vida. Suicidar-se é a única coisa que o David nunca fará!
— Pronto, pronto! — desculpou-se o médico envergonhado.
— Deixe falar-me a sós com o David, para saber toda a verdade e depois, se ele aceitar, faremos o que me pede. Está certo?
— Certíssimo.
E, pondo um ponto final à conversa, a professora adiantou-se ao Dr. Viegas e correu para junto do moço, entrando na sala de reanimação em bicos de pés. Porém, a enfermeira, que lhe limpava carinhosamente a testa suada, apercebeu-se de tudo. Acenando-lhe, a intrusa chamou-a para longe do doente e murmurou baixinho:
— Eu falei com o doutor e se a Fátima não se importar...
— Com certeza, Marisa. Olhe ficam aqui estes paninhos, o soro está bem, a..., sim...
— Obrigada, Fátima.
— Ah! para chamar ou pedir ajuda, carregue nesse botão vermelho.
— Obrigada!
E retirando-se discretamente, a enfermeira deixou a substituta abeirar-se do doente. Na soleira da porta ainda olhou para trás, mas, vendo a professora tirar uma máscara do lote pousado perto da janela, foi-se embora. Pegando num paninho branco, Marisa enxugou docemente a testa do dorminhoco e, alisando-lhe as sobrancelhas, segurou-lhe os dedos da mão direita, por a esquerda estar espetada com a agulha do soro. Depois, beijando-lhos amorosamente, balbuciou cabisbaixa:
— Se soubesses como te amo David! Nunca amei ninguém assim, sabes? Deves julgar-me uma tonta por ter esperado tanto tempo para conhecer o amor, mas valeu a pena, meu amor, porque a felicidade que me deste compensou todos os sacrifícios, frustrações e desilusões que possa ter tido com o gozo dos rapazes, sobretudo na faculdade, mas eu, provinciana e tímida, sempre tive medo de envergonhar a família, sobretudo a minha mãezinha. Um dia hás- de ir comigo conhecê-la a Penedono. Ah! Penedono?! Não sabes onde fica, pois não? Diante da nossa casa há um castelo, que remonta aos tempos dos árabes, onde me escondi muitas vezes e donde espreitei o céu azul, como uma princesa aprisionada, à espera do meu príncipe Valente, mas, no meu sonho, nunca o imaginei assim com os cabelos encaracolados e castanhos... David! Acordaste, meu amor?! — murmurou feliz, sentindo os dedos adónis roçarem-lhe levemente os lábios.
E, olhando-o instantaneamente, viu as lágrimas saltarem-lhe das pálpebras semicerradas, resvalarem sinuosamente pelo rosto pálido, infiltraram-se na boca entreaberta e escorregaram pelo pescoço.
— Não chores, meu amor, não chores! — implorou meiga, pousando o paninho debaixo do queixo para lhe aparar as gotas mais fluidas.
Depois, acariciando-lhe a testa e a fronte com os dedos, baixou-se para cruzar o seu olhar, mas ele, num esforço indómito, cerrou os lábios e, trancando as pálpebras, reteve por segundos o fluxo lacrimejante nas retinas, estancando-o com a tristeza que tinha na alma.
— Não tenhas medo que eu não deixo fazerem-te mal, David! Descansa, que estarei aqui o tempo que for necessário, meu amor — disse trémula, sustendo a emoção que sentia, enxugando-lhe cuidadosamente os olhos e o rosto.
Aliviado, ele abriu timidamente as pálpebras e, descobrindo a máscara, sorriu levemente. Depois, retendo a emoção, puxou-lhe as mãos de fada para a boca e, colando-as nos lábios ressequidos, beijou-as demoradamente, mimando um inaudível obrigado.
— Psch! Não fales que te cansas, meu amor!
Ele, amaciando-lhe os dedos macios, sorriu apaziguado.
— Depois contas-me tudo, David. Tu não quiseste morrer, pois não?
“ Morrer?! Não! ” — questionou-se atónito, arregalando os olhos e franzindo a testa, antes de menear negativamente a cabeça.
— Eu sabia, mas pronto. Olha, David, acalma-te e, por favor, escuta o que eu te quero dizer. A Giola está cada vez pior. A mãe e o pai dela estão desesperados, porque ela há muitas horas que não reage. Eu, pensando que Deus te mandou para aqui para a salvares, sugeri estupidamente ao Dr. Viegas que, se não houver perigo nenhum, te coloque ao lado dela...
Atento, David fechou os olhos e balançou afirmativamente a cabeça.
— Espera! Tu só a podes ajudar em coma artificial. Por favor, pensa bem, que as coisas podem correr mal. Apesar de todas as garantias do Dr. Viegas, eu tenho medo. Queres que eu telefone à tua mãe a contar-lhe o que aconteceu e a pedir um conselho?
“ Não! ” — respondeu afonicamente, meneando a cabeça e o indicador a pedir qualquer coisa para escrever.
— Então espera que eu vou chamar a Fátima — acrescentou serena, carregando no botão.
A enfermeira apareceu imediatamente na soleira da porta.
— Por favor, um bloco e uma esferográfica que o David quer escrever, Fátima!
— Certamente, senhora professora — disse sorridente, saindo ligeira.
— Fica tranquilo que, a partir de agora, o senhor ministro não voltará a chatear. A Dra. Alice e o Dr. Viegas devem tê-lo convencido a mudar de opinião, porque, depois de quase uma hora em que estiveram todos três junto da Giola, ele chamou-me e pediu-me desculpa. Certamente que já se apercebeu que te julgou muito mal, meu anjinho. Diz, não, não digas! Depois, quando tudo estiver resolvido queres ir comigo ver o castelo de Penedono?
“ Sim! ” — respondeu prontamente, esboçando um sorriso angelical.
— Segure isto, que eu vou levantar-lhe a cama — disse a Fátima toda risonha, mas ofegante.
— Calma, David, calma! — implorou a professora, vendo-o esforçar-se.
— O David é um manhoso. Ele já está bom e bem podia falar-nos, mas gosta de fazer sofrer as pessoas — acrescentou a enfermeira, sorrindo-lhe e inclinando-lhe uma almofada atrás das costas para o tronco quase atingir a vertical.
O doente empiscou-lhes e, pegando na esferográfica bic alaranjada que a Marisa lhe estendeu juntamente com o bloco escolar, escreveu na folha:
“ Telegrama para Luísa Macedo — Fiolhal — Murça: Mãe, chegou tarde, mas a felicidade é muito linda. Mil beijinhos! DAVID! ” e, empiscando à Marisa, arrancou-a e deu-lha.
Lendo-o num golpe de lince, a professora não resistiu e beijou-o de fugida na boca.
— Senhora professora!! — disse a enfermeira, tossindo corada.
— Desculpe, Fátima, desculpe! — exclamou envergonhada, afastando-se um pouco.
Sorrindo maliciosamente, David pensou um segundo e, caprichando a caligrafia, escreveu:
“ Mãe, Deus quis que a vida de uma menina muito bonita dependesse de mim. Por mim, ela, a Giola, a musa que me inspirou as poesias que estão no forro do quarto do mirante, tentou matar-se está em estado de coma. ”
E as lágrimas começaram a espreitar-lhe novamente nos cantos dos olhos, mas ele, cerrando os lábios e fitando-as, prosseguiu corajosamente:
“ Desculpe toda a tristeza que sei que terá se não me tornar a ver, mas é meu dever ajudar quem tanto deve ter sofrido para me amar. Se algo correr mal, não quero que chorem por mim, pois estarei seguramente no Paraíso. Também quero que saiba o meu anjo da guarda é uma mulher de sonho! A mãe já a conhece; é a Marisa, aquela professorinha, de quem lhe falei quando andávamos a sulfatar as vinha do Soutejais. Pronto, que seja o que Deus quiser! Não me despeço de ninguém, porque tenho Esperança que Deus seja Misericordioso e não me chame agora queme sei muito amado. David! ”
Comovido com o que acabava de escrever, e muito mais ao levantar os olhos e descobrir os olhos alagados do seu anjo lacrimoso, David bem quis puxar um pano para lhe enxugar as lágrimas, mas, sentindo o peito doer-lhe, esticou-se para trás para respirar melhor e foi acometido por uma dor de cabeça horrível que o obrigou a largar tudo e a segurar violentamente as fontes, soltando um ai tão estridente que o Dr. Viegas, a esperar no corredor, entrou de roldão na sala e as viu debruçadas sobre o doente.
— Que se passa?! — berrou furioso, dando com os olhos naquele trio abraçado.
— O David comoveu-se, esticou o peito, agarrou a cabeça e gritou, nada mais.
— Então David?
— Ai! depressa..., a Giola... — suspirou aflito, insuflando dificilmente e esticando a mão para se levantar.
— Por favor, ocupe-se dele, Dra. Marisa, que nós vamos ver do outro lado.
— Despache-se que a Giola está a afastar-se cada vez mais de nós — disse a professora, amparando e acalmando o doente.
— Coragem, tem que ser. Olha, dá esta folha à minha mãe, se eu não acordar.
— Por amor de Deus, não faças isso, David! Se soubesses como te amo!
— Eu também te amo muito, mas a Giola precisa de mim.
— Vá, agora, não demores muito, nem te deixes seduzir pelas Valquírias do outro mundo, se não queres que eu te vá lá buscar preso pelas orelhas...
— Não será preciso, tolinha! Não, por favor, não a leias, Marisa: é segredo!
Sorrindo-lhe meiga, beijou-o fervorosamente na testa e, dobrando a folha, guardou-a no bolso de fecho. E os seus olhos, fitando-se sérios, ergueram-se em uníssono ao Céu, numa derradeira prece fervorosa. Pouco depois surgiu o Dr. Viegas, atarefado, seguido como sua sombra por dois rapagões para arrastarem a cama do doente e duas enfermeiras ajudarem a transportar os frascos do soro e o tubo do oxigénio. Encorajado pelo beijo e pela presença da Marisa, ele não parou de sorrir. No corredor, cruzando o ministro e a esposa, acenou e disse confiante:
— Em vez de chorar, rezem para que eu a encontre depressa, D. Alice!
— Rezaremos, David, rezaremos! — exclamou a mãe lacrimosa.
Encarando a professora, o ministro murmurou baixinho:
— Obrigado por tudo, Dra. Marisa!
— É ao David que devem agradecer, Excelência!
E, adiantando o passo para chegar à altura do príncipe Valente. A mãe corajosa seguiu-os até junto da filha e, presenciando aquela manobra desesperada, rezou, rezou para que a grandeza de alma e a intrépida generosidade do rapaz não fossem vãs. De pé, Marisa cruzava os dedos e sorria para que ele não tivesse medo. Ligado o material, o Dr. Viegas abeirou-se e, apertando-lhe a mão, murmurou risonho:
— Não te esqueças que este bilhete é de ida e volta, mas ai de ti que voltes sem a nossa princesinha! Boa viagem e que Deus te ajude a encontrá-la e te dê a sabedoria suficiente para a convencres! Adeus! Ah!…
— Boa sorte, David!
— Obrigado, mas beijinhos não que a Giola é muito ciumenta, D. Alice! — respondeu o viajante, retendo-a afastada e empiscando ao marido que se curvava.
— Errar é humano, mas eu, pobre Ataíde de Almeida, abusei. Desculpa e até breve, David — disse o ministro confuso, apertando-lhe a mão.
— Então nem eu posso beijá-lo, meu senhor? — insistiu a professora corada.
— A mão, certamente, Lady Belchior — acrescentou altivo, oferecendo-lhe a direita.
Cativa, Marisa dobrou o joelho e, tal dama dos contos cavalheirescos, beijou-lhe o dedo anelar, mas não ousou olhá-lo uma última vez. Acenando ao Dr. Viegas, que cochichava com os assistentes, David fechou os olhos e disse:
— Pronto, quando quiserem...
— O David vai dormir, dormir profundamente e viajar, viajar muito longe. Depois, depois vai encontrar a menina Giola e falar-lhe ao coração...
— Basta, Dr. Felisberto, o paciente já não nos houve. Fátima, assente-se, olhe-os bem e... oxalá a transcomunicação se opere com êxito! — disse o médico, fazendo menção de se afastar.
— Senhor doutor?
— Sim, Fátima...
— Aconselhe a professora Marisa a dormir um pouco para me render quando for preciso.
— Ela não é enfermeira, nem... — retorquiu o médico intrigado.
— Veja lá, se a convence, porque a presença dela pode agir como um estímulo para o David e, por conseguinte, para a Giola também — insistiu a vigilante.
O Dr. Viegas sorriu e partiu. No corredor, convidou o ministro, a esposa e a professora para almoçar com a equipa médica, a fim de falarem sobre o prosseguimento da operação e, sobretudo, para desfazerem dúvidas, se as tivessem.
Depois de uma infrutuosa vigília de quatro horas, em que as senhoras foram a casa buscar roupa e objectos de toalete para uma prolongada estadia hospitalar, o Dr. Viegas aceitou que a mãe da doente ficasse junto da Filomena, a enfermeira que substituiria a Fátima, enquanto o marido ia a Lisboa apresentar o relatório da digressão africana ao Presidente do Conselho de Ministros ao palácio de S. Bento.
Cansada, Marisa fora repousar-se no quarto da criada da suite normalmente reservada às famílias das altas patentes militares e governamentais ali internadas. À meia-noite menos vinte, sentindo-se extremamente nervosa, ergueu-se, lavou-se e, penteando-se enquanto descia as escadarias, foi ter com a Dra. Alice e o marido que, vindo de helicóptero da Presidência, posto à sua disposição pelo Chefe de Estado, não quisera ir descansar sem esposa, em estóica vigia desde as vinte horas. Chegando em pés de lã, Marisa viu-lhes estampada nos olhos a decepção de tantas miradas sem resposta, de tantos pai-nossos vãos e de tantas promessas recusadas. Tristemente resignado, o ministro cedeu-lhe o cadeirão e, dando-lhe uma palmadinha na espádua, ofereceu a mão à esposa para se irem embora. A Filomena, que fora tomar um café à cantina, cruzou-os no corredor e, mesmo bastante acanhada, tentou reconfortar-lhes o moral, alimentando-lhes a chama da Esperança moribunda.
No interior, depois de uma olhadela contemplativa, em que saudou carinhosamente os refractários da vida, Marisa sentiu uma picadela no coração e, apalpando o seio esquerdo, aninhou-se no cadeirão para, numa contracção facial, resistir àquele estremecimento cardíaco, mas a dor persistia. E, erguendo-se toda corcunda, encaminhou-se para a saída. Ao agarrar a mãozeira, porém, tudo se evaporou como que por encanto. Aliviada, consultou o relógio de parede e, dando com os olhos na meia noite, voltou para trás, assentando-se distraída no cadeirão a apalpar o peito para ver se ainda lhe doía. Tranquilizada, ajeitou-se no assento e, respirando fundo, mentalizou-se para iniciar uma fastidiosa e monótona vigília até às quatro da manhã. E, pegando no laço que trazia no bolso, apanhou o cabelo e ajeitou-o em rabo de cavalo, sorrindo distraidamente para o passageiro do infinito, mas, sentindo um movimento ténue marear-lhe as retinas aéreas, arregalou os olhos e abriu a boca assombrada, erguendo-se de um salto.
Numa luta contra os demónios, só podia ser, David contraia fortemente os músculos faciais e cerrava os punhos; a respiração forçada fazia-lhe oscilar a caixa torácica; os dentes mordiam o tubo plástico que lhe abria a boca e os eléctrodos colados na testa vibravam intensamente, como se uma corrente de alta tensão emanasse daquele cérebro incônscio. Tetanizada por aquele esforço titânico, Marisa mantinha-se estática. Ela bem queria reagir também e carregar na campainha, mas as suas mãos não obedeciam à ordem cerebral; bem quis alertar as vozes no corredor, mas os sapatos não arredavam pé. E quanto mais o fitava, mais os olhos lhe saltavam das órbitas e mais intensas e frequentes eram as suas pulsações cardíacas, como se, fascinado por aquela feérica peleja, o seu coração não resistisse ao apelo que o cavaleiro do infinito lhe lançava desesperadamente.
Em cima da meia-noite, quando voltou para o seu posto para esperar o colega que a ia render, Filomena viu a professora adormecida no cadeirão e, achando o frasco de soro do mancebo estranhamente vazio, assustou-se, substituindo-o à pressa por outro.
No corredor, dando com os olhos na Fátima, exclamou espantada:
— Tu aqui?! Então não era o Alfredo que devia...
— Era, mas como dormi três horas e me sinto em forma, pedi ao Dr. Viegas para me deixar ficar até às quatro com a professora, com quem me apetece conversar um pouco.
— Sua coscuvilheira!
— É isso mesmo, Mena.
— Ah, a professora dorme como uma pedra.
— Dorme?! — retorquiu perplexa, entrando de roldão no quarto.
Filomena pensou um segundo, sorriu e foi-se embora.
— Marisa! Acorde, Marisa! — cochichou-lhe ao ouvido, sacudindo-a.
— Ai, deixe-me, estou tão cansada!
— Cansada?! Ainda chegou agora!
— O David bem tentou...
— O David?! Meu Deus, aquela maluca mudou de frasco e esqueceu-se de reatar a circulação! — disse alarmada, correndo a fazer ligação.
Tonta, a professora esfregou a sonolência e limpou o suor da testa, do rosto e do pescoço a um lenço.
— Tenho uma sede, Fátima!
— Espere um pouquinho, enquanto eu confiro se tudo está em ordem...
— Fátima! Fátima!!!
— O quê?! Ah!... — balbuciou estupefacta.
— Pst! Eles podem assustar-se!
E, arrebatadas pela perfeita simbiose com que aqueles dedos mendinhos se mexiam, não disseram mais nada. Pouco a pouco, os seus olhos viram maravilhados o movimento contagiar os presentes e os ossos da mãos e subir por eles acima até boca. Carregando discretamente na campainha, a enfermeira mimou um psch e saiu ante pé para o corredor, aconselhando silêncio absoluto à exuberante e emocionadíssima Marisa, cujas retinas se a marear de felicidade.
Avisado, O Dr. Viegas telefonou imediatamente ao ministro. Foi a governanta quem atendeu e lhe disse que o amo ainda não tinha chegado. Mal pousara o auscultador, a velhota sentiu a porta ranger e, dando com os olhos na patroa, exclamou aflita:
— O senhor doutor acaba mesmo de ligar para o seu marido! Por favor, telefone-lhe, porque aconteceu qualquer coisa.
— A Giola?! — indagou perplexa, sustendo a respiração.
— A Giola o quê, Alice? — perguntou o ministro, despindo o casaco.
— Não sei, Ataíde, o Dr. Viegas, presumo, acabou de ligar agora mesmo.
— O doutor não disse nada de especial, Piedade?
— Não, senhor ministro. O doutor deixou-me o número dele e insistiu para não me esquecesse de os avisar para lhe telefonasse apenas chegassem ou voltassem imediatamente para lá.
— Vamos.
— Oxalá o David tenha razão, Ataíde! — exclamou a esposa, unindo piosamente as mãos em prece e olhando o candelabro iluminado.
E, correndo para o Citroen estacionado diante das escadarias, desapareceram. O sono, que começavam a sentir, evaporou-se, substituído por antisomnífero visceral que lhes mantinha a sonolência amarrada nas masmorras do esquecimento.
Entretanto, chegados às mediações do hospital, os seus corações ululantes embalaram-se e desataram a bater sem nexo, mas sem doer. Diante das barreiras levantadas, o guarda mandou-os seguir com um sorriso contagioso. Mais adiante, o Dr. Viegas gesticulava exuberantemente. Amaciando a mão do marido, a D. Alice sorriu e, estancada a viatura, beijou-o no rosto.
— Milagre! Senhor Ministro, milagre!!! O David... — exclamou o médico, acolhendo-os jubiloso e dirigindo-se para dentro.
— Oh! louvado seja Deus, minha Nossa Senhora de Fátima! — gritou a mãe radiante.
— Parabéns, Dr. Viegas, jamais esquecerei o que o senhor...
— Com todo o respeito, Senhor Ministro, não é a mim que Vossa Excelência deve a vida da menina Giola... — respondeu o médico, estendendo humildemente ao pai da doente.
— Mas não, Dr. Viegas, mas não! — acrescentou o ministro, recusando a evidência.
— Ataíde! Até quando Ataíde?! — balbuciou a esposa carinhosa, tentando amainar aquele coração ingrato.
— Por favor, Senhor Ministro, a menina Giola tem uma percepção de tudo, apesar de ainda não falar, e qualquer decepção nesta fase pode fazêla recair irremediavelmente.... Além disso o moço ficou muito debilitado: está como uma pilha descarregada! Até parece que a corrente eléctrica passasse toda para a sua filha para a recarregar. Mas, atenção, senhor ministro, o único motor de arranque capaz de a reanimar, não tenha dúvidas, porque eu também já não as tenho, é o coração deste rapaz... muito audaz, diga-se em abono da verdade e quer se goste dele ou não. Por isso, se Vossa Excelência não consegue mudar realmente de atitude em relação ao David, deixe a Dra. Alice ir sozinha...
— Francamente, Dr. Viegas, o senhor tem mesmo a certeza que este milagre se deve a esse rapaz ou...
— Absolutamente, Senhor Ministro! A Giola poderá restabelecer-se e até compreenderá que o David tem o direito de amar outra pessoa, mas se sentir que os senhores o hostilizam, então obstinar-se-á e ninguém mais lhe valerá...
— Não, isso não, doutor!!!
— Então...
— Que Deus me perdoe — murmurou o ministro, cabisbaixo.
— Errar é humano, querido! — cochichou a esposa, sorrindo-lhe meiga.
Chegando diante da porta, os pais da doente olharam-se e, respirando fundo, entraram em fazer barulho. Virando-se, a Marisa e a equipa médica, especialmente a Fátima, que sempre acreditara naquele momento, explodiram num sorriso do tamanho do mundo. Abeirando-se da filha, o ministro e a esposa sorriram e viram que a ela fechara os olhos envergonhada. Segurando-lhe carinhosamente os dedos, beijaram-nos amorosamente, roçando-os nos rostos ardentes de vergnoha.
— Louvado seja Deus, Giola! — exclamou a mãe lacrimosa, afagando-lhe a mão gelada.
— Pregaste-me cá um susto, filha! Perdoa-me por tudo, se puderes, e nunca te esqueças que, com todos os meus defeitos, eu te amo muito, Giola. A partir de agora tudo será diferente...
E, abeirando-se-lhe do ouvido, a mãe sussurrou-lhe:
— Realmente o David é um anjo, filha. Ai, se soubesses como eu e o teu pai estamos arrependidos e envergonhados! Pronto, recupera rápido para falares com ele. Coitado, apenas soube que tu estavas aqui quase enlouqueceu...
— Da – vi... — balbuciou levemente, abrindo parcialmente os lábios.
— O David dorme, mas está livre de perigo, filha. Fique descansada que o teu papá e eu temos a intenção de o convidar para passar uma semana connosco lá em casa. Sabes, o David é moço muito corajoso, Giola. Ele nunca quis acreditar que te fosses embora sem lhe dizer adeus...
— Pa..., ai!
— Vá, por favor, não fale, menina! — implorou o médico, sentindo-a debilmente aflita.
Comovida, Giola não reteve as lágrimas e começou a chorar sempre de pálpebras cerradas; os pais, arrastados por aquele turbilhão emocional, abraçaram-se e, envergonhados pelos olhares confrangedores e acusadores dos presentes, saíram para o corredor a enxugar os olhos alagados; enquanto a enfermeira Fátima, condoída, acariciava a doente e lhe secava os olhos para que as retinas não ardessem, Marisa segurava carinhosamente as mãos do intrépido principezinho, na esperança de o ver abrir os olhos e sorrir.
Finalmente, depois de duas horas de beato silêncio, remetida do susto e encorajada pelos carinhos maternais, Giola soletrou:
— Á - gu- a!
Acorrendo lesta, a enfermeira pegou na solução preparada pelo médicos e molhou-lhe os lábios ressequidos. Pouco a pouco, o rosto da doente perdeu a cor amarela esbranquiçada da morte e os dedos, aquecidos pelos lábios e o amor da mãe, absorvendo o calor daqueles corações vigilantes. Ora sonolenta, ora despertada, Giola não disse mais nada até que sentiu o David acordar atordoado, erguer-se na cama e sorrir para os anjos da guarda. Marisa bem quis ir beijá-lo, mas, vendo que Giola tentava virar-se na cama, reteve-se estática, empiscando-lhe apenas. O ministro, que se abeirara para se despedir da filha, afastou-se para longe. Encostadas as camas, Giola procurou o brilho dos olhos do seu anjo de luz e estendeu-lhe a mão para que ele lha segurasse como quando se encontraram lá longe, nas margens do infinito.
— Esta teimosinha andava perdida nos labirintos do limbo...
— A lâm - pa - da! A lâm..., ai! — balbuciou baixinho, fechando os olhos para mimar o resto das palavras retidas no coração.
— Eh!, vocês podem virar-se todos para o lado, podem?
— Claro, meu filho! — exclamou a D. Alice meiga.
— Está a ouvir, Giola, a tua mamã quer adoptar-te um irmão...
— David, meu...,
— Não chores, Giola, que um irmão também tem coração! — adiantou jovial, empiscando-lhe sorrateiramente, antes de lhe largar os dedos para que ela enxugasse as lágrimas.
A D. Alice, sentindo-a soluçar, virou-se e foi reconfortá-la, cochichando-lhe ao ouvido:
“ O David será o que Deus quiser, filha! ”
Giola esboçou um sorriso e colou os lábios no rosto da mãe que lho devolveu na testa. David, acenando à Fátima, pediu-lhe que lhe retirasse todos os fios que ainda ligados no corpo e o ajudasse a vestir-se e a calçar-se para se ir embora.
Percebendo-lhe a mensagem telepática, Marisa retirou-se para o corredor, cruzando o olhar apreensivo do ministro. Esticando-se para esticar os músculos entorpecidos, David abeirou-se da doente e sorrindo-lhe meigo, adiantou carinhoso, beijando-a fraternalmente na testa:
— Agora a maninha cuide-se, porque eu tenho que ir a Coimbra matricular-me na faculdade e, quando voltar, quero falar muito consigo.
— David, eu...
— Psch! eu sei Giola! — acrescentou sorridente.
— David, eu...
— Pst! Diga mais nada que eu compreendi tudo, minha... Oh, cá estou eu a chorar novamente! Pronto, Fátima, cuide bem dela e chame-me logo que ela esteja bem bonita para receber uma beijoca como deve ser e sobretudo consiga andar sozinha, mas antes não. Ah, a menina pensa que o papá e a mamã... Olhe que eu tenho a quem sair: sou um mano muito mauzão! Vá, coragem, que o corpo vai, mas o pensamento fica, Giola! — disse comovido, roçando-lhe o indicador nos lábios ressequidos.
— David!
— Psch! não diga tolices e durma, menina! — ordenou sério, acenando risonho.
E não disseram mais nada. A D. Alice beijou-a e murmurou:
— O David precisa de descansar, Giola. Vá, não te aflijas que eu volto daqui a duas ou três horas com uma roupa nova para irmos embora. O Dr. Viegas aceita transferir-se contigo para nossa casa. Claro que a Fátima também irá, filha! — murmurou rouca, sentindo-a aflita a acenar à enfermeira. — Quanto ao papá, tu perdoa-lhe, filha, porque ele está a sofrer muito e, como medo de parecer mole... Vá, fica com Deus que eu não demoro, meu amor! — disse a mãe beijando-a demoradamente na testa.
— Mamã, o Davi... — balbuciou aflita, franzindo a testa.
— Não chores, filha, que o papá já mudou de ideias. Vá, sossega que eu também adoro o David. Até logo, Giola! — disse meiga, atirando-lhe um beijinho.
No corredor, o ministro falava baixinho com a professora, enquanto o moço convalescente, ainda mal curado daquela assustadora viagem, cismava com um não sei quê de mistério e atrocidade, como se um dilema cruel lhe estivesse a flagelar o coração. Reconfortado pela D. Alice, que lhe cochichou qualquer coisa ao ouvido, David esboçou um sorriso tímido e, amparado pela professora, seguiu o ilustre casa. À saída foram saudados pelo Dr. Viegas, que os acompanhou até ao Citroen, os tranquilizou quanto ao estado da Giola e lhes desejou boa viagem, quase ignorando intrépido rapaz, a quem lançou um aceno discreto, quando o ministro se instalou ao volante.

Durante o trajecto, a D. Alice, que se assentara no banco da frente ao lado do marido, ainda se virou para trás para agradecer ao moço, mas, vendo-o dormir no regaço da ex-aluna e comovida com a ternura com esta afagava os caracóis do moço, a garganta trémula emudeceu-se-lhe. Adivinhando os pensamentos da colega e quem sabe?! talvez usando o sexto sentido, Marisa murmurou apenas:
— Amor com amor se paga, senhora doutora!
E, ninguém contrariando as sapientíssimas palavras, lá continuaram calados até S. João, onde se separaram sem dizer mais nada. Sonolento e enjoado pela sinuosidade do percurso, David respirou dificilmente, fingindo-se mais doente ainda, para ver até onde chegava a coragem da Marisa, em cujos olhos se confundiam os raios negros da noite com os clarões rubros do pôr do sol.
— Consegues caminhar ou... Se for preciso pego-te às costas, David! — disse a professora condoída, segurando-o corajosamente pelo braço.
— Obrigado, Marisinha, mas eu não estou tão mal como pareço — confessou envergonhado, roçando-lhe os dedos pelos lábios. — O que eu quis foi evitar o ministro...
— Vem, David, que se calhar estão a ver-nos...
— Ah! A menina tem vergonha de mim!
— Não digas tolices que eu estou com pressa! — sussurrou baixinho, correndo para o elevador, para se esquivar aos olhares indiscretos dos vizinhos.
— Espera por mim, Marisa! — berrou decepcionado.
Insensível àquele grito, a professora enfiou-se no elevador e refugiou-se apressadamente no apartamento, largando a porta entreaberta. Vagarosamente pensativo, o adolescente nem se apercebeu que a vizinhança o olhava como quem vê uma alma do outro mundo. Entrando em pezinhos de lã, David foi estatelar-se no sofá de barriga para o ar a olhar o tecto e a filosofar com a fragilidade da vida, depois daquele susto matinal. Olhando à sua volta e pensando em tudo o que via, nas paixões e nos projectos de vida, viu quão débil e ilusória é, verdadeiramente, a nossa passagem pela efémera existência carnal e, amedrontado, arrepiou-se, aninhando-se de bruços a fitar o veludo castanho, por onde deslizavam todas as imagens de luz e candura colhidas durante a sua viagem pelo limiar da eternidade.
Julgando-o adormecido, Marisa cobriu-o com um cobertor e, sentindo fome, fritou um ovo que comeu com o resto do pão que havia no saco dos moletes. Depois, fervendo um púcaro de leite, tirou uma chávena de porcelana do armário e abriu uma caixa de bolachas. Abeirando-se do sofá, ajoelhou-se nas costas do dorminhoco, mas, sentindo-o soluçar, balbuciou comovida:
— Também tu, David?!
— Oh, deixa-me chorar!...
— Porquê, tolinho?
— Faz-me bem...
— Mas não, David, chorar assim, não deve consolar ninguém, pelo menos a mim...
— Talvez, mas eu estou com tanto medo!...
— Medo?! De quê? O perigo já passou!
— Não, o perigo começou agora, Marisa.
— Sinceramente, não te entendo, David, mas vá, deixa-me secar-te essas lágrimas que hoje já se chorou de mais.
— Eu sei, meu amor, eu sei! — exclamou carinhoso, agarrando-lhe e beijando-lhe fervorosamente a mão que se preparava para lhe limpar o rosto e as retinas.
— Oh! quando acordaste, o que viste já não foi nada. Se soubesses o susto...
— Nunca imaginaste que algum dia pudesse chorar assim por alguém, pois não?
— Nunca, David!
— Pois é...
— Bom, por amor de Deus não falemos mais disso que me arrepio toda! — implorou meiga, estremecendo o tronco e mostrando-lhe a pele eriçada.
— Tu foste muito corajosa, Marisa. Não digas nada porque eu vi e senti tudo: a tua aflição, as tuas lágrimas, os nervos, o olhar desvairado e até ouvi as palpitações do teu coração angustiado, quando me seguraste a cabeça e me colaste os lábios contra os mamilos. Se soubesses como me apeteceu mordê-los... — acrescentou mimalheiro, segurando-lhe a cabeça e secando-lhe com os dedos as lágrimas que lhe resvalavam sorrateiramente pelo rosto.
— Oh, não apeteceu nada!... — disse soluçante, sorrindo envergonhada.
— Tu bem sabes que eu gosto muito de ti, tolinha.
— Pois, mas não me amas...
— Sei lá se te amo! Eu ainda nem sei o que é o amor, Marisa!! O que eu sei é que te desejo como nunca desejei ninguém e, agora que te desvendei até à alma, não concebo mais a vida sem este corpo tão gostoso que quanto mais o beijo, mais o desejo... Será que a senhora professora ainda não viu que eu estou louco por si?! — indagou submisso, cerrando as pálpebras para que a incredulidade feminina não intimidasse e confundisse a sinceridade dos seus olhos tímidos.
— Mesmo?
— Mas que raio de mulher és tu para me enfeitiçares assim? Não me drogaste, não?
— Vem tomar o café... — cochichou radiante, beijando-o de fugida na boca e oferecendo-lhe a mão para o ajudar a levantar.
Erguendo-se lentamente, David despiu a gabardina, que ela pendurou no bengaleiro e, a cambalear, foi lavar o rosto no lavabo do quarto de banho. De volta, deu com os olhos na caixa dos comprimidos e, focando o 3x, recordou imediatamente o instante em que, sonolento, tomou os comprimidos por engano, dizendo macambúzio:
— Aqui estão os malditos comprimidos que iam atirando para o outro mundo.
— Não penses mais nisso que, pensando bem, até nem foi assim tão mau, David - acrescentou filosoficamente a professora, servindo-lhe o café.
— Pois, salvámos a Giola... — deduziu prontamente, esboçando um sorriso nostálgico.
— E eu descobri que te amava de verdade — adiantou a professora, sorrindo radiosa.
— Como diz a minha mãe... Ah, a minha mãe!... Desculpa, mas tenho que lhe telefonar!
— Então, porque esperas?
— Ora, deixa-me cá ver... Não, não é preciso, o número do Filinto é o cinco dois três dois, zero, é isso mesmo! — disse taciturno, franzindo a testa e discando o número que sabia de cor.
— O que diz a tua mãe, David? — volveu a curiosa.
— Que há males que vêm por bem... Psch! é o senhor Filinto?
— Sim, David, olha..., espera, parece que foi a tua mãe quem passou agora ali... Luísa! Ó Luísa! — berrou esganiçado, largando o auscultador sobre o balcão e correndo a espreitar para o vulto que seguia rua abaixo.
— Chamaste por mim, Filinto? — perguntou a mãe, virando-se surpreendida.
— Corre, rapariga, que o David está ao telefone.
— Ainda bem, porque já estava a ficar preocupado com ele, Filinto — desabafou a prima, do taberneiro, correndo a segurar o auscultador.
— Mãe, é a senhora, mãe?! - questionou o jovem emocionado.
__ Mas que se passa, David? Pregaste-me cá um susto! Afinal quando vens, filho?
— A mãe sabe que a filha do senhor ministro quase morreu, sabe?
— Ai era isso! Eu, por acaso ouvi falar dum ministro, mas nunca me passou pela cabeça que tu pudesses conhecer um homem assim tão importante, filho!
— Pois, a filha dele, a Giola...., foi por causa dela que eu apanhei aqueles murros no dia do meu exame de história e vim a conhecer a professora Marisa...
— Ó Filinto, vai aviar-me uma posta de bacalhau, mas escolha-ma do bom, não me dês uma dessas pelicas que se desfazem mal apanham uma fervura.
— Esta tarde o Leites de Jou me trouxe-me cá uma caixa...
— Vai e escolhe-o bem — ordenou apressada, despachando o taberneiro para confidenciar baixinho: — David, tu ainda estás com a professora? Tu vê lá o que fazes, filho!
— Não se preocupe, mãe que ela sabe o que faz. Olhe, pronto, um beijinho...
— Quando vens, filho? Ainda tens dinheiro, David?
— Sim, adeus...
— Adeus, filho! — respondeu a senhora Luísa, segurando orgulhosamente o auscultador, com um sorriso malicioso nos olhos.
Espreguiçando-se demoradamente, o estudante inspirou, inspirou, mas a caixa torácica nunca mais se enchia, como se o oxigénio se consumisse antes de chegar aos alvéolos pulmonares.
— Como é a tua mãe, David? — perguntou a curiosa, temperando-lhe o leite.
— Fisicamente, Marisa?
— Não só...
— Oh, a minha mãe é muito linda, Marisa! Coitada, nasceu num berço de ouro, mas sorte foi muito madrasta para ela... — disse entristecido.
— Então? O teu pai não a trata bem?
— Mal não lhe faz, confia-lhe tudo, mas...
— Desculpa, se te incomodei...
— Não, não, Marisa, sou eu que...
— Que?...
— Que tenho que ele arranje por lá alguma amante e a faça cometer...
— Pronto, não falemos mais de coisas tristes...
— Também acho, Marisa... Ah! a senhora Luísa Macedo é franzina, com os cabelos negros compridos, meio frisados e o olhar profundo; também é muito tímida e introvertida; uma ingénua com o coração de ouro...
— Depois não te esqueças de me mandar uma foto dela.
— Fica descansada que te meterei uma com dois ou três anos que fizemos no Foto Albano em Murça para enviar-mos ao meu tio Toninho que está no Rio de Janeiro, no Brasil.
— Ah bom?! Eu também tenho vários tios no Rio de Janeiro.
— Onde?
— Na Tijuca. Eles dizem que é um sítio muito bonito, tão bonito que a corte Imperial o escolheu para residência, quando o nosso rei D. João V teve que fugir para o Brasil por causa das invasões francesas.
— A minha tia Adélia, de quem eu gostava muito e que casou há pouco tempo com um sujeito de Braga, não sei onde habita, mas o meu tio Toninho mora em Rocha Miranda. com a minha avó Marquinhas Rosa, a única pessoa que não me desejou a morte quando apanhei a febre malta, aos onze anos...
— Mesmo?! Não me digas que a tua mãe...
— Não, não é isso, Marisa! Nessa altura eu estava no seminário de Vila Real e os meus pais moravam na Barroca Grande, nas minas da Panasqueira com os meus irmãos. Nas férias grandes, fiquei em casa do senhor abade, que é muito nosso amigo, e tive uma recaída. As criadas dele, a senhora Marquinhas e a menina Júlia se levantava todas as duas horas para me dar os comprimidos que o Dr. Calvão me receitou, é que dizem que as minhas tias só sabiam dizer: “ era uma obra de misericórdia, se Deus o levasse! Cada assim ele é tão franzino que nunca mais vai lograr saúde!...”
— Oh! não seria por mal!
— Seja como for, dizem a senhora Marquinhas e a menina Júlia, a mãe do meu pai era a única a acreditar na minha cura.
— Na minha terra...
— Em Penedono, não é?
— Sim, mas quem te disse que eu era de Penedono?
— Foste tu, Marisa.
— Pois, já me esquecia!... — recordou aérea, entre dois golos de café.
— Só não me disseste como era o príncipe encantado com quem sonhavas...
— Ah, o meu príncipe Valente devia ser um mouro com os cabelos compridos, lisos, cor de breu e moreno como os homens do deserto...
— E misturaria, porventura, uma catolicíssima princesa o seu sangue ao de um infiel maometano?, quiçá descendente dos sarracenos que lavaram os alfanjes no sangue do nosso tão Desejado rei D. Sebastião em Alcácer-Quibir?
— Quem sabe? o amor é tão cego...
— Ah! então se calhar estou a precisar de óculos!... — acrescentou irónico, espirrando uma golfada de café para o guardanapo, que apanhou rapidamente.
— És muito tolinho, David!
— Ceguinho, Marisa, ceguinho! - corrigiu prontamente, fechando os olhos e estendendo as mãos, como quem joga à cabra-cega.
— Realmente és bem tolinho! — exclamou risonha, desviando-lhe a ponta dos dedos dos seios e mordendo-os delicadamente. — Vá, come que o café arrefece -— disse feliz.
E, foi num abrir e fechar de olhos que ele esvaziou a chávena e engoliu os biscoitos. Depois, excitado por aquele sorriso malicioso com que ela o olhava, ajudou-a a lavar a louça e a arrumar a cozinha, antes de se trancar no duche, para evitar o confronto que a tumescência lhe reclamava irracionalmente.
Recordando as palavras cautelosas Dr. Viegas, a professora impôs-lhe uma abstinência sagrada, proibindo-o de a tocar naquela noite, mas, ao fim de uma hora de vigília, como ele não dormisse ainda e a desenfreada virilidade a excitasse terrivelmente, lá lhe consentiu um coito fulgurante que o fez adormecer placidamente em menos de cinco minutos.



Luís Macedo Martins Pereira - Lud MacMartinson - Luxembourgo, 1979
nb: romance inédito e não corrigido !!

sábado, 7 de maio de 2011

Os injustiçados de GUTazar: SINAIS !!! 2003

Lisboa, segunda-feira, 15 de Setembro de 2003

Sinais dos tempos...


Nesta manhã de Outono, a capital da Lusilândia parecia uma cidade fantasma, abandonada no meio do deserto, depois de uma explosão nuclear: as ruas permaneciam mudas e abstractas, mas os transeuntes caminhavam desfigurados; os cafés abriam para cumprir um ritual, porque só as moscas ousavam aí entrar; o comboio das oito ficou paralisado no meio do tabuleiro da Ponte, impondo aos operários da margem sul umas horas de repouso absoluto; os passageiros dos cacilheiros encalhados em pleno Tejo permaneciam estoicamente de pé, abúlicos, a mirar resignadamente para o mar alto, à espera que alguém os viesse rebocar e quando, assustadas por um trovão caído do infinito, as gaivotas emudeceram o seu lamurioso pipilar, os rádios de bolso deixaram de funcionar e pelo ar ecoou um grito tão lancinante que toda a gente pensou que viesse dele próprio, tamanha era a raiva interior. De repente, um raio tenebroso irrompeu estrondosamente do fundo do mar e, rodopiando vertiginosamente em redor do Cristo-Rei Almada, abateu-se sobre ele, quebrando-lhe os braços em mil pedaços, como predissera o cavaleiro negro.
— Adeus, mãe! Adeus, pai! Adeus, amor! Adeus, filho! Adeus, Maria! Adeus, Zé! Adeus, mundo cruel! — gritavam freneticamente as dezenas de vultos que, despenhando-se desesperadamente do alto da quadragenária Ponte Salazar, usurpada ao professor e rebaptizada 25 de Abril pelos heréticos adeptos da ditadura do proletariado, trinta anos antes, iam mergulhando e fazendo do rio a última morada.
— Ai Jesus, é o fim do mundo! — exclamou uma velhota que sofria das cataratas, cruzando as mãos e erguendo os olhos ao céu.
— Hoje, morremos todos! — berrou o mestre da lancha, agarrando-se à barra.
— Salvai o meu gatinho, meu Deus! — implorou uma criança.
— Porque temeis, homens de pouca Fé? — perguntou uma voz límpida, ecoando dos confins do Infinito.
— Ele bem que nos avisou! — recordou um garoto de olhos esbugalhados.
— Será mesmo verdade que as almas do outro mundo virão vingar-se do mal que lhes fizemos durante estes anos todos? — volveu uma senhora idosa, franzindo a testa duvidosa e abjurando satanás com uma cruz feita à pressa..
— Graças a Deus, a luz voltou! O motor já funciona! Oh! O barco pôs-se a andar sozinho! — constatou incrédulo o homem do leme.
— Olhai lá para cima! Oh! O combóio já se foi! — adiantou um garoto, apontando admirado para o tabuleiro da Ponte.
Inundados subitamente por um clarão reluzente, que quase os cegou, os passageiros deitaram instintivamente as mãos aos olhos para protegerem as retinas e calaram-se, deixando-se guiar pelo vulto branco que segurava o leme da lancha. Atracando no lugar que lhe estava reservado no cais, o navio imobilizou-se e as pessoas, seguindo cada uma para o seu laborioso destino, dispersaram-se pelas ruas da cidade, como se nada tivesse acontecido. Porém; mirando distraidamente as bancas e os quiosques, foram descobrindo os seus retratos nas primeiras páginas dos jornais. E em cada imagem reluzia enigmaticamente uma palavra mais cintilantes que as estrelas do céu ou as fascinantes luzes de néon que inundam Pigalle em Paris, onde tudo se vende sem nexo e cheira a sexo.
Perplexos, alguns pararam para comprar o jornal, mas a legenda desapareceu, deixando sangue no seu lugar; outros, tentando fugir, sentiram uma ventania tão forte que os fez parar e colar à calçada, enquanto as folhas do jornal se lhes cravavam nas costas, nas pernas e no rosto, obrigando-os a estancar a cobarde debandada e a confessar o crime que vinha escarrapachado na fotografia de cada um deles, como se ninguém se pudesse furtar ao julgamento divino. Um quarentão ainda quis fugir, mas foi esmagado por um camião; uma batina negra também tentou escapar-se à vindicta divina, mas em vão: caiu fulminada dentro do caixão. E uma vozearia infernal eclodiu pela cidade, como jurado pelo Artur, o menino vindo do passado, para quem o futuro não era segredo, porque para ele, coração puro e inocente, nunca existira a palavra medo e o tempo sempre fora um eterno presente. E a normalidade só voltou, quando as bancas e os quiosques, esvaziadas dos últimos jornais, viram um silêncio sagrado lacrar as gargantas por onde ecoavam os gritos, os suspiros e os ais. E nunca as sete colinas de Lisboa pareceram tanto um monte de vendavais! Nem mesmo quando os arautos da santa inquisição puseram a Madragoa e a Mouraria a fogo e sangue, nem tampouco naqueles desolados dias em que Portugal, julgando-se Rei e Senhor do Mundo, por obra dos seus audazes marinheiros saloios, transmontanos ou raianos, que, mesmo não sabendo navegar, ousaram afrontar o Adamastor em alto mar, se apercebeu dos injustiçados da Gesta Marítima e fundou as Misericórdias para esconder o Reino da miséria.
Ao meio-dia, nos restaurantes e nos snacks, as pessoas encomendavam de que matar a fome, pagavam e sentavam-se, mas limitavam-se a contemplar a refeição como se ela estivesse envenenada ou a fome tivesse sumido das suas panças empanturradas. E, erguendo-se apáticas, iam deitar a comida intacta no lixo, sem protestar e felizes, como se olhar para ela bastasse para lhes satisfazer a necessidade. Quem se revoltou contra esta ditadura intestina e quis comer, ignorando e desprezando a voz da sua consciência, passou o dia a engolir e a mastigar desesperadamente tudo o que havia sido atirado ao caixote e, inexplicavelmente, quanto mais comia, maior era o larote que sentia!
Depois, na hora do regresso a casa, quem ousou mudar de direcção viu-se brutalmente manietado por braços invisíveis e forçado a cumprir religiosamente o trajecto rotineiro, embarcando no mesmo maldito cacilheiro onde viajara pela manhã. Foi então que, abstraindo-se por um ápice à realidade virtual em que vivia, o povo se apercebeu que, comprado pelo dinheiro, há muito que perdera a Liberdade! E cada rosto desfigurado, corando de vergonha, quis esconder os remorsos e agarrar a sua máscara com ambas as mãos, mas ela caiu-lhes ensanguentada aos pés, fulminando a terra, a madeira ou mesmo o ferro que lhes servia de chão. É que, à força de a rejeitar e a desprezar com a abstenção, os cidadãos haviam-na renegado do coração, substituindo-a pela ditadura cor-de-rosa, que, tal vampiro insaciável, acabara por lhes petrificar a alma piedosa que era a deles, antes de sucumbir à lengalenga do Pantomineiro e ao deus Dinheiro.
À noite, ligando a televisão para assistir a " O ORGULHO DA NAÇÃO ", a novela que a televisão SPQFR — Só Para Quem For Rosa — servia incansavelmente aos boys e call-girls do regime, cada renegado viu escarrapachado à sua frente o filme daquele maldito dia e, querendo mudar de canal para ver outra coisa, foi descobrindo estupefacto as histórias do pai, do irmão, do colega de trabalho ou do vizinho, até que, cansado de tanto carregar no telecomando, parou e viu o vidro do ecrã derreter-se e escorrer pelo sobrado, emanando uma pestilência insuportável se espalhou pela casa, forçando-o a correr para a janela. E até ao romper da aurora, as persianas da cidade não se cansaram de subir e descer, num rangido demencial que sugeriu a cada um os gritos desesperados de quem, passado o Julgamento Final, sentia o demónio arrastá-lo para a incandescente fornalha Infernal.
Deste incidente, porém, nada foi noticiado, como se de um quimérico sigilo ou de um segredo de Estado se tratasse. Nem jornais, nem rádio, nem televisão, nem ninguém ousou contar ou comentar o sucedido, por só a cada um dizer respeito. É que a lei do silêncio, tão em voga no tempo do ditador Salerres, há muito que imperava nos súbditos de sua majestade Gutazar, que à força de uma refinada léria e muita água benta, que era coisa que não faltava, sobretudo depois que um messiânico arauto do senhor Jabá recebera inopinadamente no seu confessionário a visita do espírito Santo de Orelha, que o aconselhara a benzer a reserva do Alqueva, donde saíam diariamente dezenas de tanques do sagrado líquido para acudir às desgraças que os soldados do rei iam semeando impunemente por toda a parte, porque era esse o verdadeiro engenho deles e a sua única arte!
No longínquo 1 de Abril de 1999, um ingénuo filho da diáspora, emigrado no Burgulândia, para esconjurar a fatídico sonho da véspera, bem que avisara o mundo do perigoso vírus rosae que, se a abstenção ajudasse, em 13 de Junho inocularia na democracia a ADN da Ditadura que eclodiria inevitavelmente em 10 de Outubro, graças à indiferença dos emigrantes, a quem as balelas do secretário Morgado deram volta à mioleira, sob o beneplácito da T.L.I — Télélusilândia Internacional. E a maioria absoluta, tão desejada pela corja execrável dos cancros da nação, a quem o engenhocas da carnificina oriental dera a mão, pelo menos, quedou-se cinicamente na relatividade para que a ditadura continuasse a lapidar a pátria com toda a legitimidade e na mais perfeita impunidade. Depois, em Setembro do mesmo ano, quando a incúria d’El Gutazar, o homem que tudo fazia, mas devagar, devagarinho, quase acabou com a raça Mauberorum Lorosae, fazendo surgir naquela cristianíssima terra o espectro da desolação final, o Luís Ninguém transformou a sua pena num alfange insaciável, combatendo os assassinos de Alá e os seus aliados de circunstância, mas as suas palavras e os seus gritos desesperados caíram em saco roto, porque naqueles dias a Lusilândia, manipulada pelos mentores do dictat cor-de-rosa, andava totalmente obcecada por Timor e de nada valia invectivar ou responsabilizar a classe política, e muito menos o Primeiro, homem de palavras muitas e sábias, mas obras poucas e loucas, a quem o povo néscio queria como deus, porque dele dependia o job dos filhos ou de enteados seus. E sinistro era a palavra que melhor rimava com ministro, in illo tempore!
Ah! Que raiva! Que dor! E que sede de justiça que em mim se atiça e me faz odiar a sacrossanta impunidade que fez do meu país o Anticristo da Liberdade!!!
Hoje, quatro anos passados, Gutazar, o linguareiro, mudara de nome para fugir à ira divina, que o confundia com Euricus, Inndonésius Sicárius, apesar das fervorosas preces do seu acólito messiânico, que no Paraíso não cessava de interceder pelo seu protector terreno, implorando ao Omnipotente que olhasse e julgasse apenas o que disse e não que o fez, porque, se as coisas correram mal, ao demónio se deviam tais infortúnios. Porém Deus, farto de escutar mentiras e falsidades, apontou para o Inferno e mostrou-lhe como estava a abarrotar de boas intenções. Desolado, o arauto messiânico voltou à Terra para absolver o seu benfeitor de tais pecados, mas já se ouvia no Céu um coro de injustiçados.
Entretanto, os anos passavam e a Lusilândia continuava a ser o país adiado de sempre. Órfão do fado, o povo virara-se para o futebol e lá ia sonhando com as tão famigeradas faixas de campeão europeu, que era a única coisa que podia fazer, porque a terra de Viriatorix, sob a manápula e a alçada dos Bananas, uma raça desalmada, totalmente alienada a Gutazar, estava entregue à bicharada.
E como metia dó ver o país dos eméritos marinheiros quinhentistas navegar à vista e a sobrevier à custa da injecções das lecas europeias. Por onde andarás, ó razão, que ninguém te quer ver? E a inércia ia se estendendo aos mais recônditos ermos do país e paralisando a nação que dera ao mundo a Ínclita Geração.
Nos hospitais, a saúde estava doente, porque os genéricos haviam sido traficados pelo lobo farmacêutico global que, aproveitando-se da impunidade que lhe fora concedida por um acólito de Gutazar, ia despachando para a Lusilândia os remédios inválidos, contaminando-se assim o povo, para que ele morresse de morte natural antes do tempo, para que as promessas do aumento de pensões ficassem saldadas e tais remessas pudessem ser desviadas para os invioláveis cofres suíços dos protegidos do regime.
Nas escolas, ninguém aprendia e muito menos respeitava alguém, porque os canudos, de tão desvalorizados que estavam, só serviam para acender as priscas de haxixe que os filhos dos Faustos Bananas atiravam à cara dos idiotas que haviam recusado vender a alma ao diabo! Perdão, ao Supremo Comandante Gutazar, o Homem a quem Deus incumbira de implantar a Igualdade na Terra. E para dar lições de moral ao Mundo, um Ministério fora criado na Lusilândia.
Nos pousios bravos, crescia a liamba, porque, previdente, Gutazar sabia que a mama da Senhora Europa, de tanto ser chupada, iria secar e, sem tal maná providencial, lhe faltaria o soldo para pagar os devotos correligionários, a quem tudo devia e que por um Duradouro o trocariam à menor ocasião.
Nos bancos, que também haviam caído no goto das facilidades e recorrido aos créditos alheios para satisfazer as manias e as vaidades da patuleia do regime, os empregados passavam as horas a branquear e falsificar Euros, que se tornara moeda corrente, para manter o país na moda por mais um mês, pelo menos, porque a maioria, farta de sustentar a minoria com as migalhas da subsistência, queria fazer do absolutismo, que trazia no coração, uma realidade inegociável, para por em marcha a solução final. É que, à força de tantas promessas e água benta, muito poucos eram os lusitanos que ainda resistiam às benesses envenenadas do Ministro Ateu, que, encapotado na pele do perfeito filho de deus, ia levando a água ao seu moinho para melhor triturar quem, mais não tendo, se negava a vender a alma por tuta-e-meia e aceitar de peito aberto a clonagem cor-de-rosa, unanimemente apregoada no hemiciclo pela maioria relativa, absolutamente vendida à tese do pensamento único que, segundo os profetas Gutzarianos, devia haver na Terra e nos Céus, para que todos, embora uns mais que outros, porque da primeira ou da última hora, fossem verdadeiramente filhos de Deus, como o eram certamente o Primeiro Ministro e o Presidente.
Nas igrejas, os abades, que haviam entornado a devoção e eram os mais fiéis e dedicados agentes do senhor Gutazar, por obra Santo espirito do Orelha, que, graças a uma ideia faraónica, lhes arranjara também uma providencial renda mínima garantida, passaram a incluir metodicamente nas suas preces dominicais uma oração especial a favor do benigno, generoso e magnânimo benfeitor da cristandade. E, aproveitando a ligeireza penitente, o pecado arrancou a pele à virtude e, vestindo-a, passou a ostentá-la orgulhosamente por toda a parte.
Avassalados por tanta prepotência e tamanha falsidade, os incorruptíveis começaram a fomentar a revolta, mas ninguém lhes deu ouvidos. Foi então que, desesperados, se viraram para o céu e imploraram a ajuda dos antepassados, como eles injustiçados ou ignominiosamente espoliados por Salerres, primeiro, e, agora, por Gutazar. E um coro de vozes, saltando furiosamente lá dos confins das masmorras do infinito esquecimento, se levantou para que justiça fosse feita a vivos e a mortos. E Lúcius, gladiador apocalíptico, e um dos milhares de espoliados de Abril, ouvindo falar de Artur, o menino prodígio, largou tudo, pai, mãe, mulher e filhos, para dar voz aos fantasmas sussurrantes e aos zés Ninguém seus irmãos que no far-west da Lusilândia sofriam simultaneamente as sevícias dos cow-boys Bananas e dos índios afectos a El Gutazar, o mais nobre sequaz de Salerres de má memória, a quem os sovietes de Abril quiseram riscar da história.

Terça-feira, 16 de Setembro, o país acordou indolente e triste, como a chuva que não parava de cair miúda, miudinha como as gotas invisíveis de um orvalho vítreo escorregadio. Os sinais da véspera haviam sacudido e flagelado os corações empedernidos e o corpo, envergonhado e espicaçado pela vozearia infernal que irrompia da consciência martirizada e fazia tremer os seus peitos arquejantes até à espinal medula, não ousava deixar o leito e afrontar a ira divina. E o absenteísmo quase atingiu os noventa porcento. Apenas as repartições púbicas controladas pelos filhos da sacrossanta mater Rosa abriram as portas, mas como ao fim de uma hora ninguém aí entrasse, os funcionários pensaram que a divina providência insuflara, durante a noite, ao Mui Digníssimo, Magnânimo e Excelentíssimo Senhor Gutazar mais uma benesse para exorcizar a prece das rosinhas frustradas por tanta ociosidade, mas que este, de tão atarefado que andava, nem tivera tempo de os avisar de se outorgarem mais um dia feriado e se porem a andar, porque o povo caturra teria todo o tempo de lá voltar e as mãos lhes untar. Mais, tantas vezes os incorruptos aí entrariam e tantas achegas levariam pela cabeça abaixo que um dia acabariam por abrir os olhos e aderir como toda a gente ao partido da rosa. Os chefes, esses, ou aceitavam um cheque comunitário ou iam contribuir para o novo paraíso latifundiário dos camaradas alentejanos, desbravando montes e vales por um naco de broa e chorando tantas lágrimas de desespero que até o Alqueva, conhecendo uma inopinada e transcendental maré cheia, alagaria as terras da moirama até às falésias do Algarve, acabando de vez com a infiel raça dos renegados vermelhos, antes de se atacar aos irredutíveis do norte, para quem o seu espírito maligno reservava pior sorte: uma muralha mais alta que a da China, para começar, e uma acidental explosão nuclear para acabar de vez com os insubmissos inimigos do Senhor Gutazar! É que Timor ensinara ao maquiavélico condutor que o amor do povo ia para quem mais horror criava à sua volta e para quem, sendo cristão, punha o diabo à solta. Agora, que o Poder lhe devorava a Razão, só lhe restava fomentar uma desgraça nas províncias rebeldes e provocar um genocídio regional para ser consagrado herói da Lusilândia e declarado ad vitam eternam pai da Nação.
A ver pelas sondagens estatais, não era outra coisa que o povo submisso esperava. De Norte a Sul, enquanto os Comandos de Gutazar iam semeando a discórdia e aterrorizando os idiotas do regime, as Confederações e as Ligas da Rosa acirravam a cabeça à população que lhes era afecta, extrapolando tais exacções e apelando à Sacrossanta União Nacional em torno do Prodigioso Líder, pai da prosperidade e Digníssimo Herdeiro do Espírito da Ínclita Geração, que, em menos de uma década, restaurara a imagem e fizera da Lusilândia o país encantado que todos os cidadãos do Mundo e do Infinito queriam ter como a Ditosa Pátria Mãe, mas a quem só a alma da mais pura Rosa se podia orgulhar de pisar eternamente, comungando da paradisíacas delícias de tão Nobre Raça.
Era pois este o teor dos predicados estampados na imprensa e difundidos pelas ondas hertzianas neste primeiro dia de Campanha Eleitoral. À noite, quando todos os calorosos lares da mirífica Lusitânia vissem o debate promovida pela SPQFR — a televisão da rosae veritas — a adrenalina dos seus corações infinitamente gratos só poderia exultar de alegria e tomar a única decisão que se impunha: exigir o extermínio imediato dos rebeldes e consagrar o poder vitalício do Previdente e Generoso Pai da Nação, El Más Grande Comandante, Gutazar I, Rei da Lusilândia, do Algarve, dos Açores e d’Aquém Mar em Terra e d’Além Deserto Lunar, para onde costumava viajar quando a oposição ousava contradizer a sua Sapientíssima e Omnipotentíssima verdade, sobretudo depois que aceitara ser Regente da Confraria Internacional da Rosa e Protector de Timor, lá no oriente, bem perto do sol nascente, onde a gente ainda era gente, em tudo diferente, mesmo na simplicidade e no exercício da Liberdade, como do perdão. Aqui, o povo sendeiro só se rendia ao deus Dinheiro!
A oposição só fingia que era para Europeu ver e diante da televisão, porque, no segredo da mais incógnita privacidade, passava os dias a contar as migalhas e as noites a pactuar com os emissários do 3-G, como carinhosamente lhe chamavam, em vez de pôr o dedo de uma Kalachnikov ou mesmo de uma velha G-3 e lutar até à morte, para merecerem, como os seus antepassados sacrificados e injustiçados a vida eterna, aquele que se ganha no Céu, perdendo-a na Terra, a que se conquista, oferecendo-a. A sua desdita começou no dia em que, pensando servir Timor, omitiram a verdade e recusaram pedir justiça. Poucos foram, aliás, naqueles tristes e conturbados dias, os que ousaram desafiar a sacrossanta unanimidade e pediram ao Promessas que tivesse um pouco de pudor e se fosse embora para não regar a Maioria Absoluta com o sangue do povo Maubere, mas o vírus da demoníaca vaidade e, quiçá, uma alcateia esfomeada obrigaram-no a trilhar a ignominiosa estrada da mentira e do perjúrio. E, tal Nero esquizofrénico a contemplar Roma incendiada, El Gutazar conduziu os inocentes ao Gólgotha de Liquiçá, Díli, Bacau, Bonbonaro, oferecendo-os ingenuamente em sacrifício à demência das milícias muçulmanas. Na realidade, os cálculos eleitoralistas cegaram-no de tal modo que a sua demoníaca vaidade plantou o Inferno onde a hipócrita inocência, obstruindo-lhe o juízo, quis semear o Paraíso. Depois, é verdade, chorou lágrimas de crocodilo e, invocando o Santo Nome de Timor em vão, manietou de tal maneira a oposição que ninguém mais ousou clamar justiça. E o povo ateu, pensando apenas nas lecas da União Europeia, não só o absolveu de todos os seus pecados, como lhe exigiu que levasse por diante os mirabolantes desígnios hegemónicos, já que o Duradouro, afilhado de um Pau, não tinha nem cara de Santo nem mão de gigante para distribuir as prometidas benesses pela maralha. Não admira pois que a súcia de acólitos, meia dúzia e canalha, depois de um passeio com mil promessas e juras de fidelidade pelo país acima, o traíssem mesmo à boca das urnas e o atirassem abaixo no dia da Verdade, rendendo-se e engrossando, de facto, à sondagem da tão desejada maioria absoluta, para participar no banquete e beneficiar da miragem que lhes anunciavam os estrategos de sua majestade Gutazar, o Primeiro Magnífico! E, consumada a felonia, lá voltaram ao redil do mártir Carneiro, para prosseguir a pérfida e ignominiosa traição, como os mais perfeitos, inocentes, insuspeitos e fidedignos Cavaleiros da Ordem da Rosa, traindo ignominiosamente quem lhes dera o ser e quem, outrora, os içara aos píncaros do poder. É que, na hora de agarrar o combóio, nunca se pensa se ele descarrila pelo caminho!
O primeiro grande debate da campanha eleitoral não trazia, pois, nada de novo. A indiferença geral era a prova mais cabal que algo ia muito mal no reino do Senhor Gutazar, mais virado para o socialismo global que para sua Lusilândia natal. Os líderes da Oposição, que só faziam que eram, e diante dos seus mais acérrimos perseguidores, há muito que haviam vendido a consciência à opulência sem a menor relutância, sucumbindo, como os rosinhas, à mais aviltante ganância.
Entretanto, nos mais recônditos ermos da heróica Lusilândia, muitos eram os que, nada mais possuindo, começavam a recusar o rendimento mínimo garantido, a fazer greve de fome e a interpelar os arautos sagrados à porta das igrejas, areópago do pensamento único, no despertar deste terceiro milénio, depois de o ser de Deus nos dois primeiros. Decididos a tudo, mesmo a pagar com a própria morte, muito mais digna que a vida escrava e sem sentido que eram obrigados a levar, os Infiéis, como lhe chamavam os superkids, os cow-boys, os yes-men, as call-girls e as Czarianas, as amas que El Comandante possuía por tudo quanto era ministério, a começar pelo da Igualdade, onde abundavam as amazonas e as boazonas, apelidos com que se diferenciavam as feministas, amadoras ou bem operacionais, segundo o número de zonas percorridas e o teor dos serviços prestados pelas mulheres que se destinavam a humanizar a vida e o erário públicos, porque era ponto de honra no reino pagar generosamente todos os favores que se fizessem de dia ou de noite, às escuras e às claras, mesmo aqueles que só prazer ofereciam a quem os dava.

( Incompleto... porque os caminhos de perdição de Portugal não páram aqui. Depois de Gutazar outro pior virá que para o abismo a nação arrastará ! Oxalá, Deus tenha misericórdia e os nossos egrégios avós da eternidade liberte por um dia para que justiça possam fazer na Terra que os viu nascer e por quem a lutar morreram !!! )

LMP - Lud MacMartinson - Luxemburgo, 2003