domingo, 12 de outubro de 2008

Vidas Drogadas - 1º Capítulo


Olá, como não vejo rastos da vossa passagem por este " mundo ", nem sei até que ponto vale a pena eu continuar a escrever aqui.



Desde sempre tive a certeza de ser " diferente " dos demais meninos e jovens meus conterrâneos. A minha " reminiscência " remonta aos quase 3 anos de idade. O que se passou antes ficará para sempre nas brumas da memória.

Foi com um sinal de irreverência que luz se fez sobre o espelho da minha existência. A cena passa-se no primeiro andar da taverna que os meus pais tinham, no Outono - deduzo, porque o meu irmão Jorge, que nascera em Julho, estava a ser batuchado com água morna pela minha tia Adélia, que, sorrindo, me rogou: " ó filho, vai buscar a toalha para enxugar o menino! " E eu, que gostava tava tanto dela, saltitando de contente, retorqui irreverente: " Olhe, vá lá a senhora! " Pronto, nasci espírito de contradição! Ainda me lembro: eu estava de calções cinzento segurados por uns suspensórios, vestia uma camiseta de manga curta, branca como as meias, e calçava uns sapatos, que brilhavam de eu tanto os bafejar e lustrar!

Depois deste episódio, há um tunel negro semeado de cenas sem importância,- como lançar aos moços da minha idade alguns rebuçados e a descoberta da anatomia feminina, - que termina com o brilho orgulhoso do olhar da minha mãe, quando me foi matricular na escola nos primeiros dias do mês de Outubro de 1961. No dia do meu nono aniversário li o primeiro jornal e descobri com tristeza o assassinato de um dos ídolos da juventude lusitana da época: o presidente John Fitzgerald Kennedy, o amigo de Portugal!
E é melhor ficar por aqui, senão começo a escrever as minhas memórias.



Hoje, quero deixar-vos aqui parte do primeiro capítulo de um romance que comecei a escrever e tive que largar para não levar a minha curiosidade para a " prisão ".
Aqui se desenrola o enredo de " VIDAS DROGADAS " - inicialmente cruzadas, porque, sem saber, eu me cruzei e convivi com as personagens deste romance, nestas gélidas paragens do Grão Ducado do Luxemburgo, o pigmeu se tornou um dos gigantes da construção europeia, aonde cheguei em 10 de Janeiro de 1976.


Boa leitura e um abraço !
Luís Macedo M. Pereira


Grão-ducado do Luxemburgo, Larochette, sábado, 26 de Setembro de 1998




Primeiro Capítulo




Neste primeiro fim-de-semana do Outono, Larochette, — Fiels — a capital lusitana do Grão-ducado, madrugava fria e triste. Até parece que a cerimónia fúnebre da véspera, ― em que os portugueses das redondezas, num gesto do mais profundo pesar, haviam prestado uma sentida homenagem a um jovem compatriota, falecido num trágico acidente de viação, ― ainda pairava no ar para lhes lembrar a fragilidade da vida. O Miguel, o infeliz transmontano de Fiolhoso, fascinado pela ilusória miragem da emigração, quisera, como no sonho, usufruir livremente dos privilégio dos ricos e conhecer o Paraíso na Terra. E, engajando-se ingenuamente numa irracional e desenfreada corrida contra o tempo, que a premonição lhe dizia não ser longo, procurou alucinada e desesperadamente a felicidade, perdida na infância, quando, marcado pelo divórcio dos pais, se viu ao Deus dará e para aqui veio tentar corajosamente a sua sorte. Dilacerado pelos golpes do destino, o seu coração deixou-se intoxicar pela estupefaciente e mirífica lengalenga dos narcotraficantes, acabando por sucumbir aos etéreos assédios da maldita cocaína. Entorpecida, a sua alma quis sublimar-se e, desprendendo-se da realidade, alcançar o Paraíso, mas, enredando-se, na alucinante virtualidade, caiu irremediavelmente no Inferno da mirabolante toxicodependência, donde a morte, condoída por tanta ingenuidade, o arrancou brutalmente, na Primavera da vida.

Enfunada pela neblina matinal, esta melancólica monotonia fora divinizada pelas luzes que iluminavam as arcadas laterais e o frontispício da Igreja e se espelhavam nos passeios lavados pela enxurrada da véspera, enquanto que, inamovivelmente petrificado lá no alto do seu rochedo milenar, o Castelo medieval, ex-libris da cidade, vigiava. O silêncio fora quebrado pelo ensurdecedor camartelo dos pedreiros portugueses que calcetavam a secular, mas rejuvenescida, Place Bleiche, contígua ao Hotel onde, outrora, o genial Vítor Hugo costumava pernoitar quando, fascinado por tão inóspitas e misteriosas paragens, plantadas no coração da Europa belicosa, que era a do tempo dele, aqui fazia uma escapada amorosa para melhor perscrutar a inefável candura da musa e se deleitar com as meretrizes locais, que o seu génio, empiricamente grato, sublimaria e imortalizaria na bela Esmeralda de Notre Dame.


Larochette, que começara por ser centro de tratamento de curtumes, antes de se tornar o famoso e rico pólo industrial de pequenas e médias empresas de lanifícios até ao fim dos anos sessenta, — e cujas fábricas, das quais ainda restam vestígios na subida de An der Scheerbach, vestiram os melhores exércitos do mundo, — saiu da letargia decadente em que jazia e, renascendo, conheceu uma 2ª vida com a chegada providencial dos primeiros lusitanos, que, no fim dos anos sessenta, aqui elegeram domicílio. Com efeito, depois de suportarem, estoicamente e invernos a fio, a aconchegante frieza das casas mais degradadas do burgo e enriquecerem os proprietários indígenas que, aproveitando-se da necessidade premente dos emigrantes, aqui permaneciam para melhor explorar a miséria humana, os portugueses decidiram, face à exorbitante especulação das rendas e, sobretudo, aos sucessivos adiamentos do tão ambicionado regresso à terra natal, comprar os barrentos e mofosos barracos onde moravam aos magotes, fazendo deles verdadeiras obras-primas.
É que, depois de limpar e oxigenar pacientemente o coração das ancestrais moradias, os lusitanos lavaram-lhes orgulhosamente o rosto, fazendo morrer de inveja quem, patenteando presunçosamente as sequelas de um passado recente e da ariana estirpe se julgando o mais digno descendente, daquele meio degradante quisera evadir-se e as vendera, muitas vezes ao desbarato, para da lusa raça, se afastando como da peste, se ver livre, esquecendo que, se novo estatuto social possuíam a ela o deviam. De facto, como num atribulado choque tectónico, em que as placas transcontinentais, tocando-se, umas às outras elevando se vão, assim também a saloia ralé indígena das tarefas degradantes se livrou, cedendo-as aos estrangeiros, que, de mãos vazias chegando, a elas generosamente se agarraram, construindo o Paraíso deles sobre as ruínas do Inferno aborígene.
Enriquecidos, muitos autóctones ― Fielsers ― puderam, então, instalar-se pomposamente nos arrabaldes chiques da Capital, para ficarem mais perto dos escritórios bancários, onde passam os dias a contar e a guardar, no mais perfeito sigilo, as fortunas que muitos ditadores e traficantes do terceiro mundo e a maior parte dos mafiosos do primeiro lá vão depositar impunemente.
Agora, que o engenho, a arte e, sobretudo, o braço dos lusitanos a restaurou, Fiels orgulha-se de presentear os forasteiros, que a visitam, com lindíssimos passeios. Amanhados no mais puro granito transmontano, eles ficarão aqui para que as gerações vindouras, quando os pisarem, sintam deles emanar aquele cheirinho agreste das nossas serranias e nos seus olhos, talvez já aburguesados, brotem as lágrimas da Saudade e do amor a Portugal, que aos pais deles nem sempre soube dar guarida e muitas vezes desprezou, mas a quem os seus nobres corações enjeitados perdoaram, amaram e trouxeram orgulhosamente cravado nas suas almas até ao fim da vida.
Na certeza, porém, que centenas de anos passarão e milhares de vezes se pisarão até que o cordão umbilical, que à Pátria-Mãe nos une, se rompa, para que, então, estas pedras, que hoje, aqui se enterram, chorem e reguem a memória dos descendentes deste povo humilde e trabalhador, a quem nada nem ninguém jamais conseguirá denegrir a alma altruísta ou, tampouco, apagar a histórica passagem por tão gélida paragem.


Envoltos pela bruma matinal, os pedreiros largaram a carrinha, onde trocaram de fatiota, encararam a geada, e, soltando alguns arrepios, deitaram mãos à obra.
― Ó Manel, empresta-me a maçaneta! — gritou Zé Grilo, esfregando as mãos e batendo o queixo de frio.
― O quê? Fala mais alto, mongo! — berrou Manuel Balsa, segurando o camartelo que lhe fazia estremecer as encorpadas raízes transmontanas.
― Onde puseste a maçaneta, que não a enxergo? ― questionou o alentejano.
― O quê?!
― Chiça! O gajo é surdo! Onde tens a moca, porra? — insistiu aborrecido.
― E onde é que o compadre quer que eu traga a moca? Entre as pernas! — escarneceu malicioso, parando o camartelo e rindo de escárnio.
― Olha, vai-te lixar, dragão dum corno! ― desabafou o benfiquista.
― Bom, a moca só ta empresto se me pagares uma cachaça para matar o bicho.
― Cachaça?! Bebe água, tripeiro!
― Auga?! Bebe-a tu, lampião! ― arremedou fanhoso.
― Olha vai..., vai tocar um ceguinho ou dar uma volta ao Saldanha!
― Ao Saldanha?! — espantou-se o da Campeã.
― Sim ao Saldanha! A Lisboa! Está-se mesmo a ver que nunca saístes da santa terrinha, transmontano de...
― Psiu! Caluda, cabrão duma figa! ― interferiu autoritário o da Campeã, cuspindo para o chão.
― Deixa lá, Grilo! Então tu não vês que lá pa xima inda num paxou Cristo, poixe não? — interferiu o comparsa alfacinha, trocando o ésse pelo xis.
― Olha, vai apanhar no cú, mouro desnaturado!
― Ei, ei, mais respeitinho!
― Olha quem fala! És bem...
― Ó carago, olha para acolá e arregala-me bem esses olhos de mochos! Como é que eu te posso pagar uma cachaça, se o compadre ainda está com os testos na cama! — ironizou Zé Grilo, apontando para o Café de la Place, donde só saíam sinais de sono e preguiça.
— Pois, o francês ficou na batota até às tantas e...
— Lá por isso ide ao Zé, que a Ana já anda a pé! Já agora, trazei-me lá uma birra para brindarmos ao Pentacampeão! — sugeriu Francisco Lérias, benfiquista de gema, adoçando os lábios aos tripeiros.
— Na orelha ou nos tomates?! Não querias mais nada, lampião apagado! — zombou António Preto, pior que estragado.
— A ti, ainda te parto os cornos qualquer dia! — ameaçou Chico Lérias.
― Ó carago, nem é tarde nem é cedo! Anda, salta para o terreiro, se os tens no sítio, alentejano dum cabrão! ― desafiou o cigano.
― Ei! Ei! Alto aí! Pára, que o Lérias está a brincar, Tonho! — acalmou Manuel Balsa, barrando o caminho ao correligionário portista.
― Brincar? Que brinque com os filhos ou com a mulher dele que é boazona!
― Vós não tendes vergonha? Ei, se armais zaragata, ides ambos para o olho da rua! Falai de bola, de mulheres, ou do que quiserdes, mas não se batam, porra! — sugeriu o contramestre, zangado, irrompendo da carrinha onde se atardara a ouvir a Bola Branca.
― E o chefe acha que com aqueles dois fanáticos tripeiros alguém se entende sobre alguma coisa? Se falamos de mulheres, ninguém é maior garanhão que eles, se viramos para o futebol, ninguém os cala. Senão veja: este ano, a procissão só ainda vai no adro e eles já andam por aí a cagar que, com o Bojardas, o Porto vai ser o primeiro Pentacampeão de Portugal!
― E ainda duvidas, Lérias? — perguntou Juventino da Vieira, despachando discretamente os tripeiros.
― Não me diga que o chefe já se passou...
― Passar não passei, nem passarei, mas reconheço que, com o Pinto da Costa e o Super Mário, ninguém pára os dragões! Dói-me dizer-to, mas o Benfica está podre, Lérias! Primeiro, venderam a alma ao diabo, agora querem alienar o clube aos Ingleses. Abre os olhos homem! O nosso Glorioso deixou de ser o ninho da Águia para se tornar a caverna da máfia e dos quarenta ladrões.
― Ei, também não é bem assim! Puxa! Agora o chefe exagerou um pouquinho!
― Infelizmente não, Chico: o Benfica está mesmo entregue à bicharada!
― Talvez, mas, sabe, eu tenho cá uma fezada que, agora, com o Vale Tudo, o pintinho vai piar fininho e acabará por dar à costa de papo pró ar. Quanto ao bojardas..., aquilo é uma bosta de ouro!
― Não faças como a avestruz, Lérias! Abre os olhos, homem! A águia é que começou a piar piano, como diz o italiano, e a voar rasteiro demais, quando o Pantera Negra deixou de aguentar aquelas seringas de cavalo e arrumou as botas! O Eusébio era o abono de família e a alma do Benfica! Depois dele, ainda surgiram umas imitaçõezinhas reles...
― Realmente aquilo é que era um jogador! O chefe ainda se recorda quando ele enfiou aquele petardo ao Albertosi da Juventus e deixou os mafiosi calados como ratos? O estádio quase veio abaixo, carago!
― Claro que lembro! Ei, aqui entre nós, os adeptos italianos chamam-se tifosi. Os mafiosi...
― E há quem seja mais mafiosi que os tifosi? Mas... lembra-se ou não?
― Então não me havia de lembrar daquela bazuca de mais de quarenta metros? Ó Lérias, o canhão do Eusébio era mais certeiro que a fecha do Robin dos Bosques, homem de Deus! Depois, quem não se recorda daquele monumento só pode ser um atrasado mental ou um provinciano.
― Aquilo sim, é que eram golos! Eu recordo-me que, naquela noite, o Alves dos Santos disse que foi um golo de...
― De se lhe tirar o chapéu?
― Não! Não foi isso!
― Espectacular!
― Não! Ele repetiu-o várias vezes, mas já não me lembro!
― Então puxa pela cabeça... Ei, pá, parece que comes queijo a mais!
― De…, de… — gaguejou obtuso.
— Ah! Já vi! De... an-to-lo-gia! Aquilo foi um golo de antologia!
— Nem mais nem menos, chefe! Aquele foi um golo de anto…, anto…, pronto, de encher o olho e o papo para toda a vida! Valia mais um golaço do nosso Pantera Negra que cinquenta desse cabeçudo do bojardas que…
— Que só não é nosso porque, além de marreta, o Gaspar Ramos era forreta! ― interferiu Zé da Estaca, empunhando a maçaneta do Manel.
― E ainda mais fanático que os dois pacóvios que ali vêm — reconheceu Chico Lérias, mirando os tripeiros de soslaio.
― Pst! Ei, agora não se fala mais de futebol, senão a praça ainda fica por calcetar! ― sussurrou Juventino, autoritário.
― Está bem, chefe! ― acataram cabisbaixos.
Os portistas, aquecidos por dois copitos de aguardente e dois biscoitos roubados ao catraio da Ana, passaram sobranceiramente por eles, mas não lhes passaram cartucho. Agarrando-se ao camartelo, Manuel Balsa empiscou ao comparsa e, mirando sobranceiramente os benfiquistas, começou a sonhar com o ambicionado Penta, título ímpar e inédito, que, a acontecer, faria história nos anais do futebol português e consagraria definitivamente, e com uma coroa de ouro, a magnífica gestão de Jorge Nuno Pinto da Costa, o homem que soube dar à provinciana pronúncia do norte um timbre universal. E, silenciados pelo ruído ensurdecedor do camartelo, os pedreiros deitaram mãos à obra.



Ao meio-dia, os alfacinhas, que haviam esquecido a marmita com os restos da ceia da véspera nas casas da Carrière de Ernzen, pedreira onde habitavam há mais de vinte anos, decidiram ir almoçar a um snack-bar, onde, a pretexto de matar a fome, aproveitariam para cobiçar e lançar uns piropos às compatriotas, que ali trabalhavam como serventes. Por duas delas, uma estudante e outra divorciada, boas como o milho, dariam a jorna e uma generosa gorjeta para subir ao sétimo céu no banco traseiro dos seus Mercedes 190. Contudo, a mademoiselle, que era mulher casada, parecia demasiado séria para ousarem concretizar tal desagravo. É que, além de lábia sábia e pintada de sobra e coragem suficiente para lhes aplicar dois pares de estalos nas ventas a ambos ou os denunciar por assédio sexual ao Comissário da Polícia, a presunçosa não a fidalga não gastava ao desbarato o perfume e o verniz, nem perdia o tempo a mirar pacóvios pelintras como eles.
Depois de encomendar um pacote de batatas fritas com uma Mettwurst — a célebre chouriça luxemburguesa — , que regariam com uma pinga de verdinho do cantil escondido debaixo do capote, se o patrão se pirasse dali ou deixasse de os vigiar com aqueles olhos de cuco, os benfiquistas, homens casados e honrados, alaparam-se à volta da mesa de plástico e rezaram para que fosse a estudante a servi-los ou pelo menos lhes sorrisse lá da redoma de vidro onde labutava cabisbaixa desde as 10 da manhã.
Porém, nem um olhar de desprezo ou compaixão se desdenhou a caprichosa lançar-lhes, assanhando ainda mais a volúpia e a obscenidade que morava nas suas estribeiras adúlteras.
— A filha da mãe tem a mania que é boa! — barafustou o Lérias.
— Olha quem nos saiu na rifa! Aquela não é a divorciada que fugiu com o pai dos trigémeos?
— Nem mais nem menos, chefe!
— Eh! Mira-a bem de alto a baixo, Chico! Repara como ela tem os quadris apertados e o rosto fino! A comer, a gaja deve ser uma brasa... Ei! Reparando bem, esta não fica nada a dever àqueloutra pamonha que tem a mania que é a Cleópatra ou a rainha de Sabá de Ermsdorf!
— Deixe lá! A lambisgóia deve saber melhor que chocolate, chefe!
— Psch! Caluda! A meretriz pode ouvir!
— Meretriz?! Ah! Eu não sabia que o chefe também conhecia palavras de sete e quinhentos! — estranhou Chico, mirando descaradamente a fruta proibida.
— Sete e quinhentos?! Só?! Julgava-te mais generoso e inteligente, Lérias!
— Quem dá o que tem, a mais não é obrigado, grande Manitu!
— Ei! Olha lá pra mim e diz-me: achas-me com cara de índio ou de judeu? — questionou o contramestre, adoptando um perfil donde sobressaía o nariz adunco.
Lérias ainda quis corrigir e apelidá-lo de César ou Faraó, mas o chefe, chispando a concupiscência pelos olhos, bateu-lhe no braço e fê-lo calar o bico, para melhor admirar as coxas da servente. Mal a volúvel pisou o terreiro, o tesão que morava nos seus olhos afoitos esmoreceu-se, fazendo-os corar como pimentões.
— Olá! Foi isto que os senhores pediram? — perguntou simpática.
— Sim, duas “ metefôstes” com batatas fritas e maionese, madame! — confirmou Chico Lérias atemorizado com os peitos que ela, ao pousar o tabuleiro, lhe fez roçar no bigodão, que mais parecia uma vassoura de piaçaba.
— Então… bom apetite!
— Merci, mademoiselle! — responderam ambos, metendo distraidamente a mão encardida de cimento no prato e mergulhando a batata frita na maionese!
Sentindo-se desejada, a volúvel sorriu e, empespinando-se toda, correu a buscar a refeição de um senhor engravatado, lançando à cunhada toda a raiva e a inveja que trazia enciumada na alma:
— Até parece que enganas alguém com essa cara de santa! O palerma do meu irmão pode escorregar na esparrela as vezes que quiser, mas eu, cá por mim…
— Por favor, mete-te na tua vida e deixa-me em paz, Carminda! Que mal terei eu feito a Deus para que o demónio não pare de me apoquentar?
— Ouve lá, ó misse simpatia de 2ª classe, pensas que o facto de teres passado anos a passear os livros pelos cafés de S. João da Madeira fez de ti uma doutora?
— Cala-te, se não queres que chame o patrão! Por favor, não me aborreças, nem infernizes ainda mais a minha vida, que para inferno já basta o que o Inácio que me leva todos os dias para casa!
— Ah! E bem haja ele! Contigo só se perdem as que caem no chão, sua...
— Menina! É para hoje ou para amanhã? — inquiriu o cliente, irritado com aquele trá-lá-lá e consultando o nervosamente o relógio.
— É para já, mossiú! — respondeu corada, pegando no tabuleiro e correndo a depositá-lo à frente do estrangeiro.
E naquele dia, Vera não falou nem tampouco olhou mais para a cunhada! Uma forte dor de cabeça fê-la consultar o relógio mural e, vendo os ponteiros acavalados no um, refugiou-se na cozinha a lavar pratos e talheres. Pelas quatorze horas, despachados os últimos clientes, soltou um desabafo maior, deixando fugir da retina todos os raios de raiva e rancor que lhe corriam pelas veias.


Inadvertidamente, Vera repicou no abismo e recordou morbidamente a sua triste vida de casada, depois da maldita hora em que jurara ser fiel ao traste que lhe prometera um mar de rosas, mas de quem só recebera, excepto o amor de criança que era a Florbela, um ror de espinhos. E das brumas da sua memória recalcada ressurgiram os seis anos de pesadelo que acabava de viver. Um autêntico Inferno que, se algum dia acreditou que pudesse existir à face da terra para muita gente, ela nunca admitiu poder vir a cair nele assim tão nova.


“ Vera nascera em 31 de Julho de 1973, nove meses antes da Liberdade, mas ficara ao cuidado da avó, como um vulgar empecilho, quando os pais, arrastados pela ganância do dinheiro que a droga do consumismo exigia à humanidade neste último quartel do segundo milénio, emigraram para a Venezuela, engrossando as fileiras da diáspora lusitana. É que, criança de braços franzinos, a menina só estorvaria, daria despesas e lhes faria perder tempo e dinheiro, e se havia alguma coisa que eles não poderiam perder era certamente isso! E para não esbanjar o precioso tempo e, obviamente, o adorado dinheiro, o Hélio e a Márcia só fizeram o segundo filho, para não passarem as noites em casa como dois mochos, sós e abandonados, depois de retornar com os bolsos bem recheados de bolívares e terem organizado a vida deles. O benjamim servir-lhes-ia de amparo nos dias de trovoada e solidão, que sustento para a velhice já possuíam, graças a Deus.

Hermeticamente trancada no seu mundo, Vera deixou cair das retinas uma lágrima enraivecida: no seu espírito tenebroso fez-se luz e apareceu aquela vergonha imensa provocada pela ausência dos pais na hora em que comungou pela primeira vez. Como fora triste a sua primeira comunhão, Santo Deus! Até parece que naquela hora sagrada uma maldição fora selada com a Santidade, porque a ferida aberta no seu coração nesse dia nunca mais sarou de verdade e deixou de ensanguentar os seus passos!
E todas as suas desgraças céleres se levantaram da masmorra do artificial esquecimento, onde haviam sido ingenuamente amarradas por sucessivas ilusões, e vieram mergulhar nas lágrimas dos seus olhos novas decepções e novos abrolhos, desde que a droga maldita passou a dormir com o marido dela na cama, fazendo cair em desdita a sibarita que ela sempre quisera ser para o dominar a seu bel-prazer! Não, agora ela sabia que o Inácio, por mais doses de cocaína que vendesse sem ser apanhado, nunca chegaria a ter grana suficiente para lhe satisfazer os caprichos e muito menos fazer dela uma Princesa. ”


Porém, à medida que a noite caía sobre Larochette e a hora do rendez-vous com o alucinante submundo da droga, o medo começava a apoderar-se dela e a obstruir-lhe o discernimento indispensável a tão insidiosa viagem que, agora e mais do que nunca, ela julgava ser a última: é que uma semana atrás morrera o Miguel, um rapaz de Stegen, que há muito fizera depender a sua insípida sobrevivência da acrílica heroina branca com que o Inácio o faria subir ao céu, depois de o mergulhar no inferno alucinante, obrigando-o a percorrer os fantasmagóricos e tenebrosos labirintos da decadência humana.
Saciados os últimos turistas, o patrão da fritura fez a caixa e pediu às empregadas que se despachassem, pois já passava da meia-noite e às dez era preciso voltar a inundar a cidade com o apetitoso cheiro das turingas.
Atravessando a estrada à pressa, Vera entrou no Mazda estacionado no parque do lado e, accionando o motor, arrancou a toda a brida para Ermsdorf, onde o marido há muito que roía as unhas de desespero. A Florbela, a inocente a quem dera o ser, essa, pernoitaria, mais uma vez, em casa da senhora Dora, a zelosa e dedicada ama que, vendo a desgraça em que os pais andavam metidos, a resguardava tanto que a criava como se fosse filha ou neta dela. E esse amor maternal não caía em saco roto, porque, depois de se afeiçoar a ela e sabendo que não podia contar com mais ninguém, Florbela começou a tratá-la por mãe!
Peneiras e manias não te faltam! Anda, despacha-te, pamonha! gritou o marido desvairado, vendo-a ajeitar calmamente a camisola.
Uf! Calma, Inácio, calma, que eu já ando a pé há mais de 15 horas! lembrou Vera, bufando de cansaço, antes de se espreguiçar e sentar no banco da frente.
Pisando brutalmente no acelerador, Inácio chegou os estribos aos cavalos do Audi e fê-lo rodopiar na areia do terreiro, desaparecendo euforicamente na escuridão. Em menos de vinte minutos percorreu os quarenta quilómetros que o separavam da auto-estrada em Arlon, onde tomou a direcção de Bruxelas.
A sonolência e a lassidão foram-se apoderando de Vera, que cochilava, enquanto o marido vociferava toda a raiva que a maldita cocaína lhe suscitava. Os músculos contraíam-se a pasmos, provocando-lhe calafrios e tiques nervosos que o faziam carregar ainda mais no champinhon, estripando do ventre do bólide toda a força que lhe restava. E, ansioso por chegar, Inácio obrigou a velocidade a ficar histericamente colada no último ponteiro do conta quilómetros.
Perto da fronteira holandesa, ligou para os comparsas, a avisá-los da chegada. A manobra de diversão, que desviou o Audi para os caminhos de terra batida e lamacentos dos confins flamengos, antes de chegar ao destino, exigiu-lhes a máxima atenção, retardando-os de quase trinta minutos. Parando num parque obscuro, Inácio pediu à esposa que ficasse no carro e desapareceu na noite, só voltando dez minutos depois com um embrulho que escondeu no esconderijo do costume.
Antes de se agarrar novamente ao volante, tirou a pistola que trazia no bolso traseiro das calças de ganga e colocou-a entre as pernas para o que desse e viesse.
Durante o retorno, Vera, que, entretanto, recupera da fadiga, além de lhe fazer ver os riscos que corria e o mal que fazia aos desgraçados que, como ele, haviam perdido o controlo sobre o livre-arbítrio, jurou-lhe que nunca mais voltaria a acompanhá-lo nem tão pouco pactuaria mais com tal negócio imundice.
É a última viagem que faço contigo, Inácio! Pára lá com o negócio que esta merda já me fez sofrer de mais! Se achas que não consegues viver sem ela, arranja quem te ature. Quanto a mim, estou farta! Pronto, basta, acabou, ouviste? Se não quiseres pagar uma pensão à tua filha muito bem, senão eu lá ganharei para mim e para ela.
Não sei como podes ser tão ingénua, mulher! Então algum dia eu poderia viver sem vós? Se não fosses tu há muito que uma overdose me teria mandado desta para melhor. Quanto à Florbela, ela é tão gira! Diz, tens a certeza que a menina é mesmo minha filha, dótôra?
Porquê? Desconfias do carteiro ou… Oh! Cala-te que só dizes asneiras! Ganha juízo e vê lá em que te metes que, a continuar assim, qualquer dia ainda vais parar com os costados à prisão!
O quê?! Para a prisão, eu? Nem as pensas! Eu sei muito bem o que ando a fazer e os trilhos que piso, mulher! Os polícias do Luxemburgo são uns baueres camponeses toscos que não têm tempo a perder e nem tampouco conseguem enxergar peixinhos como eu! Os gajos sofrem todos de miopia e, além disso, só lhes interessa pescar os tubarões que vão depositar os milhões no banco! Por esses, sim, vale a pena correr! Agora eu…não passo de um jaquinzinho!
E quem me diz a mim que não é do Inacinho que eles andam à cata para servir de isco aos tubarões? Toma cuidado que eles ainda te engatam! Tu vê lá, homem, que tantas vezes vai cântaro à fonte que…
Lá deixa a asa, eu sei, mas isso não passam de lérias saloias do tempo da tua avó! Esses ditados são como as histórias da carochinha: só enganam meninos! Além do mais, é como te disse: os fliques letzabóias devem ser mais mirolhos que o Luís de Camões, mulher!
Oxalá não te enganes tu, que de homem não tens nada!
Ah sim?! Então porque que é que a dótôra casou comigo se é assim tão inteligente? Manias foi o que nunca faltaram à tua raça, peneireira de merda!
Se eu sou uma peneireira de merda, porque não me dás o divórcio?
Não querias mais nada, pois não, putória refinada? indagou gozador.
Tu não vales a gaita de um caracol ou um vintém furado, Inácio! Tu não prestas!!! gritou furiosa, dando-lhe um murro no ombro.
Ai não?! Mesmo? Oh!!
Não, tu nem para foder prestas, Inácio!
Oh! Que pena! A puta já deu tantas que agora só a do cavalo lha enche! Tu merecias que eu te tratasse como o Marc Dutroux trata as... Mas, espera, que ainda irei a tempo! Arrebita lá esses cornos, ó doutora de merda! E fica a saber que no dia em que pensares separar-te de mim, é melhor encomendares um caixão primeiro, senão ainda vais apodrecer à beira do ribeiro de Ermsdorf...
Ui que valentão! Matavas-me é? Coitadinho...
Coitadinho?! Tu cala-te, senão ainda te meto duas azeitonas no meio dos olhos! Pum! Pum! Ciao! Finito, bella ! ameaçou cínico e histérico, colando-lhe a pistola na testa.
Vá! Pára lá com esse brincadeira estúpida, ouviste? ordenou assustada, sustendo a respiração e retraindo-se contra o vidro.
Ah! Aposto que até a passarinha te tremeu! bradou irónico, segurando o volante e cerrando as pernas para segurar a arma, não fosse ela surripiar-lha.
Aterrorizada, Vera filtrou enigmaticamente a escuridão e indagou com os seus botões: “ por quanto tempo mais terei eu que suportar este calvário, meu Deus?
E quase duas horas de um demencial silêncio se passaram sem que trocassem a menor palavra ou fizessem o mínimo gesto. Se um abismo imenso os separava antes da viagem, agora só ódio e desprezo mútuo restava entre ambos. O divórcio, tantas vezes pronunciado pelas suas bocas, mas adiado para salvar as aparências, descera definitivamente aos seus corações para selar a inadiável evidência: o casamento deles chegara ao fim!
Na sua inabalável decisão, Vera tencionava chegar a Ermsdorf e dormir, como se nada tivesse acontecido, para fingir que tudo não passara de mais uma insónia ou um pesadelo virtual e esperar que ele partisse distribuir as mil e uma doses de heroina pelos amigos da capital, para ir buscar a Florbela a Larochette e pedir asilo à Aline e ao Gilberto, seus primos. E então, se o marido viesse procurá-la e tentasse cantar-lhe pela milésima a cantiga do bandido, denunciá-lo-ia impiedosamente à polícia, se não lhe espetasse uma faca nas tripas e lhe acabasse de vez com a raça.
Entrementes, lendo a placa que indicava a direcção de Mamer e Capellen, Inácio reduziu a velocidade e entrou na faixa de saída da auto-estrada, quando foi surpreendido pela aparição súbita dos faróis dos carros com que a polícia lhe barrara até a escapatória de emergência.
No meio daquela aflição e apesar dos calafrios que o medo lhe provocara na espinal medula e dos arrepios que lhe eriçaram a pele, a alma da Vera sorriu ao ver o desespero sufocante do marido, quando três polícias, com cara de poucos amigos, lhe apontaram energicamente a metralhadora e o intimaram a sair do carro com as mãos no ar e sem esboçar o menor gesto, se não quisesse ir parar ao inferno com o corpo crivado de balas!
Não disparem!! Por amor de Deus não disparem, que eu tenho uma filha para criar! implorou aterrorizado e pálido, tremendo como varas verdes, mas de mãos bem firmes atrás da nuca.
Abra as pernas e não se mexa! gritou-lhe o agente que o revistava e o apalpava bruscamente.
A madame saia do carro e fique tranquila! ordenou de pistola em punho o polícia que estava incumbido de manietar a passageira.
Por favor não me façam mal! Por favor… rogou Vera sufocada pelo pânico que lhe embargava a garganta e lhe embalava vertiginosamente o coração, oferendo os punhos ao agente para que ele a algemasse.
Donde vêm, senhora?
Não sei, senhor polícia! O meu marido obrigou-me a seguí-lo…
Pois… balbuciou o agente, descobrindo a pistola no banco da frente.
Algemado, o traficante transpirava por todos os poros e lançava à esposa aquele olhar desvairado e confrangedor que só inspira piedade, mas ela, encarando-o, só desprezo lhe deu, porque há muito que o seu coração pedia justiça pela maneira hedionda como o criminoso a tratava.
E nem foi preciso soltar o cão: duas miradelas, três ou quatro apalpadelas e uma espreitada mais consciente bastaram para descobrir o narcótico atrás do pneu sobressalente. Brandindo orgulhosamente o embrulho, o agente gritou eufórico:
Aqui está a mercadoria! Até que enfim que os agarrámos, chefe!
Allez! Embarquem-me lá esses gangsters!
Anda lá, português de merda! ordenou o chefe da polícia, arrastando brutalmente o prisioneiro para a carrinha estacionada mais adiante.
E agora o que é que vai ser de nós e da nossa filha? Eu bem te avisei, Inácio!
Cala-te se não queres que eu lhes diga que tu é que manipulaste e me forçaste a andar nesta vida para satisfazer essa tua mania de menina rica e mimada!
Eles até podem acreditar nessa tua tramóia, seu aldrabão, mas Deus sabe que eu estou inocente e tu também, Inácio!
Pois, mas tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta!
Ai é?! Então arregala bem esses olhos, goza e ri até te doer a pança, porque será esta a última vez! Acabou-se, Inácio, vou pedir o divórcio! Adi! Good-bye! Ciao! Finito, bello! bradou vingativa, gozando-o com um derradeiro beijo.
Cá se fazem, cá se pagam, ouviste, dótôra! Ah! Larguem-me!!! Ó desgraçada, se um dia te ponho as mãos em cima, desfaço-te! Desfaço-te? Não! Ou te levo para um bordel ou te amarro num barraco! Já que eu nem para pinar prestei, talvez te consoles com dois ou três drogados ao mesmo tempo, para que a Sida te carregue bem depressa para o inferno, sua vaca! gritou rancoroso, fazendo-lhe um pontapé.
Eu estou inocente, senhor polícia! Se me levam para a cadeia, esse doido varrido mata-me! Olhe que ainda há menos de uma hora afiançou que me dava dois tiros na testa! Por favor, não me levem para a cadeia que eu tenho uma menina para criar! Coitadinha, a minha filha só tem cinco anos! implorou aflita, enxugando as lágrimas e lançando aos polícias um olhar enternecedor.
Não é a nós, mas ao Senhor Doutor Juiz que a madame deve gritar a sua inocência! A nossa missão foi de vos prender, a dele será vos julgar esclareceu o chefe da brigada condoído.
E num ápice apenas, Vera viu a sua vida virar e cair vertiginosamente no inferno. A caminho do tribunal, onde o juiz os inculparia de tráfego de estupefacientes e lhes daria ordem de prisão, a vergonha acelerou-lhe o ritmo cardíaco de tal maneira que desmaiou e, tombando desamparada, embateu com a cabeça num tubo de aço provocando um hematoma na face.
Ao entrar na prisão de Schrassig, às oito horas deste radiante domingo, 27 de Setembro, viu toda a infâmia do mundo cair sobre ela e abafá-la. Se pudesse abrir um buraco na terra e desaparecer nas profundezas do inferno, tê-lo-ia feito, tão aviltante era o vexame que sentia: até parecia que os tenebrosos e malignos espíritos do inferno e do mundo a miravam com a mais descarada vanglória. Foi então que, sufocada e desamparada na sua cela, se lembrou do momento em que, beijando a testa fria e inerte do pai, que um ano antes entregara a alma ao Criador, lhe sussurrou desesperadamente as mesmas palavras:
Estás tão lindo, papá! Mas porque te foste embora sem me dizer adeus, papá! Se soubesses as vezes em que peguei no auscultador e pensei desabafar contigo esta mágoa que arrasto comigo há tanto tempo! Mas infelizmente nunca tive coragem para te contar o inferno em que vivo! Por favor, não te esqueças de mim e da Florbela e ajuda-nos, paizinho, por favor, ajuda-nos!
Deitando-se de costas na cama e cobrindo-se com os cobertores para acabar com os arrepios e os calafrios intermitentes, Vera cravou as retinas alagadas no tecto e assim ficou até que a miserável insónia, vendo aquele olhar estático e vítreo, deixou de a apoquentar e lhe concedeu um ápice de alívio para que o sonho e a fé lhe devolvessem a dignidade perdida.
Às dez horas em ponto, o patrão dela ficou a saber a razão da ausência da sua melhor empregada: foi com o maior regozijo que os gendarmes de Larochette, avisados pelos seus colegas da polícia judiciária, lhe darem a boa notícia, tanto haviam sido as horas de sono perdidas a seguir os bandidos!
Entretanto, na Michel Rodange, a senhora Dora saíra para o balcão e procurava descortinar no fundo da rua o vulto do marido, que fora bater um papo com os conterrâneos e beber um moscatel ao Fielser Stuff, o Café do Zé e da Ana, para servir a criançada, a filha, a Florbela, o Miguel e o Huguinho, quando se apercebeu da chegada inesperada da Gendarmerie, que estancou a viatura mesmo debaixo dos seus olhos gatos e saltou para a calçada.
Bonjour, madame! Bom dia, senhora! saudou jovialmente o chefe.
Bonjour, monsieur! Bom dia, senhor!
Senhora Tavares, o pai e a mãe da pequena Florbela foram interceptados esta madrugada e já estão na prisão.
De madrugada?! Mas então a madame Vera não trabalhou até à meia-noite?
Sim, mais exactamente até à meia-noite, doze minutos e nove segundos, mas às seis horas, quando foram capturados, já tinham ido à Holanda carregar droga!
O quê?! Credo! Droga, senhor agente?! indagou incrédula e estupefacta.
Mais exactamente heroina e da boa, madame Tavares! O pai da Florbela é um traficante de droga! Disso tivemos a certeza no dia em que comprou um Audi e o pagou cash ao concessionário!
Sim, eu lembro-me disso. A madame Vera falou que haviam comprado um carro e o tinham pago logo, o que, diga-se, estranhei bastante na altura. Mas isso já foi há um ano! Porque não o prenderam logo, mossiú Steffen?
Ah, desculpe, mas a essa questão não responderei: segredos de justiça, madame Tavares!
E o senhor acha que os pais da menina vão ficar muito tempo na prisão?
O pai seguramente, mas a mãe, se arranjar um bom advogado e como, ao que parece, está inocente, talvez possa sair de lá mais cedo!
Ó valha-me Deus! O que vai ser desta pobre menina, mossiú Steffen?
Ah! Ainda bem que o seu marido está a chegar! Bonjour, monsieur Tavares!
Bonjour! Que se passa, mossiú Steffen? Morreu mais alguém de acidente?
Não! Esteja tranquilo que não é nada convosco, senhor Tavares! Vós sois pessoas honestas, trabalhadores e tendes um coração muito bom! Eu vim dizer-lhe que não deixe ver nem entregue a Florbela a ninguém sem a autorização do juiz.
Credo, do juiz?! Mas porquê, mossiú Steffen?! retorquiu Florindo bastante incomodado e confuso.
Como há curiosos que nos escutam, a sua madame que lhe conte ou venha falar comigo ao comissariado se precisar de qualquer ajuda. Pronto, senhor Tavares, guardem a menina até o tribunal decidir a quem a confiar! murmurou baixinho.
Fique tranquilo, senhor Steffen, que nós tratamos a Florbela como se ela fosse nossa filha!
Não duvido, monsieur Tavares. Hum! Como cheira bem o seu almoço, madame! Bom apetite e au revoir!
Obrigado e ôvuá, mossiú Steffen! agradeceu a senhora Dora, acenando envergonhada e fugindo dos olhares intriguistas das vizinhas.
Os gendarmes que queriam, senhor Florindo? perguntou uma linguareira, mal viu o carro da autoridade atingir a nova fachada da casa da Isabel, a baixinha que era mulher do Jorge, um português de Fiolhoso que trabalha na Good Year há mais de vinte anos e é árbitro no futebol luxemburguês, e mãe do Carlos e da Marisa, que por sinal começara a estudar dias antes com a filha dela no colégio das freiras em Ettelbruck.
És bem curiosa, Maria!
Eles que vos queriam os gendarmes, Florindo? insistiu a curiosa.
Nada, só andavam à cata das coscuvilheiras que telefonaram ontem à noite para lá a dizer que os vizinhos partiam tudo em casa! Se foste tu, confessa!
Credo, cruzes, homem! Você nem as pensa! Não, não, deixe a polícia para lá e que o diabo seja surdo. Ai! gritou assarapantada, lambendo os nós da mão de depois de se aleijar ao bater com ela na parede para exorcizar a praga do demónio.
Florindo sorriu e, obedecendo ao aceno da esposa, que lhe pedia discretamente que se calasse, subiu as escadas, entrando em casa e batendo a porta atrás de si, para melhor ouvir a Dora contar-lhe o infamante paradeiro dos desgraçados que haviam dado o ser à doce e meiga Florbela, que, sentadinha à mesa ao lado da filha, comia cuidadosamente com o garfo bem firme na mão direita e lhes enviava um jovial e comovente beijinho. E como sorriam os olhos da inocente!
Depois do almoço, arrumada a louça, a senhora Dora encheu-se de coragem e telefonou à Aline de Ermsdorf, madrinha da Florbela e a esposa do Gilberto, primo da Vera.
Madame Da Silva, alô! respondeu prontamente, pegando no auscultador.
É a Dora de Larochette, Aline!
Olá, como está, senhora Dora?
Bem, graças a Deus!
Aconteceu alguma coisa à Florbela? perguntou inquieta, pressentindo a aflição que maculava o timbre da voz da sua interlocutora.
Não, sossegue que a sua afilhada está a dormir como um anjo aqui ao meu lado no sofá. A Aline acalme-se que ninguém morreu ou sequer partiu uma perna!
Vá, desembuche duma vez, senhora Dora!
A Vera e o marido estão na prisão!
Credo! Que vergonha, meu Deus!
A polícia caçou-os hoje de madrugada.
Onde? Porquê? Diga logo tudo!
Onde não me disseram, mas os gendarmes contaram-me que foram apanhados às seis da manhã com droga no carro quando vinham da Holanda.
Impossível! Só pode ser engano, senhora Dora!
A Aline nem imagina como eu queria que fosse engano ou mentira, mas infelizmente é verdade porque o mossiú Steffen da Gendarmerie de Larochette proibiu-me de mostrar a Florbela a alguém, enquanto o juiz não decide.
Mas decide o quê?
Sei lá! Talvez a quem confiar a menina enquanto os pais não forem julgados!
A senhora cuide bem da Florbela e compre-lhe tudo o que for preciso! Que nada falte à minha afilhada! Eu pago-lhes tudo! Quer que lhe vá levar alguma àcônta para as despesas?
Por amor de Deus, nem pense nisso, Aline! Se os pais não saírem mais da prisão nós estamos dispostos a adoptá-la.
Não! Eu perfilho-a!
Vocês conhecem um bom advogado, Aline?
Como, senhora Dora, se eu nunca tive nada a ver com a justiça?!
Então você, que fala bem luxemburguês e entende tudo o que eles dizem, mexa-se e arranje um advogado à sua prima, porque o mossiú Steffen acha que ela está inocente!
Se a Vera está inocente que a libertem! E porque a meteram na prisão?
Isso não sei, mas o que eu lhe garanto é que sem um bom advogado ela não sai de lá antes do Natal!
Pronto, descanse que a minha prima não ficará muito tempo na prisão! Nós vamos tratar disso! Obrigado e, por amor de Deus, não diga nada à Florbela, porque isso pode traumatizá-la para o resto da vida!
Esteja tranquila, Aline! Adeus e… Ah! Logo que saiba qualquer coisa…
Quando tiver alguma novidade, telefonar-lhe-ei! Muito obrigada por tudo, senhora Dora!
Ora essa! Adeus!
Adeus e dê por mim um beijinho muito forte à Florbela!
Um milhão, se for preciso, Aline! respondeu carinhosa, fitando com pesar a inocente adormecida e pousando distraidamente o auscultador no gancho.
De pé, sob a padieira da porta, Gilberto nem queria acreditar! Com as mãos untadas de óleo, deixara o capot do Mercedes e viera saber a razão dos gritos espavoridos que a mulher dava na cozinha.
Aline! O que se passa, meu amor!
Oh! A mim só me acontecem desgraças!
Desgraças?! indagou atónito, estancando o movimento dos dedos.
A Vera e o marido estão presos e, a estas horas, em Larochette, com a coscuvilhice que lá anda, todo o mundo deve saber! Já viste que vergonha a nossa, Gilberto? Os nossos primos enxovalharam-nos! Mais valia ter partido uma perna que ter ouvido tal novidade! Traficantes de droga?! Mas que vexame para a nossa família, meu Deus! Os desgraçados…
Vá, acalma-te e não chores mais, que lágrimas não lavam nódoas! Quanto à vergonha e ao que os outros possam pensar, não te amofines com isso, porque cada um responde por si!
Temos que nos mexer e arranjar um advogado que os tire de lá, Gilberto!
Se estiverem inocentes…
A pobre da Vera parece que está coitada!
E o Inácio?
Não!
Que morra na prisão!
Credo! Até parece que nem te conheço, homem!
Se lá ficar, o traste não bate mais na mulher e na filha, nem envergonha a família! Que morra e que pague pelos desgraçados que ajudou a cair no inferno da droga! Se soubesse como me deu pena ver os familiares e vizinhos do rapaz de Stegen chorá-lo! Pobre Miguel! Era um moço tão simples e educado!
Tu conhecia-lo?
Conhecia! Trabalhava no Feidt em Medernach e deixou um bebé com um ano de idade! A mulher dele é belga e fez tudo para que ele parasse de se picar, mas a droga foi mais forte e arrastou-o para a cova!
E ele tinha aqui família?
Muita! O senhor Luís, o fotógrafo…
O que também é professor e trabalhou com o meu pai na Good Year quando veio para o Luxemburgo?
Sim, o moço era primo dele, do Jorge que habita em Larochette, do Toninho que vai muito ao Toni da Brasserie du Village em Medernach e da Adélia que trabalha na clínica St. Louis em Ettelbruck e que, por sinal, se encarregou de correr os papéis todos na polícia, no seguro, na funerária e que acolheu os pais do moço em casa e falou com o padre Leo para rezar aquela missa. A igreja estava cheia! Ainda assim, os portugueses são bem doridos!
Pois são, mas agora só nos resta correr também pelos nossos, Gilberto!
Pelos nossos?! Pela Vera farei tudo! Pelo ordinário do marido que corra e se mexa a família dele! concluiu enfurecido, indo lavar as mãos na bica exterior.
Aline pousou a rodilha e, ajeitando o avental, vestiu uma casaca de couro. Depois, fazendo um sinal ao esposo entrou no Mercedes e, estancando e enxugando a um lenço de papel as lágrimas enraivecidas que lhe resvalavam pela face, arrancou furiosa rumo a Larochette, onde só voltou duas mais tarde sem grandes novidades. O minguo fruto das suas diligências resumia-se pura e simplesmente a um nome que ela leu e releu vezes sem conta, porque cada vez que o lia, a sua fé aumentava e a esperança que arrastava silenciosa e dorida no fundo da alma parecia dar brado e luz a um sorriso que teimava em definhar.
A tarde de domingo passou-a com o marido a tomar nota dos lugares onde nunca pensara vir a pôr os pés durante a vida e dos homens a quem jamais imaginara precisar de recorrer para manter imaculado e intacto o bom que herdara dos seus pais: o tribunal, a prisão e os advogados.
Na noite desse dia sagrado, ainda telefonou à patroa para a avisar de que, por causa de um grave problema familiar, talvez não tivesse tempo de ir trabalhar segunda-feira de manhã, mas que descansasse que à tarde faria horas que fossem necessárias para compensar a ausência matinal e, sobretudo, deixar tudo limpinho.
Às nove horas em ponto, deste chuvoso 28 de Setembro de 1998, lá estava em Bonnevoie, um dos mais antigos bairros da capital luxemburguesa, no quartel da polícia Grã Ducal para pedir ao senhor Marxen que a ajudasse a tirar a prima da prisão. No corredor, enquanto aguardava que a luz verde aparecesse no indicador electrónico, o seu coração, sufocado pelo medo e pela vergonha, quase que lhe saltou para fora do peito.
Möien! Bom dia ! exclamou jovialmente um agente à paisana.
Möien, herr… Bom dia, senhor… respondeu Aline duvidosa, encarando-o timidamente.
Marxen! Jos Marxen, madame…
Da Silva! Ech Heeschen eu chamo-me Aline Da Silva, monsieur Marxen! adiantou mais calma, num luxemburguês tão perfeito como o dele.
Ah! Vejo que a senhora Da Silva também sucumbiu ao charme latino dos portugueses! prosseguiu orgulhoso.
Por acaso sucumbi, senhor Marxen…
Eu também!
Ah?! O senhor é homossexual?!
Homossexual?! Eu?! Acha-me com cara disso, madame Da Silva?
Desculpe, não, não acho nada, nem tenho que achar, senhor Marxen! Não era isso que queria dizer! Sabe, estou tão aflita que nem sei onde trago a cabeça! Desde ontem que não prego olho, não paro de chorar e cismar com esta tragédia! Sabe, só me apetecia abrir um buraco na terra e enfiar-me lá até este pesadelo passar! esclareceu confusa, desviando o olhar para uma rima de dossiês.
Vá, então sente-se e conte-me lá calmamente o que a preocupa assim tanto para lhe roubar o sono e…, desculpe, o brilho a esses maravilhosos olhos negros. Sabe, foi por uns olhos assim que eu me apaixonei!
Ah! O senhor Marxen também sucumbiu ao charme latino…
Das portuguesas! concluiu envergonhado, mas sorridente.
Pois claro, das portuguesas!
Se a senhora Da Silva não se exprimisse assim até diria que…
Eu sou tão portuguesa como o meu marido, senhor Marxen!
O meu coração bem que mo disse…, mas, desculpe, conte-me lá o que a aflige assim tanto, senhora Da Silva.
Sabe, esta é a primeira vez que me devo confrontar com a polícia, a prisão e o tribunal e isso aborrece-me imenso! Os meus pais ensinaram-me a respeitar as pessoas e a não transgredir nem a lei de Deus e, muito menos, a dos homens!
E porquê?
Porque se Deus é justo e sempre perdoa, os homens são, na maior parte das vezes, injustos, traiçoeiros e raramente têm compaixão e perdoam o erro, ingénuo que seja, de um ou de uma inocente. O estado, esse, então, nunca perdoa, porque ele não têm coração! Além disso, senhor Marxen, para nós, latinos, a honra da família vale mais que ouro!
Eu sei, Aline, eu sei! A minha mulher é assim e ainda bem!
E como se chama a sua esposa, senhor Marxen?
Lídia! Lídia Maria do Nascimento Esteves Ferreira dos Santos Marxen! Um verdadeiro nome de princesa! comentou jovial, depois de pronunciar calmamente o nome completo.
― E não é, senhor Marxen?
― O quê? Princesa?
― Sim, para si a sua mulher não é uma princesa?
― Princesa, Aline?! Rainha! A Lídia Maria é a rainha do meu lar e da minha carteira! E ai de mim que não me porte bem e vá com ela todos os Domingos à missa agarrado ao braço dela!
― Todos os Domingos, senhor Marxen?!
― Sim, quando não estou de serviço!
― Bem haja ela! Assim é que uma mulher, que se preze, bem entendido, deve ser! opinou Aline, visivelmente mais sossegada, esboçando um sorriso que iluminou o escritório e encheu de orgulho o rosto deste homem sem preconceitos.
E, sentindo-se encorajada pelo olhar invisível da compatriota, que imaginou naquela hora ao lado do marido, Aline abriu o seu coração àquele estranho que sempre o sexto sentido lhe dizia sempre ter conhecido.
Às onze horas, quando lhe apertou a mão, foi como se cumprimentasse um anjo caído misteriosamente do Céu. Aliviada e confiante, regressou a casa e esperou que, como o agente da polícia judiciária lhe aconselhara, que dois ou três dias se passassem para reagir e fazer apelo a um advogado.
Durante o retorno até Reuland, onde trabalhava, Aline não parou de cismar com as revelações do polícia que ela, agora sabia, cruzara várias vezes no Bistro Op der Gare de Medernach, o restaurante do Aníbal e da Noémia onde, atraído pelo cheirinho da boa cozinha portuguesa, ele ia frequentemente almoçar com a esposa e os filhos. Afinal, o agente Marxen, responsável pelo departamento de luta contra a droga, há um ano que, por serem primos do incriminados, seguia à traça, não só todos os seus movimentos, mas sobretudo as suas palavras, colocando-lhe o telefone sob escuta.
Com espanto descobriu nitidamente as fotografias da Vera, tiradas a meio quilómetro de distância, a lavar o Audi na garagem Goedert de Ingeldorf e a discutir com o marido diante da porta de casa, na tenebrosa, mas cálida, escuridão de uma meia-noite estival e também o ouviu contar-me pormenores da sua azáfama quotidiana, como o carregamento do Mercedes, na tarde de 31 de Julho último, antes de partir para Portugal gozar as mais que merecidas férias e matar as saudades das sardinhas da Vieira com o pai e mãe, que não abraçava há um ano ou ainda contemplar aquela esplendida paisagem que a cascata da serra da Freita oferece a quem, rumando a Arouca, ali pára um instante, mas, inebriada com a pureza daqueles ares e o encanto de tão singelos lugares, não sente mais a vontade de os largar. Tudo, as palavras, as imagens e mesmo os silêncios infames das provas que vira, saltando milagrosamente da sua memória, bailava vivo e nítido à sua frente e lhe obcecava o olhar, abstraindo-lhe a inconsciente realidade onde navegava o seu pensamento perplexo. E valeu-lhe o instinto, a sorte ou, porventura, a magnanimidade do destino para que, naqueles incônscios vinte quilómetros de macadame e nefelibata viagem, não tivesse cruzado a morte.
Quarta-feira à tarde, como o telefone não tocasse, desesperada, Aline resolveu contactar o Dr. Hugo Amado, jovem advogado, filho do senhor Álvaro e da D. Perpétua, padrinhos da sua primeira comunhão, que muito respeitava e admirava por, à força de grande sacrifício e abnegação, terem proporcionado aos filhotes os diplomas que eles sempre ambicionaram. Apesar do nervosismo extravasante, que a fazia tremelicar de alto a baixo, lá conseguiu discar os seis números de Diekirch.
Alô? Étude de Maître Amado, bonjour! Escritório do mestre Amado, bom dia! respondeu-lhe uma voz feminina.
O Dr. Hugo está? perguntou ansiosa.
Sim, mas quem lhe devo anunciar?
Por favor diga-lhe que é a Aline, a afilhada dos pais dele!
Um momento, senhora… disse a secretária, tapando o auscultador.
Olá! Há quanto tempo não te ouvia! Como vais, Aline? perguntou risonho, mas distraído, esfolhando o dossiê da causa que tinha que defender dentro de uma hora no tribunal.
Mal, muito mal, Hugo! A minha prima está na prisão e só tu é que a podes tirar de lá! Por favor, ajuda-me que eu não sei o que fazer! Anteontem, o inspector da polícia judiciária garantiu-me que a Vera está inocente, mas que se não recorrer a um bom advogado, não sairá de lá tão cedo! Tu tens que me ajudar, Hugo!
Se não morreu ninguém, acalma-te e não fervas num copo de água! Vá, fala mais devagar e responde-me. Afinal quem é essa Vera? Eu conheço-a?
A Vera é prima direita do Gilberto e tu com certeza que a deves conhecer.
Pois…, talvez, mas porque é que ela está na prisão? Roubou algum coisa? Matou alguém ou foi apanhada na má vida?
Não, não roubou nada, nem matou ninguém, quanto à má vida…
Ah! Estou a ver! Foi isso! Respondem a um anúncio e…
Oh! Não é nada do que tu pensas, Hugo! Ela é uma triste! Desde que se casou, o marido só lhe tem dado má vida: bate-lhe, despreza-a e gasta na droga todo o dinheiro que a pobre ganha a esgravatar como uma escrava! A Vera vive no inferno, Hugo, e isso ela não nunca desejou nem merecia certamente!
Ah! Com que então a madame traficava droga! Só me faltava mais esta! Mas…, está bem, acalma-te que nós, os advogados, defendemos criminosos muito piores! Homens que matam, violam e … Bom, isso de me dizeres que a tua prima está inocente, saiu da tua cabeça ou já falaste com alguém antes de mim?
Com o senhor inspector Marxen da polícia judiciária de Bonnevoie. Foi ele quem me garantiu que a Vera não tem nada a ver com a droga!
Espero bem que seja como dizes, Aline! Vá, deixa isso comigo que para a semana verei o que posso fazer.
Pra semana, Hugo?! Nem as penas! Se estás assim tão ocupado, vou arranjar outro, porque a Vera tem que sair de lá e depressa!
Depressa? Olha que na prisão não morre ninguém à fome, rapariga!
Eu sei, Hugo, eu sei, mas quem não pode saber nem desconfiar que a mãe está na prisão é a minha afilhada, que há quatro dias que não a vê!
Ah! Além de um marido, a madame também tem uma filha… que abandonou como uma megera, porque se calhar até nem é de quem devia ser! acrescentou irónico, dando de olhos à secretária que seguia espantada a conversa por de português não perceber patavina.
Tu não conheces a Vera! Se a tivesses visto, uma vez que fosse, não falarias assim dela, Hugo! adiantou queixosa e desanimada.
Desculpa, não desligues, Aline! Pronto, hoje não, que tenho audiência e amanhã também não que vou a Paris, porém sexta-feira, sim, garanto-te que irei falar com a tua prima e, juro que farei tudo, mas tudo, para a tirar de lá e a devolver à menina. A propósito, como se chama a filha dela?
Florbela e é um amor de criança, Hugo!
E quantos anos tem a Florbela?
Seis!
E a Vera?
Vinte e cinco!
Deixa-a comigo que eu lá resolverei o problema. Ah! Se a quiseres visitar antes, vai ao juiz encarregado do processo e pede-lhe uma autorização para a ires ver a Schrassig, presumo. É lá que ela se encontra, Aline?
Sim, Hugo, a Vera está em Schrassig, mas eu nem sei onde é que isso fica.
Olha, Aline, vais para o aeroporto, tomas a direcção de Sandweiler, passas em frente do Controle Técnico e segues vila abaixo até encontrar a placa de Schrassig, que fica à tua esquerda e depois rolas até dar com os olhos naquele monstro cravado no meio de um campo de grelos! Não tem nada que enganar.
Obrigada, Hugo! Faz lá isso por mim! Ah! Quanto aos teus honorários sou eu quem tos pago. Mais, se ma tirares rápido de lá, convido-te para um jantar com ela e com o Gilberto onde quiseres!
Está bem! Não te atormentes, que à cadeira vai parar, infelizmente, muito inocente e filho de muito boa gente! Vá, não chores, Aline! Adeus!
Adeus, Hugo!
Pousando o auscultador, Aline saiu porta fora e, pegando no carro, correu para a capital à procura do juiz, a fim de obter a autorização de visita à reclusa. Depois de passar várias vezes diante do palácio do Grão Duque, que dava para estátua do o imponente Guillaume d’Orange, primeiro monarca do Luxemburgo, pediu ao empregado municipal encarregado de controlar o estacionamento naquela área que lhe indicasse onde era o tribunal, o que ele fez de bom grado.
Consultando o relógio, desatou a correr rua abaixo e, escolhendo o passeio da calçada, desembocou numa espécie de barco afundado com umas escadarias que davam para a parte alta da cidade, não muito longe da igreja de Santo Afonso. Pelo movimento dos carros da polícia e os jovens algemados que de lá saíam, viu que estava no lugar certo.
O porteiro mandou subir ao escritório do juiz encarregado da instrução do processo e, seguindo as indicações, lá subiu as escadarias.
Desculpe, eu preciso de uma autorização para ir ver a minha prima à prisão. Ela foi presa no domingo de madrugada, mas está inocente! disse ofegante, interceptando um senhor de cabelos brancos, vestido pior do que ela, que entrava num escritório cheio de livros e papéis.
Sim, pois … respondeu o empregado, mexendo num dossiê.
Eu quero falar com o senhor Dr. Juiz Schmitt! Por favor diga-me onde o posso encontrar, porque se faz tarde e quando tal acaba a hora da visita.
E depois, senhora? Amanhã…
Qual amanhã, qual carapuça, senhor! Eu tenho que ver a minha prima ainda hoje! Ela deixou a filha na ama e a menina está a precisar de roupa…
Mas a prisão não é nenhum centro comercial que eu saiba, senhora!
Oh! O senhor parece bem estúpido! A roupa da minha afilhada está fechada em casa dos pais, mas eu não posso lá entrar porque as chaves estão em Schrassig com a mãe! esclareceu arreliada.
Não adianta zangar-se, senhora! respondeu-lhe o estranho, esboçando um sorriso irónico.
Desculpe, mas devo ter batido à porta errada. Por favor, diga-me só onde posso encontrar o Senhor Dr. Juiz Schmitt?
À sua frente!
Âaah?!?! exclamou atónita, arregalando os olhos e tapando a boca.
Eu sou o Juiz Schmitt, madame Da Silva!
O senhor Dr. Juiz desculpe se o ofendi, mas desde segunda-feira que ando desesperada num corrupio infernal e ainda não vi a minha prima!
Ora essa, a madame não me ofendeu nada!
Realmente nunca imaginei que o senhor…
Os juizes só são diferentes dos outros homens quando estão no tribunal!
Pois como os padres no altar.
Exactamente, madame Da Silva!
Mais uma vez, por favor, desculpe a aspereza das minhas palavras, mas foi sem pensar que elas me saíram pela boca fora, senhor Dr. Juiz!
Pois, nestes dias a senhora só deve ter ouvidos para o seu coração!
Em Portugal, o povo diz que quem não se sente não é filho de boa gente! E eu prezo-me e orgulho-me de ser filha de muito boa gente, Dr. Schmitt!
Aqui está a sua autorização, madame Da Silva. Por favor assine-a! disse o juiz, tirando-a da gaveta e colocando-lha à frente dela.
Muito obrigado e que Deus lhe pague! agradeceu Aline, pousando a bolsa no canto da escrivaninha e assinando apressadamente o papel, enquanto o homem de leis consultava um calhamaço na prateleira.
E o silêncio voltou sorrateiramente ao escritório para acalmar aquela respiração ofegante. Pousando a esferográfica sobre a autorização, Aline pegou na bolsa e perguntou timidamente:
É preciso mais alguma coisa, senhor Dr. Juiz?
Não, pode ir tranquila! respondeu distraído, consultando o alfarrábio à luz da vidraça.
Adeus e desculpe por tudo, Dr. Schmitt!
Adeus e boa sorte, madame da Silva!
Obrigada! murmurou envergonhada.
Virando costas, Aline desatou a correr até às escadarias e, deitando a mão à grade, desceu os degraus dois a dois. Depois, atravessando a calçada do pátio, dirigiu-se para o carro pelas escadas que davam para o miradouro donde se avistam os antigos, mas restaurados, bairros do Grund e do Pfaffenthal, ocupados maioritariamente pelas famílias dos pedreiros portugueses.
Até Schrassig, foi um pulo, mas quando lá chegou, Aline sofreu um choque: diante dela, no meio de um descampado, que a noite ia cobrindo lentamente, erguiam-se uns muros altos e com arame farpado e vidros espetados. Só de os ver, ficou toda arrepiada! Aproximou-se de um portão de ferro e tocou à campainha.
Quem é e o que faz aqui a estas horas??? indagou um vozeirão.
Sou a madame Da Silva e venho buscar as chaves da…
Entre!!!
E as placas de ferro da porta começaram a abrir-se. Seguindo o movimento rotativo, Aline ficou dentro do muro, em face das paredes da prisão, sob os holofotes iluminados, e, perdida, andou de um lado para o outro à procura da entrada. Espreitava para uma janela de vidro obscuro, quando sentiu um o estrondo de um murro e recuou assustada.
Para onde vai, madame? Volte para trás! gritou-lhe o megafone espetado no ângulo da parede.
Desculpe, mas eu perdi-me! exclamou intimidada, ao dar com os olhos no guarda de vigia.
Depois, seguindo-o até ao interior, contou-lhe a razão da sua vinda ao estabelecimento prisional e abriu a bolsa da mãopara lhe apresentar a autorização que o juiz lhe passara.
Oh! Desculpe, mas devo ter deixado o papel lá fora no carro! bradou envergonhada, ao dar pela falta do documento judicial.
Não procure mais, que o senhor Dr. Juiz já me telefonou a contar o sucedido e me enviou um fax para confirmar as suas palavras! Aqui tem as chaves!
E a minha prima, não a posso ver?
Lamento muito, mas a hora das visitas já terminou há quinze minutos!
E falar-lhe?
Também não! Volte amanhã às quatorze horas, madame!
Pronto! De qualquer maneira, muito obrigada pela sua gentileza! Adeus!
Adeus! Ah!… A saída é por ali, madame! esclareceu o guarda, apontando para a porta.
Merci! agradeceu confusa, segurando as chaves e engolindo em seco a emoção que sentia ao despedir-se daquele antro infame.
Ao transpor os muros da prisão, ainda se voltou para trás e, imaginando a prima agarrada às grades, acenou comovida.
Trinta e cinco minutos depois, entrando em casa, estatelou-se no sofá e, pegando na almofada, colocou-a debaixo da cabeça, adormecendo de cansaço. Descobrindo-a aninhada na escuridão, o marido agasalhou-a com um cobertor e foi arranjar qualquer coisa para cumprir o sagrado rito da ceia, já que fome não sentia, desde que soubera da infelicidade da Vera. E se a marmita era feita todas as noites, antes de se deitar, voltava sempre cheia como ia. É que, temendo afrontar o olhar justiceiro e zombador dos colegas, Gilberto quase não descia da máquina escavadora onde passava a maior parte da sua árdua jornada de trabalho.
Uma simples omelete com presunto e broa de milho, comprado na véspera no mini mercado da Mila em Larochette, que mastigaram parcimoniosamente diante da televisão, enquanto viam a novela da RTPi, serviu para os ajudar a engolir a decepção que traziam no peito e amainar o desespero acumulado ao longo daqueles quatro dias de angústia.
continua II Capítulo




Lud MacMartinson
LMP - Luxemburgo