sexta-feira, 18 de julho de 2008

Caminhos de ilusão: Capítulo XV incompleto...


Capítulo XV





Naquela noite, quase ninguém dormiu: enquanto que, em Paris, mãe e filha temiam fechar os olhos, com o medo de que o sonho lindo, em que as suas almas viviam, voltasse à realidade e se transformasse num pesadelo cruel para os seus corpos martirizados, em Macôn, matutando com os seus botões, a Maria e a Zélia, desconfiavam que os maridos lhes tivessem escondido a real natureza do passador da Almodena, sobre quem recaía a suspeição pela tragédia, tão bizarra sempre fora a sua atitude.
Quando a aurora desta quinta-feira, 7 de Agosto, despontou sobre a capital francesa, Norina, cansada de tanto adiar o sono apoquentador, sucumbia a último assédio dos remorsos, adormecendo a olhar para a filhinha, que dormia com a felicidade estampada no rosto, embalada pelos assobios ressonantes que se escapavam do quarto contíguo ao delas, onde descansavam os conterrâneos.
Às nove horas, apenas dobrou a esquina da rua que desembocava no terreiro diante da prisão, elas foram imediatamente rodeadas por um batalhão de jornalistas, que não se cansaram de tirar fotos e lhes fazer perguntas, tentando desenfreadamente obter delas a confidência com que matracariam o público naquele fim de semana. Amparadas e protegidas pelos conterrâneos, que repeliam os teimosos do melhor que podiam, Norina e Verónica lá foram caminhando por entre as alas e encolhendo os ombros, tentando alcançar os portões da prisão para lá se refugiarem. Vendo-as tão assediadas, o director correu a abrir-lhes as portas da prisão e a dar-lhes guarida no átrio dos visitantes, dando com os olhos num casal e dois senhores de aspecto distinto que lhes sorriam como se já os conhecessem há muito tempo.
— Bom dia, D. Norina! Eu sou o Fortunato Galela do Fiolhoso e estes senhores são o patrão do seu marido, Monsieur Paraffini e Monsieur le Député Lavoisier du Doubs! — disse o transmontano, cumprimentando-a e apresentando-os.
— Muito prazer em conhecê-los e muito obrigado por terem vindo tão depressa! — agradeceu acanhada, estendendo-lhes a mão e virando-se para o Francisco para que traduzisse.
Depois das apresentações, o director chamou-os à enfermaria, onde o prisioneiro era examinado pelo chefe dos médicos. Correndo a beijar a mão ao pai, Verónica perguntou:
— Dormiste bem, papá?
E, sorrindo, ele meneou negativamente a cabeça.
— A mamã também não. Ficou todo o tempo de olhos abertos a pensar em ti, mas eu dormi como um anjinho! Ah! Tive um sonho tão lindo, papá!
Tacteando os cabelos da filha, Arménio virou-se para lhe beijar o rosto e logo as lágrimas lhe saltaram das órbitas, comovendo os visitantes. Abeirando-se dele, a esposa beijou-o na boca e murmurou baixinho:
— Pronto, não chora mais, meu amor, que o pior já passou. Se Deus quiser, ainda recuperarás a fala e a visão para veres como a Verónica está linda…
— E a mamã também, papá! Sabes, a tua Norina não teve outro homem, apesar de não acreditar que ainda estavas vivo, pelo menos era o que ela me dizia. A mãe dizia que não era capaz de amar mais alguém…
— Verónica! Deixa o papá tranquilo, filha!
— Estão aqui, pelo menos, dois senhores e uma senhora que te conhecem. Olha, para que o senhor director saiba que tu estás inocente, eles vão pronunciar o teu nome e uma ou duas palavras e se tu reconheceres a voz deles aperta-me a mão, sim?
E o pai meneou afirmativamente a cabeça.
— Arménio, conheces o padre? — perguntou um.
Mexendo os dedos, o prisioneiro pediu com que escrever. Vendo o gesto, o deputado tirou do bolso uma agenda de função e uma esferográfica e ofereceu-os à Verónica, que a meteu na mão do pai, dizendo:
— Escreve lá então o nome dele.
E as palavras Francisco e Serra apareceram na folha.
— E eu sou portuguesa ou francesa?
“Francesa! ”— gatafunhou lentamente, acrescentando: — Como estás, Martine?
— Bem, Arménio!
— Olá Portugallo!
“ Merci, patron! ”
— Como se chama o teu patrão, papá?
“ Paraffini ” ―
— Ainda te recordas de mim, Arménio?
“ De ti e da Martine, claro! Obrigado por tudo, Fortunato! ”
Entretanto, surgindo na enfermaria, o juiz pôde constatar que o prisioneiro era apenas mais uma vítima daquele hediondo atentado da rua das Rosas, rapidamente chegando à conclusão de que a confusão se devera à similitude do apelido e do nome próprio do emigrante, Arménio Sala, o que fizera dele um perigoso activista da organização terrorista SALA — Secret Army of Liberation of Armeny — que lutava pela independência do povo arménio e pelo reconhecimento internacional do genocídio contra ele praticado pela Turquia no início do século XX.
Depois de conferenciar com Maître Fournier, a quem aconselhou a introduçãodo pedido de revisão do processo e a consequente indemnização, o juiz assinou a autorização de saída, pedindo ao director que lhe fizesse uma cópia da cena que a câmara acabava de filmar.

...


Os Capítulos XVI & XVII estão no segredo dos deuses, para que justiça divina seja feita... na hora que o destino marcouLMP - Luxemburgo 1984 - Lud MacMartinson

Caminhos de ilusão: Capítulo XIV


Capítulo XIV




Ainda habituado ao horário dos dias de labuta, Francisco Serra largou a mulher na cama e, lavando-se à pressa, correu a comprar a baguette para o pequeno- almoço na padaria mais próxima, como era hábito. De volta, passou no quiosque e comprou L’ Equipe, o diário desportivo, e a Téle 7 Jours, a revista com os programas televisivos da semana. E, entretido a ler um artigo sobre Saint-Étienne, o porta-bandeira do futebol francês, passou distraído pelo táxi.
Perto do portão, porém, ouviu uma buzinada de um patrício e, virando-se para ver quem era, deu com os olhos no tecto verde. Curioso, deu um passo lateral e, espreitando, descobriu a matrícula do Opel. Intrigado, pelos números, enrolou o jornal e, voltando atrás, espreitou pelo pára-brisas embaciado, reconhecendo imediatamente o taxista de Abrambres e as outras dorminhocas. Resfriando os ânimos, correu a avisar a Zélia, que se levantou radiante e começou logo a estender a mesa e a arrumar a desordem da véspera, enquanto o marido ia adiantando o café.
E às oito horas, quando a Verónica, a pedido dos adultos, se apresentou diante da campainha para surpreender os emigrantes, a porta antecipou-se e abriu-se sem que ela lhe tocasse. Assustando-se, ela recuou dum salto e, enchendo-se de coragem, bradou:
— Mossiú Serra!!! Mossiú Serra!!!
Como ninguém lhe respondesse, olhando para dentro e, virando-se, disse estupefacta:
— Oh!.. A mesa está pronta!
— Ah! Querias enganar-nos?! — exclamou Francisco radiante, espreitando de surpresa, logo seguido pela esposa emocionada.
— Ai os malandros enganaram-nos! — exultou D. Rita, empiscando ao genro e abrindo os braços à filha barriguda, que correu a abraçá-la demoradamente.
— Mas que surpresa, mamã! — desabafou Zélia lacrimosa.
— Olá, Verónica!
— Olá, Francisco! Estás a ver como consegui... — exultou a pequenita, abraçando-o.
— Então, Verónica!!! O senhor não é da tua idade, filha! — repreendeu Norina, sorrindo e oferecendo timidamente o rosto ao ex-seminarista.
— Isso mesmo, Verónica! Os senhores era em Portugal no tempo da ditadura. Olá! Como está, Júlio? — recordou Francisco jovial, de costas viradas, cumprimentando o taxista.
— Bem, obrigado! E vocês?
— Nós, como vêem, estamos óptimos! Então a viagem? — perguntou o emigrante.
— Boa, graças a Deus!... Ah, com esta estrada é outra coisa! — opinou Júlio muito contente.
Feitas as saudações, as mulheres foram ver a casa, enquanto os homens foram descarregar o táxi e arrumar a bagagem na dispensa. Meia hora depois, lavadas as mãos, sentaram-se à mesa e começaram a tomar o pequeno almoço. Às dez e vinte, depois de recordar o episódio que desfigurou o Faia e matar as saudades, ainda comentavam as últimas novidades de Portugal, antes de irem fazer uma surpresa ao Zé Pinto e à Maria, que habitavam em Vonnas, a simpática e pacata Vila do Hotel-Restaurant Mère Blanc, propriedade de um dos mais famosos mestres da cozinha francesa.
E, depois do almoço, naquela ensolarada segunda-feira 4 de Agosto, foi com muito orgulho que os genros e as filhas da D. Rita apresentaram a mãe e os amigos aos conhecidos que cruzaram, enquanto passeavam à beira do Rhône. Muito meiga, Verónica não se cansava de beijar a Cindy, a herdeira da Maria, de pegar nela ao colo e de apontar a barriguinha da Zélia, que se atrasara em confidências com a mãe.
À tardinha, foram todos para o Chemin des Saules, em Vonnas, onde Zé Pinto estreou a última das suas engenhocas: um assador de frangos. Deixando as mulheres a preparar a salada e, aproveitando o entretimento do taxista junto do lume, Francisco deu de olhos à Verónica e saiu para a rua. Seguindo pela margem do ribeiro à sombra dos salgueiros, contornou o Mère Blanc e, atravessando a ponte, passou para o outro lado, sentando-se num banco do terreiro, mesmo diante da casa dos cunhados, a quem acenou por várias vezes. E cinco minutos bastaram para clarificar todas as insinuações e as dúvidas das últimas cartas do ex-seminarista.
Durante a ceia, conhecendo os cómodos da mana, Maria ofereceu-se para albergar o Júlio e a Verónica: o taxista ficaria numa cama desmontável instalada no rés-do-chão debaixo das escadas e a órfã com Cindy, no sofá da sala de jantar, enquanto a mãe e a viúva dormiriam no quarto de hóspedes da Zélia em Macôn.

Terça-feira, Francisco quase não dormiu. Preocupado em proporcionar à sogra e à Norina a melhor estadia possível, ergueu-se cedinho e, depois do café, deixando as mulheres a falar do bebé que nasceria dentro de dias, saiu para Vonnas, onde, pedindo à Verónica que o acompanhasse até Bourg-en-Bresse, avisou os cunhados e o taxista que o almoço estava marcado para a uma da tarde. Vinte minutos depois, Chico deixava a estrada nacional e estacionava o carro diante da moradia dos Guvenneck, um solar cheio de heras, donde emergiam apenas as portas e as janelas. Adiantando o passo, prepara-se para tocar na campainha, quando uma distinta senhora de cabelos brancos lhe deu as boas-vindas:
— Bom dia! Por favor, entrem! Há muito que os esperava, Monsieur Serra!
— Bom dia, Madame Léa! Esta a Verónica, a menina de quem lhe falei.
— Ah bom?! Tu és muito linda, Verónica! — elogiou a vidente incomodada pela persistência e a vivacidade do olhar da criança.
— Obrigada, madame! A senhora também é muito simpática! — agradeceu menina, revistando o consultório com o seu olhar de lince.
— Façam o favor: sentem-se e recordem-me lá a vossa história!
— Estamos sós, Madame Léa?
— Com certeza, Monsieur Serra. Estejam à vontade que ninguém nos ouve — tranquilizou ela, arrastando a cadeira e sentando-se diante deles.
— Vá, diz lá tudo o que te aflige, mas fala devagar para que eu possa fazer a tradução à senhora.
Olhando obstinadamente a francesa, Verónica cruzou as mãos nos joelhos e contou-lhe tudo o que sentia e vivia desde a morte do pai, parando apenas para que o intérprete pudesse traduzir. No fim, fechando os olhos, a vidente pôs as mãos sobre a fotografia que o emigrante lhe pousara na escrivaninha e disse num tom insensível e frio:
— Realmente estou a sentir algo de estranho, Monsieur Serra, mas nada do que pensam. Contudo, tenho a sensação de que nesta foto ninguém é como era. Senão reparem: este sujeito, por exemplo — e apontou o passador — aqui está de barbas, orgulhoso e não creio que seja esse o caso agora. O pai da menina..., esse... — balbuciou confusa, evitando o olhar vítreo da Verónica e engolindo em seco, incomodada pela sua percepção.
— O que se passou com ele, Madame Léa? Morreu mesmo? — questionou apressado.
— Calma, Monsieur Serra, calma! — rogou a vidente, fechando os olhos e impondo de novo as mãos sobre a foto que os transmontanos haviam tirado de G-3 em punho em Angola, no meio do capim do Nambuangongo.
Colada à cadeira, Verónica nem pestanejava, procurando adivinhar o que a senhora dizia ao Francisco. E um silêncio absurdo invadiu a sala ao mesmo tempo que o Sol começou a bater na vidraça e a revestir de ouro tudo por onde passava.
— Sinto muito, Monsieur Serra, mas lhe posso garantir que o pai da Verónica esteja vivo ou morto, porque ele cortou a linha da vida quando era novo e aquele corte na mão dele deixa-me muito confusa.
— Desculpe, Madame Léa, mas eu não percebo! — volveu o português envergonhado.
— Querida, o teu papá devia ter um sinal na mão. Recordas-te? Como é que ele se cortou? - questionou afavelmente a vidente, sorrindo à criança.
— Sim, ele tem um sinal na mão esquerda..., ou na direita, nem sei bem!... — hesitou um instante, olhando para as suas. — Bom, numa foi com uma navalha, quando era pequeno, ao cortar um queijo de cabra, e na outra foi no ultramar com uma catana, num dia em que agarraram um turra.
Traduzindo mentalmente as palavras da mocinha, Francisco repetiu à vidente o que acabava de ouvir, utilizando inadvertidamente a palavra turra para espanto da senhora, que, ignorando o significado desse vocábulo, lhe perguntou imediatamente:
— Turrá ? O que é um turrá, senor Serra? — questionou ela, esforçando-se por pronunciar correctamente.
— Um turrá era um terrorista que combatia o governo colonial português!
— Um terrorista?! Ah! Com que então eles mataram um terrorista em Angola!!! — desabafou a vidente,
— Isso não sei. O senhor Faia, que me trouxe para França e com quem convivi muitos anos, costumava vangloriar-se de ter cortado os testículos a um negro em África, mas eu achei que era só bazófia!
— Infelizmente não era, Monsieur Serra. Este tratante fê-las bem piores, mas não me parece que tenha tempo para muitas mais.
— O que me diz lá, Madame Guvenneck?! — indagou o emigrante perplexo assustado, sustendo a respiração e arregalando bem os olhos.
— Não tenha medo! A linha da vida desse traste está por dias e ninguém poderá evitar que ela se rompa de vez. Ela está por um fio, sabe? É o destino, Monsieur Serra! Infelizmente este homem está perdido. Um cão desfigurou-o e, desde esse dia, ele só pensa em vinganças!
— Vinganças?! Mas…, e o pai da Verónica, Madame Léa? Veja lá se consegue ver qualquer coisa que a menina ainda dá em tolinha! Tire-lhe as dúvidas de uma vez por todas, se pode… — insistiu o português, segurando a mão da órfã.
— Diga à mocinha que a chave para as dúvidas está nas mãos do turrá, mas não percam tempo porque…
— A chave está nas mãos do turra?! Como assim?
— Faça o que eu lhe digo, vá depressa à prisão de La Santé a Paris. Não demorem, porque ele vai ser julgado brevemente por aquele atentado da rua des Rosiers e…, enfim!… Como é que se diz rosiers em português?
— Roseiras! Rosas!
— Rôsás?! Ah bom!!! Rosas vermelhas-sangue, como as rosas da paixão. Ah! As mulheres!... E há tantas que fazem perder a cabeça aos homens, Monsieur Serra! — bradou a senhora, franzindo a testa e deslizando os dedos pela foto à procura de novas sensações.
Hipnotizado por aquele olhar indecifrável, o emigrante corou de medo e, vendo a expectante impávida, esperou que a vidente lhe fizesse outras revelações, porém ela limitou-se a cerrar as pálpebras e a respirar fundo. Depois, abrindo os olhos e sorrindo meiga, repetiu:
— Lamento muito, mas se não for turrá, ninguém poderá fazer nada pela menina. Ide à prisão de La Santé e peçam ao director que vos deixe falar com o terrorista que vai ser julgado pelo atentado da rua des Rosiers. Se ele se mostrar reticente, digam-lhe que têm revelações capitais para lhe fazer.
— Pois, mas... E se o director não nos acreditar em nós? — indagou hesitante.
— Dirijam-se ao Maitre Fournier, um advogado muito meu amigo! Aqui têm a morada dele — disse a vidente, entregando-lhes dois cartões.
— É tudo, Madame?
— Sim, Monsieur Serra.
— Quanto lhe devo?
— Quinhentos francos, se fizer o favor — respondeu a senhora, sorrindo à mocinha e erguendo-se para espraiar.
— Dê-lhe seiscentos! — sugeriu Verónica, subitamente mais apaziguada, esboçando timidamente um sorriso.
— Aqui estão e muito obrigado, Madame Léa! — agradeceu o português, estendendo-lhe uma notona de quinhentos e duas de cinquenta.
— Que Deus te ajude a encontrar a paz, querida Verónica! Monsieur Serra, não se esqueçam de ir ver o terrorista! Adeus e boa sorte! — augurou a senhora com a esperança na retina, sorrindo levemente e beijando afectuosamente a criança na soleira da porta.
— Adeus e obrigado, Madame Guvenneck! — agradeceu humildemente o português, apertando calorosamente a mão à divinatriz.
Taciturno até ao carro, Francisco limitou-se a estender instintivamente a mão à Verónica e a deixá-la balançar. Pelos labirintos do seu cérebro ecoavam ainda as palavras da vidente. Accionando a ignição, pôs a Peugeot em marcha e, controlando o tráfego com um golpe de lince, arrancou em sentido contrário, retomando a estrada de Vonnas, rumo a Macôn. Enquanto conduzia e repetia à confidente tudo o que a senhora lhe dissera, Chico sentia que o peso do segredo se evaporava e lhe devolvia à alma a serenidade que sempre tivera, antes de conhecer a órfã e aceitar ser o depositário da esperança dela, como se a sua missão tivesse chegado ao fim, quando se despediu de Madame Léa. Verónica, essa, mais que as palavras e as revelações, era o rosto sereno da senhora quem mais a fascinava. Por instantes, o seu pensamento evadiu-se e, abstraindo-se da obsessão paternal, viajou até Paris, indiferente à estratégia que o condutor lhe ia aconselhando, para responder à curiosidade maternal.
— Em que estás a pensar? — questionou o condutor, sentindo-a arrebatada.
— Ah! Desculpe, o senhor dizia? — volveu aérea, arrepiando-se amedrontada.
— Agora é preciso ter muito cuidado e seguir o que a Madame Léa nos disse.
— Claro, Chico, claro!
— Não fiques assim sisuda, senão a tua mãe desconfia!
— E eu estou assim tão sisuda?
— Um pouco. Vá, sorri! Isso, assim! Bom, se alguém te perguntar onde fomos e o que andámos a fazer, diz-lhe que eu fui fazer a revisão ao carro e que tu só me acompanhaste para eu não andar sozinho, mas que não te lembras dos nomes e dos lugares por onde passamos.
— E se a minha mãe insistir? — interferiu Verónica, franzindo a testa.
— Sei lá!... Diz-lhe que ficaste foste ver uma igreja, enquanto o garagista mudava o óleo — aconselhou Chico, segurando o volante com a mão esquerda e mantendo a direita na alavanca das mudanças.
— Não te aflijas que tudo vai correr bem!
— Oxalá! — disse confiante, benzendo-se ao cruzar a igreja de Vonnas.
Imitando o condutor, Verónica fez o sinal da cruz e, elevando o pensamento ao Altíssimo, rogou-Lhe que a ajudasse a descobrir a verdade, a aceitar a morte do pai e lhe desse a coragem de viver sem ele.
Em Macôn, com as mulheres distraídas a preparar o almoço e os homens a trocar impressões sentados num banco do quintal, ninguém os viu chegar. Perspicaz, Verónica esgueirou-se em bicos de pés e foi brincar com a Cindy, enquanto Chico, olhando o céu azul, apertou jovialmente a mão do taxista.
— Que belo dia! Até parece que estamos na nossa terra, senhor Júlio!
— Realmente... — apoiou o taxista, franzindo a testa, encandeado pelo Sol.
— Então, Zé, porque esperas? Não acendes o lume?
— Acender o lume, eu? Elas é que mandam, Chico!
— Sempre me saíste cá um arrola!… — desabafou o padre, deitando a mão à primeira ripa que viu à frente para atear a fogueira.
— Arrola?! — indagou Zé Pinto, franzindo a testa e encolhendo os ombros.
— Mas quando é que compras o dicionário, homem de Deus? — retorquiu o Serra, empiscando ao taxista.
— Qualquer dia a Maria manda a mãe à livraria Branco…
— Qualquer dia?! Pois, se lá se vendessem chouriços…
— Puxa, Chico!
— Desculpa, Zé! — volveu o Serra arrependido.
— Eh! vocês despacham-se ou não? — gritou Verónica impaciente.
— Ide pondo a mesa que, com este abanador, os frangos é num instante que se assam — ordenou o Chico, bufando e agitando uma chapa de lata.
— Vai, miga, diz à Maria que abra aquele garrafão de Santa Marta…
— Eh, Verónica, p’ró Zé há uma garrafa de água-pé no quartinho da dispensa! — cortou o Chico, empiscando ao Júlio.
— Está bem! — gritou a mocinha, desatando a correr para dentro.
— Ah, para mim reservaste a água-pé! – bradou o Calhordas irónico.
— O Francisco está a reinar consigo, Zé — adiantou o taxista, rompendo aquele circunspecto silêncio.
— Deixe lá, Júlio, o Zé tem bom remédio: atravessa a estrada e mergulha, salvo seja, a fuça no Rhône.
— Se é para me tirar o apetite o Chico está bem enganado! — adiantou o Pinto, dando de olhos ao taxista e lambendo os dedos lambuzados com o molho do churrasco.
— Enganado, eu?! Ah, há muito que sei o lampeiro de cunhado que és, meu marmanjo!
— O senhor não se zangue, senhor Zé, que o seu cunhado está a reinar consigo — desembuchou finalmente o taxista.
— Zangar-me eu, Júlio?! Isso era o que esse padreco queria! — bradou o Pinto, fisgando os frangos e sorrindo safado.
— Sempre me saíste cá um lateiro, Calhordas! — zombou o Chico, bufando às brasas para que a labareda não se ateasse na gordura que pingava dos galináceos.
— Ei! tragam os frangos que a mesa está posta!! — berrou a Maria da outra margem, agitando uma rodilha.
— Encheide os canecos com aquela pingaça de Santa Marta de Penaguião que nós já vamos, mulher! — respondeu o Pinto espalhafatoso.
— Ó Maria, ao teu Zé dá-lhe um púcaro de água da bica se é que o queres volta a Vonnas com o juízo todo — retorquiu o Chico, empiscando ao taxista.
— Tu vê lá o que fazes, Maria! Se me dás água, à noite não te…
— Ai, é?! Pois hoje ficas a seco! — ironizou a mulher, reinadia, retirando-se.
Rindo a gargantas despregadas, o Chico e o Júlio guardaram os frangos no tacho e retiraram-se, deixando o Zé a apagar as brasas e a passar um farrapo no grelhador.
Do outro lado dos choupos, a Verónica não se cansava se levantar e baixar, apanhando pedrinhas que, entre dois meneios dubitativos, arremessava de tempos a tempos ao ribeiro, para imitar os rapazes da sua idade quando estes capavam a água do rio Corgo. E, obcecada pelo saco de perguntas que lhe carregava a alma e lhe asfixiava o coração, e a que ia respondendo mentalmente entre duas colheradas, a inocente passou pela refeição, como o sono pelas brasas. Depois, erguendo-se maquinalmente, foi deitar-se no sofá e cerrou as pálpebras para, sem os olhares obtusos dos adultos, matutar com os seus botões.
Deixando a Zélia e a Norina a acabar de arrumar a louça e acompanhando os cunhados e o taxista, que iam com a sogra dar umas voltas pelo Intermarché, um supermercado gigante dos arrabaldes de Lyon, Chico pegou na Cindy ao colo e seguiu-os até ao terreiro. Beijando a sobrinha, esperou que as mulheres se acomodassem no banco traseiro e entregou-a à mãe. Depois, sorrindo, desejou-lhes boa viagem e desatou a correr para dentro.
— Uf! Já se foram! — desabafou cansado.
— E ainda bem que a Verónica está a dormir, Francisco! Vocês por onde andaram esta manhã para a minha filha estar assim tão macambúzia! — acrescentou a mãe da mocinha, olhando para o seu adormecido.
— É verdade, Chico! A Verónica anda tão amuada! — apoiou Zélia, segurando a barriga e sentando-se ao lado marido e estendendo as pernas.
— Olhai, amanhã temos que ir sem falta a Paris!
— A Paris?!
— Sim, D. Norina! A vidente disse-me que a só o terrorista pode sossegar a Verónica. Ela disse-me que a chave está nas mãos dele…
— Vós podeis ir, mas eu não quero ver esse desgraçado! Só se levar uma pistola comigo para lhe estoirar os miolos. Vocês não têm nenhuma, não?
— Ai, credo cruzes, Norina! Até parece que o homem é o diabo! — exclamou a gestante, benzendo-se à pressa para afugentar o demónio.
— E não é, Zélia?! Um desgraçado que me deixou o marido em pedaços…
— Pois, é verdade, mas não foi só o Arménio! Houve mais cinco pessoas que ficaram nas mesmas condições ou ainda piores, D. Norina. O terrorismo é assim: normalmente só atinge os inocentes.
— Se a justiça fizesse o mesmo aos bandidos…, mas não, ela ainda lhes dá-lhes de comer… Depois vêm os advogados, dizem que esses desgraçados são malucos e, passados alguns meses, põem-nos cá fora. Então é isto a justiça?
— Realmente não é, mas nós não podemos aplicar a lei de Talião, olho por olho, isto era antigamente, D. Norina!
— Talvez tenha razão, Francisco, mas…, o que mais lhe disse a bruxa?
— Oh! Até tenho medo de…
— Desembucha, Chico, desembucha! — ordenou-lhe a mulher.
— Não são coisas nada agradáveis, Zélia, e, além disso, a Madame Léa pode enganar-se e…
— Está a ver como me dá razão, Francisco? Oh! O que é que íamos nós fazer a Paris? Se as bruxas soubessem realmente o que dizem, há muito que tinham acertado no loto!
— Se é assim, porque é que você chateou o juízo ao Arménio com a sina que uma bruxa lhe tinha lido…
— Pois, a princípio eu não queria acreditar, mas, infelizmente, essa deu tudo certo e eu bem avisei o meu marido, mas ele andava iludido com a vivenda da Timpeira…
— Olhe, a D. Norina acredite e vá a Paris se quiser, mas que a madame Léa me convenceu lá isso convenceu. Aliás, se eu não soubesse que ela era uma senhora séria não tinha lá ido antes com outras pessoas.
— Allez! Desembucha, homem!
— A Zélia também acredita nessas coisas?
— E você não, Norina?
— Bah! Umas vezes sim outras não…
— Então deixem-me falar. Primeiro, a madame Léa reconheceu o Faia na foto e disse-me logo que ele agora está muito diferente e, mais, que um cão o desfigurou e desde essa hora ele só pensa em vinganças, mas o fio da vida dele se está a romper…
— Que o leve o diabo e bem depressa!
— Tchut, Norina!
— O traste não presta, Zélia! Mas, desculpe, continue, Francisco.
— Ah! A madame Guvenneck também me disse que o seu marido tinha cortado as linhas da sua vida. Eu perguntei à Verónica e ela confirmou que o pai fez dois lanhaços nas mãos, um quando era pequenito e outro quando era grande. É verdade?
— Sim, o pior foi na tropa, um dia que saiu para o mato com o Faia.
— Quando cortaram os testículos a um turra…
— O quê?! A madame também lhe disse isso, Chico?!
— Ah! Então é verdade!
— Um dia o Arménio bebeu um copito a mais e… Oh! Foi depois de uma malhada e, bastante animados, os rapazes começaram a contar bazófias e um deles quis rebaixá-lo e então ele disse-lhe que no ultramar chegou a cortar os tomates a um preto, tal e qual, mas eu até me ri, pois ele já mal se tinha de pé… Tem graça, foi a única vez que ele se embebedou!
— E a Norina nunca mais lhe tocou no…
— Oh! Um dia ainda lhe pedi para que ele me contasse tudo, mas ele escusou-se e disse-me que ele não tinha feito nada e bem avisou o Raimundo, mas ele…
— Ainda as fez bem piores, não é?
— Como é que sabe? A tal senhora também…
— Sim, a madame Léa disse-me que o Faia as tinha feito bem piores e, confesso, até me assustei. Porra!… Oh, desculpe, mas eu convivi tanto tempo com ele…
— Pois, mas agora que está a ficar toda assustada sou eu, Francisco! Já viu o que será de mim e da Verónica, se o tarado lhe dá para se vingar…
— Vingar?! De quê? — perguntou a senhora Serra perplexa.
— Então a Zélia não sabe que ele quis abusar de mim quando éramos pequenos?
— Não me diga?!
— A Norina quase o capou, Zélia!
— Ai ele disse-lhe isso, Chico?
— Isso e muito mais que não lhe conto porque são fanfarronices! O que eu sei, por ter estudado ainda um pouco de psicologia, é que ele nunca deixou de estar maluco por si. A Norina é a obsessão dele!
— A Obsessão?!
— Sim, ela vive dia e noite consigo na ideia… Não vê outra mulher! Aliás, quando ele ia ver as meninas…
— Ver as meninas?! Diz logo que íeis às putas, ou pensas que eu não sei!
— Pois, está bem, isto antes de nos casarmos…
— Espero bem, porque senão quem te capava a ti era eu…
— E o que é que ele dizia e fazia quando…
— Bom, realmente agora vejo que o Raimundo só pode estar pirado da mioleira!
— Ele nunca foi bom dela! O Faia é de fraca raça, Chico! Perdão, desculpe, o que eu queria dizer é que ele sai a um tio-avô que se matou depois de abusar de uma criança…
— O quê?!
— Pois, também se não se tivesse enforcado, o povo cortava-o aos pedaços.
— Não sabia, D. Norina!
— Nem eu, até ao dia em que o meu tio Rodrigo Valadão me avisou.
— Ai é?! Estranho, nunca ouvi ninguém falar disso!
— Pois, quando o Faia começou a rondar a nossa porta para me namorar, o meu tio, que era um Santo, contou-me a história toda. A família dele sempre quis encobrir a verdade e disse que o fulano morreu de trombose, mas a verdade é que ele se matou, se enforcou numa figueira como o Judas! Vocês nunca digam nada a ninguém, porque ninguém acreditará no que eu vos digo, mas… o que é que o Raimundo fazia e dizia quando…
— Agora compreendo! O gajo só rondava mulheres franzinas e que, você desculpe, se parecessem consigo!
— Tu vê lá o que dizes, homem!
— Pronto, se não queres que eu conte a verdade…
— Não, Chico, não se incomode comigo, conte!
— Pois, ele chegava a gritar o seu nome quando estava a…
— Ah!!! Mas o homem é mesmo tarado! — exclamou Zélia estupefacta, tapando a boca com a mão.
— Pois…, ele disse-me que, mais dia menos dia, serei dele, mas engana-se: preferia atirar da ponte da Timpeira abaixo ou meter um tiro na boca antes que ele me beijasse!
— Então, vamos ou não vamos a Paris, D. Norina?
— Agora já, senhor Francisco!
— Então partimos amanhã de madrugada. Vais connosco, Zélia?
— Oh! Com este barrigão! Ide vós, Chico! — desculpou-se a esposa, contorcendo-se para aliviar as dores.
— E quem levo comigo? O nosso cunhado ou o taxista?
— Oh! Leva antes o Júlio para te ajudar a conduzir e deixa o Zé connosco, não vá o bebé querer vir antes do tempo.
— Tens razão, Zélia! Bom, prepara-me uma ou duas mudas de roupa, enquanto eu vou ao banco buscar dinheiro.
— Ora essa, Francisco! Eu trouxe dinheiro que chegue! Não basta vocês acolher-nos e prontificar-vos para nos levar onde é preciso, senão ainda pagar por cima? Era o que faltava! E nem pense nisso! Olhe que eu levo a mal… Se quer que eu vá convosco até às portas da prisão…
— Até às portas, D. Norina?!
— Oh! Deixa lá, Chico! Ela diz isso agora, mas depois de lá estar…
— A Verónica pode ir falar com o tal terrorista, mas eu juro-lhe que…
— Não faças juras, D. Norina!
— Tem razão, Francisco, talvez seja melhor! Também já jurei tanta coisa…
— E quem é que nunca jurou? Você vai e, estando lá, seja o que Deus quiser!
— Ou o coração ditar, não é, Zélia?
— Pois, normalmente nessas ocasiões, o coração até nem precisa de bater muito forte: seguimo-lo sem que ele nos chame!
— Arrumem as vossas coisas que eu volto já. Ah! Não façam merenda! Meia dúzia de papos secos e umas frutas, maças e pêras bastam!
— Deixa isso comigo e vai lá fazer o que tens a fazer, homem! Allez! Pira-te!
— Chico!!! Chico!!! — gritou Verónica meio assarapantada.
— Ah! Acordaste, miga?!
— Posso ir contigo, posso?
— Mas passa uma pouca de água primeiro pela cara! Vá, não te demores!
— Espera, é enquanto diabo esfrega um olho! — implorou a mocinha, correndo a meter o rosto debaixo da bica da cozinha e enxugando-se à toalha que a mãe correu a ir buscar-lhe à casa de banho.
— Eh, vê lá se o meu Chico bota o olho a alguma mademoiselle, miga!
— Tchut! E porque é que você pensa que eu vou com ele? — retorquiu a pequenita arregalando bem o a vista com o dedo.
— Allez! Au revoir, petite! — lançou Zélia em francês, acenado risonha.
— Au revoir, madame ! — respondeu Verónica toda emproada.
E, desatando a correr, a inocente foi dar a mão ao seu confidente para engendrarem uma maneira de levarem a viúva a ficar frente a frente com o desgraçado terrorista. Voltando da passeata, Chico descobriu o saco do taxista alinhado junto do seu e sorriu.
— Olá! Estou a ver que as mulheres já te deram o recado, Júlio...
— Por mim, partimos quando quiser, Francisco! Estou pronto.
— Então gostou de ver o supermercado, D. Rita?
— Muito! Realmente aquilo é um mundo, Francisco! Estava mesmo a dizer à D. Norina que a nossa bila bem precisava de um assim.
— Deixem lá que um dia a civilização também lá há-de chegar! Quando Portugal souber aplicar melhor as nossas remessas, o nosso país ficará desenvolver-se-á e depois o nosso povo já não precisará de emigrar, mas… onde está o Zé? E a Maria? Então o biqueiro não gostou do teu lanche, Zélia ? — ironizou ele, dando pela ausência dos cunhados e da sobrinha.
— O Zé está pior do que estragado, Chico! — respondeu-lhe a mulher, enchendo o copo ao taxista.
— Mas porquê?! Não me digam que o estouvado…
— Como não o convidaste para ir a Paris, ele sentiu-se ofendido e …
— Partiu-se dos carretos! Oh! Isso passa-lhe!
— Você acha, Francisco? — perguntou a viúva, passando cuidadosamente a nutela no pão da gulosa Verónica que não parava de lambuzar os dedos.
— O Pinto é assim: passa-se dos carretos por tudo e por nada, mas, depois de pensar um pouco, se vir que não tem razão, volta atrás como um cordeirinho…
— Não me digam que a trovada já lhe passou? — indagou a sogra, metendo a mão atrás da orelha para melhor captar o ruído da viatura que estacionava.
— Oh! É mesmo ele! — exclamou Verónica, olhando precipitadamente pela vidraça. — A Maria e a Cindy também vêm!
— Tchut! Que ninguém se dê por achado! — aconselhou a dona de casa.
E, obedecendo, todos se apressaram de dar ao dente como se estivessem na segada ou na malhada.
— Eh! Não larpem tudo! Nós só fomos mudar de roupa! — lançou-lhes o Calhordas da entrada, ostentando orgulhosamente a filha para que todos lhe admirassem a fatiota.
— Oh! Então esse vestido da Cindy não era para a festa, Maria? — questionou D. Rita admirada.
— Mas mãe pensa que o seu genro nega qualquer coisa à filha?
— Mas devia, porque se vai assim a fazer-lhe os miminhos todos, depois não tem mão nos caprichos dela! O Zé veja lá como educa a minha netinha, ouviu?
— Hum? — resmungou Pinto de boca cheia.
— Tens um marido bem lambão, Maria! — censurou Francisco, empiscando à cunhada e à sogra.
— Isto é só para me desforrar de não me levares a Paris, padreco! — retorquiu o esfomeado, mastigando e enchendo o copo, sob o olhar envergonhado do taxista, que se levantou para o deixar mais à vontade.
— Paris?! Para arrotar com as contas de restaurante, de dormida, de gasolina e… sei lá que mais? Isso é o que tu querias, não é, meu finório? Tu ficas aqui de castigo como um cão de guarda para levar a Zélia à clínica, não vá o meu rapaz querer pregar-me uma partida e nascer antes do tempo.
— Mas isso é uma grande honra que lhe faz, Francisco! Você acha que o Zé será de dar conta do recado, se a Zélia…
— Que não dê, Júlio, que não dê!
— Ó carago, lá por isso a Maria passa a dormir aqui com a irmã até vocês virem! — adiantou seriamente o Zé, parando de mastigar.
— Está bem, deixas aqui as mulheres todas juntas e tu vais dormir, mas sozinho, a Vonnas, ouviste? — apoiou Francisco Serra.
— E quantos dias ficais em Paris? — volveu o cunhado.
— Só os que forem necessários, mas porquê?
— Nada, é só para ter uma ideia.
— Oh! Depois de amanhã já devemos estar de voltar! Iremos num dia e voltaremos noutro, não é, Francisco? – questionou a viúva.
— Em princípio, mas sabe-se lá as voltas que teremos que dar, D. Norina!
— Então, depois de a Verónica ver esse turra, passamos pela campa do Arménio e voltamos para casa.
— Pois, logo se verá, pois é, miga ? — concluiu Chico, sorrindo a Verónica que, regalada, metia cuidadosamente um pedaço da sua terceira fatia de pão com nutela na boquita da Cindy.
E a conversa ficou-se por ali. Convidando o taxista a acompanhá-lo até ao clube dos portugueses, perto do mercado, Chico prometeu voltar antes da ceia, depois de jogar duas ou três partidas de sueca. Na associação lusitana, eles depararam com uma mapa da França e consultaram-no para ter uma ideia das cidades que atravessariam até chegar a Paris. Um chofer que fazia diariamente esse trajecto até à capital gaulesa, aconselhou-os a seguirem, sempre que possível, sempre a auto-estrada, porque, apesar das tarifas das portagens, a viagem seria muito mais tranquila, e a saírem de madrugada para evitarem os engarrafamentos.

Às três da madrugada, já o Peugeot tinha atravessado a portagem Norte de Macôn. Encostando-se à mãe, Verónica recuperara. Assentado ao lado do chofer, Júlio consultava o itinerário escrito na véspera, enquanto que Norina, matutando silenciosamente com os seus botões, se imaginava ao lado do marido que Deus e o destino lhe haviam roubado antes do tempo. Depois, encostando-se às reminiscências amorosas que o seu cérebro lhe fazia cintilar nas retinas amorfas, adormeceu agarrada à filha.
Quando, pelas nove horas desta quarta-feira, 6 de agosto, chegaram diante dos portões de la Santé, os emigrantes foram abordados por um homem de fato e gravata.
— Bonjour!
— Bonjour, mossiú… — respondeu Chico bastante surpreendido, baixando o vidro para lhe apertar a mão que o senhor lhe estendia jovialmente.
— Fiquem tranquilos, meus amigos! Eu sou Maître Fournier e venho da parte da madame Léa Guvenneck.
— Uf! Ainda bem, maître! — desabafou o emigrante, saindo da viatura.
— Muito prazer em conhecê-lo, senhor…
— Serra! Francisco Serra, senhor advogado!
— Os seus amigos não percebem francês pois não, senhor Serra?
— Não, maître Fournier. Mas…
— O senhor está admirado de me ver aqui à sua espera, pois está?
— Convenha que não é para menos!
— A senhora Guvenneck telefonou-me ontem à noite e pediu-me que viesse aqui ter convosco às nove horas.
— Estranho, eu não a avisei de que vinha hoje!
— Pois…, mas o senhor esquece-se de que a madame Léa vê coisas que nós não vemos! Então diga lá! Eu sou todo ouvidos, monsieur Serra…
— Mas…, mas eu não tenho nada de especial a dizer-lhe, maître! A senhora Guvenneck pediu-me que viesse aqui porque a chave do problema está nas mãos do terrorista.
— Só?!
— Só!
— E quem é que teve a ideia de vir aqui?
— Foi a menina que está ali — respondeu acanhado, apontado para a Verónica.
— Não me diga que ela fez estes quilómetros todos para ver o assassino que lhe matou o pai?
— E mais faria para tirar de uma vez por todas as dúvidas que não a deixam viver em paz! Coitada, ela gostava tanto do paizinho que nunca aceitou a morte do pai. Veja lá que se lhe meteu na cabeça que o pai dela não pode ter morrido!
— E o que lhe disse a madame Guvenneck? Afinal ele morreu ou não?
— A senhora Léa disse-me apenas que a levasse ao tal terrorista…
— Então vamos.
— Desculpe, maître, mas nós saímos de madrugada de Macôn e ainda não tomamos o café nem nos lavamos. Se nos desse meia hora…
— Pronto, enquanto os senhores tomam o pequeno almoço e se lavam, eu vou falar com o director e expor-lhe o caso! Estejam aqui dentro de mais ou menos uma hora e…
— Está bem às dez, maître Fournier? — perguntou o emigrante, consultando instintivamente o seu Ómega.
— Perfeitamente, monsieur Serra! Então até já! — anuiu o advogado, despedindo-se com um sorriso.
— Até já, senhor doutor! — repetiu o português acenando timidamente.
Tomado de pânico, Chico virou-se para trás e disse inquieto:
— Júlio, Norina, Verónica, despachem-se, porque a senhora Léa deve ter-nos escondido qualquer coisa!
— Quem era esse tipo, Francisco? — perguntou o taxista meio assarapantado, saindo do carro e espreguiçando-se.
— O advogado de que vos falei, Júlio, mas despachem-se! Ele deu-nos até às dez para tomarmos um café…
— E lavarmos a cara e nos pentearmos como deve ser, não é, Chico?
— Pois, miga, mas…, então Norina? Despacha-te, mulher! — ordenou-lhe o emigrante, vendo-a estática de braços cruzados e olhar inquieto.
— Oh! Ide vós! Eu não tenho coragem!
— O quê?! Não tens coragem? Não te aflijas que entre nós e o turra haverá uma barreira de vidro à prova de bala, mulher!
— Oh! Estou a sentir-me mal! Até parece que… Oh!… Ide vós, que eu fico aqui à vossa espera. Ai… — gemeu ela, amassando os peitos com as mãos para aliviar a pontada que acabava de sentir no coração.
— Não me digas que te vai dar o fanico, Norina?!
— Não é isso, Francisco! Oh! Deixai-me!
— Mãe! A senhora que tem, mãe ?
— Oh!… Nada, filha!
— A senhora não tem coragem, pois não, mãe?
— Não! Eu não sou digna… Vai tu filha! Vá, despachai-vos que se eu tiver a coragem ainda lá vou ter…
— D. Norina! Então?!
— Oh! Deixem-me, Júlio, deixem-me!
— Pronto! Não insistimos mais consigo, D. Norina. Diga, quer que lhe traga um cafezinho? — perguntou o emigrante condoído.
— Um copinho de água, se fizer o favor! — respondeu a viúva empalidecida, encostando a cabeça a uma esteira que a Zélia fizera para decorar o Peugeot.
E, resignando-se a entrar na prisão sem a mãe e a enfrentar sozinha o terrorista, Verónica puxou os homens pela mão e disse-lhes:
— Deixem-na lá! Coitada, a minha mãe está muito confusa!
Condoídos, eles sorriram-lhe e apressaram o passo, encaminhando-se para o primeiro café que viram à frente, onde se beberam três galões e comeram três croissants, antes passarem pelos lavabos para passarem uma pouca de água pelo rosto e se pentearem. Dirigindo-se ao balcão para pagar a conta, Chico encomendou uma garrafa de água Vittel e um bola doce para a viúva, que lhe entregou alguns segundos depois.
— Então já se sente melhor? Vá, tome lá este bolinho e ganhe coragem…
— O Francisco é bem teimoso, mas… Olhe o advogado está a acenar-lhe!
— Decida-se lá! — disse, indo ao encontro do jurista.
Pouco depois, acenou-lhes, mas só a Verónica foi ter com ele. Júlio, vendo o estado de choque da viúva, ficou a fazer-lhe companhia, encostado à janela do Peugeot. Encaminhando-se para a entrada da prisão, a criança ainda se virou para acenar ao taxista. Como ia catita a inocente!
Dando a mão ao Chico, que tinha ao seu lado esquerdo o advogado e o director da prisão, Verónica não perdia o mínimo detalhe que do mundo carceral que ia descobrindo: corredores imensos, grades de ferro e prisioneiros espantados desfilavam pela sua retina vítrea. À medida que avançava no interior, o seu coração aumentava a cadência das palpitações e, intimidada pelos guardas, a sua pele arrepiava-se, provocando-lhe estremeções que, se repercutindo-se pelas suas mãos suadas, se infiltravam no Francisco, transmitindo-lhe um nervosismo cada vez mais opressante.
Enquanto caminhavam, o director ia-os alertando para o estado psicológico do prisioneiro, dado a inexplicáveis ataques de nervos, seguidos de longas horas de pasmo e silêncio absolutos, sinais evidentes do transtorno mental que a explosão lhe provocou.
Antes de entrar na enfermaria, o advogado pediu ao emigrante que mantivesse a menina bem presa e que esta se limitasse ao olhá-lo pela barreira de vidro especialmente ali colocada para os prisioneiros perigosos ou para os que, não resistindo ao cárcere, atentavam muitas vezes à suas vidas ou às dos colegas. Traduzindo baixinho as instruções que ia recebendo, Chico pediu à Verónica que não levantasse a voz e que tivesse o olho fino, não fosse o preso ter algum ataque de folia.
Mal o médico assistente abriu a porta, a inocente foi colar-se à barreira de vidro e, lançando um olhar circunspecto ao prisioneiro, teve pena do que viu e começou a chorar. Comovido, o director perguntou ao emigrante:
— Porque será que a menina chora, monsieur Serra?
— Não sei, senhor director, mas se calhar ela esperava ver um homem agitado, perigoso, sei lá, com cara de mau!…, e não um barbudo com os olhos tapados assim tão resignado…
— Realmente, hoje ele está bem mais calmo! Não sei se será porque o dia do julgamento se aproxima ou, quem sabe?, talvez esta acalmia nos anuncie alguma das suas crises… — confidenciou o responsável da prisão.
— Ei, senhor, olhe para mim! Eu quero ver a sua cara! Como se chama? Ei!! – gritou Verónica comovida, rasgando o silêncio sufocante que pairava no ar.
— O que é que a pequenita diz, monsieur Serra? — perguntou o advogado.
— Ela pede-lhe que tire o bandeau dos olhos e…
— Ei, eu estou a falar contigo, terrorista! Porque mataste o meu pai? Responde-me! Que mal te fez o Arménio Sala para o fazeres ir pelo ar? Allez! Responde-me que eu quero saber! Eu sou a filha dele! O meu pai nunca fez mal a ninguém, ouviste? Responde! Eu quero saber! Ei!! Ei!!! – berrou esganiçada, soluçando e colando-se ao vidro.
— Por favor acalma-te que ele não te percebe, Verónica! Vá! Toma lá este lenço e enxuga as lágrimas — implorou-lhe baixinho Chico, puxando uma cadeira e ajudando-a a dominar-se com palmadinhas nas costas.
Comovidos, os franceses olharam-se uns para os outros e começaram a cochichar, esquecendo por completo o prisioneiro que, arrastando-se, se abeirou da vidraça. Cabisbaixa e envergonhada, Verónica soluçava e enxugava as lágrimas, quando viu o reflexo do prisioneiro espelhar-se no vidro.
— Ah! Estás com remorsos? — exclamou mais apaziguada, vendo que o pano branco se molhava.
— Messieurs! O prisioneiro está a chorar! — murmurou o emigrante perplexo.
— Oh! Não se admire, senhor Serra! Não é a primeira vez…mas… ele quer livrar-se da camisola de forças, doutor!
— É a loucura que lhe está a subir à cabeça, maître Fournier!
Muda, Verónica colou as mãos na vidraça e começou a contemplar o maluquinho. E, vendo-o contorcer-se e gemer aflito, teve pena dele. As lágrimas já corriam para o seu lado e se juntavam às dela, quando sentiu uma dor forte e, acometida por uma golfada de suor, desmaiou e caiu por terra, deixando a sua mãozita contra o vidro.
Socorrida instantaneamente pelo médico, que lhe auscultou o coração, Verónica, não viu a mão do assassino dos eu pai colar-se, do outro lado do vidro, colar-se e agraciar-se a sua, como que para lhe pedir perdão. Recuperando os sentidos, a pequenita abriu os olhos e, atirando-se contra o vidro, gritou:
— Pai! Pai!! Eu sabia que tu estavas vivo, paizinho! Chico, olha a cicatriz daquela mão! Pai! Eu sabia que tu não tinhas morrido, pai!!!
— Arménio! És tu, Arménio?
— Monsieur Serra! Monsieur Serra!! — bradou o advogado estupefacto, vendo o português ir colar-se ao vidro e, imitando a inocente, tentar agarrar as mãos do conterrâneo.
— O meu compatriota está vivo, senhor doutor! Ele está vivo!
— O que me diz lá?!
— É verdade, maître! Olhe ali aquelas cicatrizes nas mãos! — disse comovido, chorando de alegria.
— Paizinho, mostre-lhes o amor de mãe, paizinho! Mostra-lhes o amor de mãe! — ordenou a pequenina, cobrindo de beijos e lágrimas o vidro frio onde se colavam desesperadamente as mãos paternais e insistindo para que ele lhes mostrasse o sinal que tinha gravado no braço antes de partir para o ultramar.
— Doutor, o prisioneiro deve ter uma tatuagem gravada num braço! Por favor, deixe a menina ir ter com ele. Vai, Verónica, mostra-lhes que o teu pai não é nenhum criminoso.
Abrindo a porta à criança, o médico viu-a correr como uma tresloucada para o prisioneiro e, desembaraçando-o da camisola de forças, arregaçar-lhe a manga do braço direito até ao antebraço até lhe descobrir o amor de mãe gravado num coração atravessado por uma seta. Depois, retirando-lhe da cabeça o pano branco que lhe tapava a visão, abraçou-se a ele e cobriu de beijos, deixando-se abraçar a afagar. Recordando as palavras da vidente, maître Fournier compreendeu imediatamente o erro judiciário e, alertando o director, pediu-lhe que o deixasse telefonar ao juiz encarregado do processo, antes da comunicação social propagar o segredo pelos quatro cantos do hexágono gaulês.
— Cuida do teu pai, que vou chamar a tua mãe, Verónica! — rogou-lhe Francisco emocionado.
E, pedindo a ajuda de um guarda, correu a anunciar a feliz novidade à viúva que, obedecendo à voz do seu coração, já largara o Peugeot e o aguardava diante do portão. Correndo ofegante, mas sem vacilar, Norina atravessou os corredores da prisão sem ver nada à sua frente. Hipnotizada, as suas retinas alagadas deixavam-se conduzir pelo instinto, enquanto seu coração, explodindo de alegria ameaçava estoirar-lhe o peito e cair ao chão para se antecipar ao cérebro incrédulo, onde se haviam impregnado as crendices de mau agoiro, que tantas vezes o fizeram duvidar dos seus sentimentos e da sua fé.
— O paizinho está vivo, mãe! O meu coração bem mo dizia…
— Arménio! Deus seja louvado, que não te perdi, amor da minha alma! — agradeceu Norina lançando-se nos braços do marido e cobrindo-o de beijos!
E, sorrindo, esperou que os pais chorassem tudo para lhes enxugar as lágrimas.
Quase cego e mudo, Arménio adivinhava-lhes apenas os contornos nublados dos rostos, mas sentia-lhes profundamente a miscelânea de alegria e pesar que traziam na alma e no coração, cujas palpitações, assim tão violentas, se infiltrava no seu corpo martirizado, fazendo-o arrepiar dos pés à cabeça. Barbudo para esconder algumas marcas da explosão, faltava-lhe apenas o ódio nos olhos para que vila-realense fosse mesmo o combatente da organização terrorista arménia, Lasala, que, para fazer reconhecer os direitos dos seu povo e o genocídio praticado contra ele pela Turquia, havia feito deflagrar aquela maldita bomba da rua das Roseiras e outras mais, matando dezenas de inocentes.
Se, graças aos documentos que, por precaução trouxera consigo, Norina pode provar facilmente que o encarcerado era bem o seu marido e o pai da Verónica, mais difícil lhe era convencer o juiz e os advogados das vítimas, ali convocados pelo juiz, da sua inocência. Foi então que, lembrando-se Fortunato Galela, o colega do Arménio casado com a Martine, que tencionava visitar para lhe agradecer tudo o que tinham feito pelo marido, Norina pediu ao Francisco que lhe telefonasse e lhe pedisse que contactasse o patrão e o avisasse do sucedido.
Entretanto, a comunicação social, alertada por um familiar das vítimas do hediondo atentado, acorreu às portas da La Santé para entrevistar o director e o falso terrorista, mas foram retidos no exterior, o que provocou a ira, sobretudo, das cadeias de televisão públicas, TF1 e Antenne 2. Enquanto almoçavam, num snack-bar Parisiense, Chico e Júlio, que nem sabiam como exprimir a euforia que sentiam, foram interpelados por um compatriota, transmontano como eles, e não resistiram à tentação de contar lhe contar a história do vilarealense e logo surgiu a ideia de ideia de irem falar com os jornalistas que, furiosos, não arredavam pé de diante da prisão. Apercebendo-se do maná de informações do Chico, que por sinal se exprimia perfeitamente em francês, as televisões começaram a disputar-se para obter a exclusividade do relato, avançando logo com contrapartidas financeiras, o que intimidou o Francisco, que, temendo cometer alguma imprudência, preferiu esperar pela chegada de Maître Fournier, que, depois de falar das vantagens de tal publicidade à Norina, negociou directamente com o director da TF1.
E, entretido a servir de interprete, Francisco só teve tempo de telefonar à mulher de uma cabina pública e de lhe pedir para ligar imediatamente a televisão e de não arredar pé. Pelo tom radiante da sua voz impaciente, Zélia sentiu que algo de extraordinário se estava a passar e carregou no botão do televisor, pousando o auscultador mal ouviu o bip-bip que lhe cortou a voz ao marido.
Quando o telejornal começou, Zé Pinto brincava com a filha no terreiro. Mal surgiu no ecrã a fotografia do terrorista de La Santé, D. Rita gritou estupefacta:
— Credo! Aquele parece o Arménio! O que é que eles dizem, Maria?
— Tchut! Eles… Oh!… Olha o Chico, Zé! Zé!!! O Chico está na televisão!
—Caluda!! — berrou Zélia, mordendo os dedos e aumentando o som para ouvir o que o marido dizia.
Seguindo atentamente a entrevista do Francisco, ninguém mais ousou quebrar aquele admirável silêncio. E as lágrimas começaram a saltar-lhes das órbitas e a resvalar-lhes pelo rosto, enquanto os seus corações explodiam de alegria.
— Coitado do Arménio, como deve ter sofrido! — desabafou a Zélia, enxugando os olhos.
— O teu padre parecia um prosa, mas não se engasgou! — opinou o Zé.
— Mas tu pensas que o meu Francisco é um Calhordas como tu?
— Ó carago, se lá estivesse, o meu bigode ainda… Trrim!!…Trrim!!! — ecoou o telefone, cortando a bazófia ao Zé.
— Alô! Sim…, vimos…, fala! — respondeu Zélia, ainda soluçante.
— Estais-me a ouvir? — berrou o Chico de Paris.
— Fala!!! — gritarem-lhe eles de Macôn.
— O patrão do Arménio acaba de chegar à prisão com um deputado e o advogado que a madame Léa nos indicou está a dar as voltas todas. É um tipo muito porreiro, mas olhai a Norina e a Verónica.
— Falai que nós ouvimos! — gritaram-lhe todos, apinhados diante do auscultador que a Zélia segurava para melhor se ouvir.
— O meu marido está vivo, D. Rita! O Arménio não morreu!
— Eu sabia que o meu pai não podia morrer, eu sabia, o meu coração bem mo dizia!! — bradou a Verónica toda esganiçada, puxando telefone para si.
— Graças a Deus, filhinha, graças a Deus! — lembrou a mulher do Manuel Feliciano, benzendo-se e erguendo os olhos ao Céu.
— E o Arménio como está, Norina? — perguntou o Zé.
— Se Deus quiser e a Virgem Santíssima quiserem, há-de ficar bom!
— Pronto, Zélia, temos que desligar, porque não temos mais moedas. Adeus e por enquanto não digam nada a ninguém que… Bip-bip!!
A apercebendo-se do fim da chamada, a gestante pousou o auscultador, sorrindo feliz.
— Zélia!!! Ó Zélia!!! — berraram do exterior.
— Parece que estão a chamar, filha — avisou D. Rita, mirando a porta.
— Vai ver, Zé, vai ver!
— Quem é? Ah, és tu, Pirata?
— Ó pá… Ui!! — bardou o Luís, ofegante, derreando-se para ganhar fôlego.
— Calma, calma, senão arrebentas!!
— Ui!! Tenho-te aqui uma pontada de tanto correr…Estava na sede…
— O quê?! Vieste a pé? E o Simca?
— Deu o berro! Esqueci-me de lhe meter óleo no motor e… catrapus!!
— És bem maluco, Pirata, és bem maluco, mas fala, homem, fala!!
— Eu vi tudo na televisão, Pinto, eu vi tudo!!…
— Nós também, mas… e então?
— O Faia deve ter culpas no cartório, Zé, o Faia deve ter culpas no cartório!
— E porque é que o Raimundo havia de ter culpas no cartório, Luís?
— Vocemessês que dizem? Ah!!… É o senhor Pirata!!
— A senhora aqui, D. Rita?! E o seu Manuel como vai? Com que então sempre se decidiu fazer uma visitinha à Maria e à Zélia! E…está a gostar disto?
— Isto é realmente outro mundo, mas nada chega para a nossa terra!!
— Pois…, mas é aqui que está o futuro, D. Rita!
— O futuro, senhor Pirata? Mais vale um caldinho verde e duas castanhas picadas na nossa terra que o melhor manjar aqui na França, que, diga-se, até um país bem bonito e muito ordeiro, mas o nosso também lá há-se chegar…
— Oxalá que sim, mas, por enquanto, é aqui que vamos fazendo pela vida…
— Quando não é pela morte! Viu o que aconteceu ao pobre Arménio, um rapaz tão bom, tão educado, que nunca fez mal a ninguém… Coitado, meteu-me uma pena vê-lo assim tão velhinho… A propósito, que queria você dizer sobre o Faia?
— Oh! Nada, D. Rita, nada! — desculpou-se o Pirata, bastante atrapalhado.
— Hum! Até se me parece que o Raimundo…
— Penso que não! Ele não ia fazer uma coisa dessas, D. Rita.
— Que coisa, senhor Luís?
— Sei lá! Matá-lo!…
— Homem para isso era ele!
— Credo, mãe! — interferiu a Maria, benzendo-se e agarrando a Cindy.
— Tu não sabes nada, filha! Pela Norina o Raimundo era capaz de matar o próprio pai. Ele nunca viu outra mulher à frente dele...
— Não viu outra mulher? Então até quase se casou com a Marta! Não viu como ele a olhava no dia do meu casamento? — recordou a Maria.
— Aquilo era só para ver se aproximar da Norina e lhe provocar ciúmes! Está na cara, filha! Então porque é que vocês pensam que ele nunca se casou? Tenho a certeza que o Faia nunca lhe perdoou o facto de ela lhe ter dado com os pés…
— Lá isso é verdade! — apoiou o Pirata.
— Estou a ver… — cogitou o Calhordas, dando a volta à mioleira.
— Estás a ver o quê? — retorquiu a Maria, intrigada com o olhar do marido.
— Nada, mulher, nada!
— Nada?! Vós sabeis alguma coisa, Zé!
— Se calhar a tua mãe ainda sabe mais que eu! Realmente, pensando bem, acho que o Raimundo devia gostar muito da Norina, mas daí a querer matar o Arménio…Não, ele não era capaz de uma coisa dessas… Não, o Faia podia ser muita coisa, gabarolas, fanfarrão, mas assassínio não.
— Também acho, Maria — apoiou o Pirata, cabisbaixo e amuado.
— Então entre e beba um copito da nossa terra que o meu Feliciano foi buscar à Adega Cooperativa de Santa Marta de Penaguião — convidou D. Rita, dando uma palmada nas costas do Pirata, que até respirou de alívio.
E, apercebendo-se do incómodo dos homens, as mulheres preferiram deixá-los sozinhos na cozinha e foram ver a televisão. Pouco depois, saindo pelas traseiras, foram cochichar para o jardim. Com a pulga atrás da orelha, Maria deixou a Cindy com a mãe e a irmã e foi espiá-los por detrás da cortina, donde tentava, pelo movimento dos lábios, adivinhar o teor da discussão.


Continua em Capítulo XV



LMP - Luxemburgo 1984 - Lud MacMartinson

Caminhos de ilusão: Capítulo XIII


Capítulo XIII




Com a aprovação no exame do primeiro ciclo, Norina deixou de ser tão acanhada como era, recuperando aquele amor-próprio que a fazia tão tímida e introvertida. Os derradeiros dias de Julho passou-os a correr as lojas com a Marta e as madrinhas dos gémeos. Vila Real sendo uma aldeia, finalmente, e a sua viuvez sobejamente conhecida, tal como a sua perseverança durante aquele ano de aulas nocturnas, em cada boutique que entrou foi acolhida com aquele olhar orgulhoso, a que só os heróis do povo têm direito, e um coro de encorajamento a continuar e a tirar o magistério, que estava cada vez mais nova e a todos esses galanteios ela respondia com um sorriso meigo e grato.
No dia 1 de Agosto, sexta-feira, regularam o despertador para as sete horas para irem ao mercado, mas temendo a azáfama da pubileia madrugadora, preferiram ficar mais um pouco na cama e partir pelas onze horas, quando a maior parte estivesse de volta, até porque não era na praça que elas fariam a maioria das suas compras; ainda tomavam tranquilamente o café, quando o Leão começou a ladrar; curiosa, Verónica acorreu à janela e deu com os olhos no carteiro em continência diante do cão.
— Estranho, mamã, o Leão normalmente não ladra ao senhor Afonso! É, venha ver, aquele não me parece ele — convidou intrigada com a postura do carteiro.
— Mas..., aquele é o Mesquita, filha! Já não o conheces? — perguntou a mãe radiante.
— Ah! é o carteiro que lhe trouxe o maldito telegrama que o Faia lhe escreveu a anunciar a morte do pai! — exclamou intrigada, recordando a fisionomia do mensageiro da fatalidade.
— Leão!!! Vem cá Leão!!! — gritou energicamente para o animal.
— Mas que canzarrão, D. Norina! Ele morde? -— berrou o carteiro assustado.
— Não, senhor Mesquita, o Leão só morde quem o ataca! — respondeu a viúva, descendo as escadas ao encontro do carteiro, que avançava timidamente.
— Pois, a senhora ainda se recorda de mim...
— Não recordo, infelizmente, outra coisa, Mesquita, mas que bons ventos o trazem por aqui hoje? Então o senhor Afonso...
— O Afonso pediu a conta no mês passado. Em Setembro, ou se calhar, ainda este mês, também vai para o estrangeiro.
— Ah bom! E para onde?
— Para o Luxemburgo. Uns rapazes de Lordelo arranjaram-lhe lá trabalho nas obras e como ele só ainda tem trinta e cinco anos e quer ganhar rapidamente para uma casita...
— Pois, como o meu Arménio... Uma ilusão, Mesquita, uma ilusão! Agora é só para uma casita, depois é para um pé-de-meia, depois é para um carro, depois é para educar os filhos... A emigração é um círculo vicioso e viciado! É como o caruncho: entra-lhes na cabeça e roe-lhes os ossos até à raiz! Pobres dos emigrantes, ainda não descobriram que no dia em que largaram a terra se divorciaram da verdadeira felicidade, lançando-se num mar de ilusão, porque a ambição lhes faz perder alma primeiro, trocando a dignidade pelo dinheiro, a quem tudo sacrificam, depois o coração, a quem a saudade fará sofrer até ao fim da vida... Mas diga, Mesquita, que se calhar estarei a falar de cor...
— Oh! se não é como diz, não deve estar muito enganada, D. Norina!
— Pelo menos era o que eu sentia nos olhos do meu Arménio e o que vejo nos de quem, tendo partido há bem mais tempo, aqui vem de férias para esconder a miséria que lá passam, como me disse o Chico, o genro do Manuel Feliciano.
— Ah! então foi este o cão que desfigurou o maniento do passador de Almodena! — bradou o carteiro sarcástico, esticando também a língua ao Leão.
— Só teve o que merece o cobarde que quis esfaquear um animal preso. Olhe, Mesquita, foi ali... — explicou nervosa, apontando a casota.
— E sabe-se lá o que ele faria depois de matar o cão...
— Coisa boa não era e quando nos saiu ao caminho também não, mas..., enfim, quem com ferros mata com ferros morre e Deus não dorme, Mesquita - adiantou mais calma.
— Então?! Há carta ou não? — gritou Verónica impaciente, debruçada a espiá-los.
— Ora é mesmo contigo que eu quero falar, pequenita! Vem cá escrever o teu nome neste recibo — atalhou o carteiro risonho, tirando uma carta registada do saco de cabedal.
— Ai é para mim?!
— É para a menina Verónica dos Anjos Valadares Sala. Vá assina aqui e abre lá que desta vez deve ser coisa boa — disse Mesquita espalhafatoso, chupando o cigarro que trazia nos beiços e apresentando-lhe a esferográfica e o recibo para ela assinar.
— Mais alguma coisa?
— É do Mossiú F. Serra! Toma e lê!
— O senhor é bem curioso, sabe? — resmungou a irreverente, pegando na carta e rasgando-a num canto para melhor a abrir com o dedo trémulo.
— Então, filha? — volveu a criança.
— Calma, mãe, calma, que eu não sou nenhuma automotora!
— Bom, adeus e oxalá as notícias sejam boas, menina!
— Obrigado e vá com Deus, o senhor Mesquita — agradeceu Norina pela filha, que, obcecada com a carta nem se mexera.
E, fazendo uma festinha ao Leão, o carteiro lá partiu a cantarolar, como era seu hábito, quando fazia a volta das aldeias, na sua motoreta para o resto da ronda pelas ruas do bairro.
— Então, filha, o que é que o Chico diz? — perguntou a mãe, depois de um breve silêncio.
— Olhe, vá lavar a louça do café...
— É verdade o café!...
— Se o meu estiver frio, faça o favor de mo aquecer que eu não demoro.
— Bom, então não demores que ainda temos que... Mas que raio de carta mais comprida, Verónica! — desabafou a mãe intrigada com a atenção com que a filha a lia.
— Tchut, deixe-me ver se eu entendo bem o que... Caramba, desta vez também lhe deu para escrever letra de médico! — barafustou embaraçada, tentando disfarçar a perturbação que começava a entrar-lhe pelos olhos e a invadir-lhe.
Apercebendo-se do nervosismo da filha, Norina subiu para a cozinha, donde lhe espiava o menor trejeito, por detrás das cortinas, enquanto aquecia taciturnamente o café.
— E se fossemos visitar a campa do pai, mamã? — sugeriu carinhosamente Verónica, segurando a carta dobrada na mão.
— Por acaso pensei centenas de vezes nisso, mas já viste a viagem? Nós não conhecemos ninguém, não sabemos o caminho...
— Oh, a senhora também se afoga num copo de água! Íamos ter com o Chico a Macôn e depois, se ele estivesse de férias, pedíamos-lhe que nos levasse a Valdahom e assim aproveitávamos para conhecer o senhor Fortunato Galela do Fiolhoso, de quem o papá nos falava tão bem, e agradecíamos-lhe por tudo o que fez por nós, sem esquecer as bonecas e os brinquedos que os filhos dele me mandaram no ano em que o pai veio ao Natal.
— Pois, mas irmo-nos para lá sozinhas, deixarmos tudo isto aqui e...
— E quê?!
— Com o baptizado do Júlio e do Arménio quase à porta!
— Quase à porta?! Ainda agora estamos no princípio do mês! A senhora quer ir que eu convenço o senhor Feliciano a deixar ir a D. Rita connosco?
— A D. Rita?! Mas que ideia, filha! O que é que a...
— Então a Zélia não está para ter o bebé? — recordou prontamente a espertalhona.
— É verdade, nem me lembrava da Zélia! — exclamou a amnésica, recuperando a memória.
— Vá!, ande lá, beba o café e despache-se que esta hora o senhor Feliciano ainda não tem assim muitos clientes no restaurante.
— Bom, então fazemos melhor: vestimo-nos, fazemos calmamente as compras e depois vamos lá almoçar para festejarmos sozinhas...
— Boa ideia! Comemos umas batatas a murro com bacalhau assado, que a D. Rita faz muito bem, e depois falamos- lhe. Boa ideia, sim senhora! — apoiou a Verónica radiante, levando apressadamente a chávena à boca.
— Cuidado, que te queimas, filha!
— Oh!, queimar-me eu?! — ironizou a eufórica, bebendo o café de uma golada.
— E a carta? — relembrou a mãe curiosa.
— Vá!, despache-se e vista-se que depois eu conto-lhe pelo caminho — respondeu a menina, correndo lesta para o quarto dela.
Dez minutos depois, já atravessavam alegremente a ponte da Timpeira escoltadas pelo Leão. Enquanto caminhava e resumia muito sucintamente a carta à mãe, Verónica não parava de sorrir. Nos seus olhos brilhavam intensamente a luzes da fé e do sonho que ela não parava de alimentar contra a racionabilidade, espelhando bem o ditado que diz que enquanto há vida há esperança, e a dela ainda estava no início da Primavera.
Na rua Direita, passando junto do Márius, deu com os olhos naquela foto que o Jorge lhe tinha tirado à beira do Corgo no dia do casamento da Marta e, não hesitando um segundo, foi pedir-lhe explicações, mas o seu admirador não estava. Zangadíssima, pediu à patroa que lhe retirassem imediatamente a foto da vitrina, mas esta pediu que lha pagasse se a quisesse ver dali para fora. Mostrando-lhe cinco contos, Norina exigiu-lhe imediatamente a chapa, o quadro e todas as fotos que tivesse dela, se não quisesse que fosse chamar a polícia; atemorizada com a ameaça da viúva e com o olhar colérico da filha expectante, a patroa desculpou-se pela negligência do empregado e, embrulhando tudo muito bem, remeteu-lho num saco plástico.
— Parece que é a primeira vez que te vejo assim tão zangada, mamã! — cochichou Verónica mais adiante, olhando orgulhosamente o rosto corado da mãe.
— E com razão.
— Oh! o Jorge não deve ter feito aquilo por mal! Bem se vê que ele te achou muito bonita. Eh! até que o Jorge não parecia mau rapaz!...
— Não te estou a conhecer, Verónica! Mas não foste tu que, ainda há poucos dias, me ameaçaste pôr no olho da rua, se te arranjasse um padrasto? Francamente, não te estou a perceber, menina!
— Realmente devo estar maluca para lhe dizer isto nesta altura.
— Nesta altura?! O que pretendes dizer com isso?
— Oh nada, esquece, mamã, foi uma expressão que me saiu por acaso!
— Hum, até me parece que me queres esconder alguma!
— Alguma quê?
— Sei lá! Se calhar quando me deixares ler a carta que o Chico te escreveu talvez saiba um pouco mais a esse respeito, sua segredeira.
— Segredeira eu?! Olha quem o diz! — cochichou baixinho para que os transeuntes não as percebessem, espiando o trânsito que subia a avenida Carvalho Araújo.
— Deixa lá, à tardinha, quando voltarmos, nós falaremos! Segura o Leão e presta atenção aos carros antes de atravessares! — avisou a mãe, segurando o quadro e calculando a velocidade e a distância do automóvel para atravessar a rua. — Agora! Vá, anda, corre que o táxi vai estacionar perto da estátua! — gritou confiante, puxando-a energicamente pela mão.
Subindo a avenida pelo lado dos correios, lá caminharam até ao frontispício do seminário e da Minerva Transmontana, onde eram impressos os cartazes, os jornais regionais e o Ave-Maria, um boletim diocesano distribuído aos domingos no fim da missa, por todo o distrito de Trás-os-Montes e Alto Douro; e, contornando o mercado pela entrada sul, dirigiram-se para o restaurante.
— Olha quem aqui vem! Até que enfim que as meninas se desviaram do caminho! Se estivéssemos na aldeia, daria corrida ao sino! Sejam bem-vindas! — exultou o patrão.
— Realmente já era tempo de eu me decidir a sair da toca e a vir provar as batatas a murro com bacalhau de que a Verónica me fala tanto. Mas..., o Feliciano está muito mais elegante!
— Pudera, com tanto trabalho!
— Ainda bem, assim a honra e o proveito ficam no mesmo saco!
— Pois, encolho a pança e encho a carteira, não é?
— E o que é que devia ser, Feliciano?
— Se queres que te seja franco, não tenho razão de queixa: desde que se deu o 25 de Abril, quanto mais se discute e fala de política, melhor vão os negócios.
— E a prova está aqui: vê lá onde nos podes arranjar um lugarzinho.
— Ah! vocês vêm para comer! Em honra de quem?
— Olha, para cumprir uma promessa que fiz à Verónica por não ter aqui vindo depois do casamento do Júlio e da Marta e por ter conseguido o exame do 1º ciclo.
— É verdade! Parabéns, Norina, parabéns! — exclamou o Barrigana, estendendo a mão.
— Obrigada! E a D. Rita?
— A Rita? Mas onde é que deve estar a minha Rita, quando não dorme ou não está doente? Na cozinha, claro! Às vezes até lhe digo que devia tirar umas férias e deixar a empregada fazer os temperos, mas ela cismou que só ela é que sabe cozinhar nesta terra!
— Por falar em férias, eu e a Verónica somos capazes de ir, finalmente, ver se aquelas terras de França são assim tão mais ricas que as nossas. Agora, que as coisas estão mais calmas e o tempo já cicatrizou um pouco mais as mágoas, queria visitar a campa do Arménio e conhecer pessoalmente as pessoas de quem ele tão bem me falava e agradecer-lhes tudo o que fizeram por nós, não é Verónica?
— Então, quem deve tem que pagar um dia! — justificou a órfã filosofal, admirando a decoração do restaurante.
— E quando é que tencionais partir? No fim do mês temos o baptizado dos gémeos do Júlio e a Verónica, pelo menos, como vai ser madrinha do Arménio, tem que estar de volta.
— Pois, mas ainda há pouco recebi uma carta do seu genro. A propósito, ele diz que a gravidez da Zélia está a correr muito bem e manda-lhes muitos cumprimentos, e...
— E que te diz o Chico?
— Diz que se quero conhecer a terra onde o meu pai trabalhou e, quem sabe? o lugar onde morreu, que aproveite o mês de Agosto, em que os emigrantes, e não só, estão de férias.
— Olha, se convenceres a Rita a ir convosco, dou-te um..., não, pago-vos o almoço!
— Depois, quando voltarmos, aceito, mas o de hoje não. O de hoje, como é o primeiro e vem tão atrasado, é a D. Norina quem o paga e não bufa! — retorquiu cínica, fisgando a mãe.
— Pronto, ide lá, sentai-vos onde quiserdes e fazei lá que me dais uma grande alegria se arrastardes a minha catatua da bila para fora — concordou Feliciano, sorrindo a dois casais que entravam para almoçar.
Enquanto aguardavam o almoço, Verónica largou a mãe a ler uma revista e a beber uma água das Pedras e foi postar-se no postigo da cozinha a cochichar com a cozinheira, que a escutava atentamente e aprontava, sem abrandar o ritmo, as encomendas dos clientes.
— Está-me a ouvir, D. Rita? — questionou a faladeira, julgando falar para as paredes.
— Fala, filhinha, fala, que depois eu dou-te a resposta — tranquilizou-a a senhora risonha.
— Então não se esqueça, pense bem no que eu lhe disse, D. Rita!
— Fica tranquila que o meu Feliciano não vos deixará sair sem vos dar a resposta. Agora vai comer que esta travessa é para vós.
— Credo! isso é bacalhau para um regimento, D. Rita! — ironizou a pequenita.
— Tchut! Vá, comei tudo que depois falaremos dessa viagem. Bom apetite!
— Obrigada, D. Rita!
E, arregalando os olhos, seguiu o servente até à mesa, surpreendendo a mãe a falar e a sorrir para um rapaz muito extrovertido, que não parava de lhe arreganhar os dentes.
— Verónica este senhor é o Manuel da Cumieira que andou comigo no curso.
— Eu sei, mamã! Cruzei-o tantas vezes nas escadarias do liceu! O senhor Manuel quer comer connosco? Olhe para ali! Bacalhau é o que não falta! Coma!
— Obrigado, Verónica, mas a minha senhora está à espera — desculpou-se o estudante.
— Ah! o senhor é casado! — bradou a pequena, despertando a curiosidade alheia.
Corado, o colega da Norina nem chegou a despedir-se dela. Confuso, retirou-se cabisbaixo como um réu, transmitindo aos clientes do restaurante a sensação de uma qualquer culpabilidade, enquanto a viúva os encarava obstinadamente, forçando os olhares incriminantes a terem vergonha por tão audaz descaramento. Orgulhosa, Verónica sorria inocentemente, servindo-se em primeiro lugar. Mudando de cadeira para ficar de costas viradas, a mãe, imitando a filha, serviu-se também, saboreando o apetitoso manjar.
Com o pudim caseiro da sobremesa, vinha um bilhetinho que a Norina leu num golpe de lince “ vou, se partirmos segunda de madrugada e voltarmos para a festa da Senhora da Assunção...” ; pegando numa esferográfica que tinha na bolsa, ela escreveu apenas “de acordo ”e dobrando o papel mandou-o de volta pela Verónica, que não resistiu à tentação de o ler pelo caminho.
E do restaurante, a viúva desceu imediatamente à Caixa Geral de Depósitos a comprar francos franceses e algumas pesetas, mesmo antes de falar com o Júlio, a quem só falou da viagem pelas quatro da tarde. Desculpando-se por não lhe responder na hora, o taxista comprometeu-se, contudo, e dada a urgência, a dar-lhe a resposta à tardinha, depois de falar com a Marta. E na verdade, ao pôr do Sol, lá surgiu o Opel na rampa com a novidade que a Verónica mais desejava: Júlio aceitou o honroso convite e sugeriu à Norina que deixasse ali ficar a mulher e a irmã aqueles dias com o Leão a guardar a vivenda. Extremamente grata, a viúva aceitou prontamente a sugestão e pediu ao taxista que fosse convencer a D. Rita a antecipar a viagem de um dia, pois a Verónica queria que a levasse também a Paris.
Domingo de madrugada, depois de carregar as malas das viajantes, Júlio deixou-as fazer as despedidas e beijando emocionadamente o rosto da Sara, a quem incumbiu de zelar pelos gémeos, pediu à Marta que chegasse um instante com ele ao quarto da viúva, onde dormiria as próximas doze noites, e cobrindo-a de beijos, rogou-lhe que não saísse da vivenda e, se preciso fosse, utilizasse a pistola que a Norina lhe mostrara na véspera. Depois, acariciando e beijando as mãozinhas dos inocentes adormecidos, acenou e partiu tristonho, apesar dos encorajamentos da D. Rita, sentada no banco da frente, e da Verónica, que não parava de acenar e lançar beijos à comadre.
Finalmente, ainda era noite cerrada, quando, contornando a curva do quartel, o táxi tomou a direcção de Vila Pouca de Aguiar, rumo a Chaves e a Vila Verde da Raia; aos primeiros clarões de domingo, com mãe e filha adormecidas no banco traseiro, só D. Rita, de olho vivo, animava o Júlio, que, vendo o ponteiro da temperatura subir vertiginosamente, temia que a serra de Puebla de Sanábria lhe incendiasse o Opel, mas na descida tudo voltou ao normal, tranquilizando-o. Pelas oito horas, com o Sol a bater-lhe nos olhos e a boca a abrir-se-lhe, o condutor virou para um parquezinho e, despertando as dorminhocas, saiu para respirar um e aliviar a bexiga atrás da moita, contagiando as mulheres, que aproveitaram para fazer o mesmo, enquanto ele controlava os pneus do carro. Depois de comerem uma sanduíche e beberem um copo de café com leite, retomaram a viagem rumo a Palência.
Sentando-se ao lado do Júlio para a D. Rita tirar um cochilo, Norina não parava de olhar o mapa e contar as localidades por onde ainda teriam que passar até chegar ao destino. Depois de Burgos, à medida que os nomes iam sendo riscados, Verónica, que viajava no meio dos bancos, ia anunciando euforicamente só já faltam quinze, só já faltam quatorze, como se cada cidade desaparecida lhe avivasse a fé e aumentasse a voltagem da luz dos seus olhos.
Quando, em Irun, atravessou a fronteira francesa, o seu coração embalou-se e, sentindo uma dor no peito, começou a chorar. Apercebendo-se pelo retrovisor, o taxista encostou o carro num ar de repouso e, sorrindo à amiga, murmurou baixinho:
— A menina está a chorar.
— Então, Verónica? Estás cansada, filha? — questionou compadecida, virando-se para trás.
— Oh!... - desabafou contrariada, enxugando as lágrimas.
— Se quiserem sair para respirar um pouco, aproveitem que ali há quartos de banho para senhoras! — avisou Júlio, desligando o motor.
Acordando com o estremecimento, D. Rita esfregou os olhos e, espreguiçando-se, começou a bocejar. Depois, ajeitando-se para sair e estender as pernas, viu que a criança havia chorado e, pegando-lhe na mão, perguntou comovida:
— Estás maldisposta, miga?
— Não senhora. Há três quilómetros atrás senti uma pontada no peito.
— E ainda te dói? Tu vê lá!
— Oh! isto não é nada! Esteja sossegada. A dor já passou — balbuciou a mocinha soluçante, enxugando um pouco melhor os olhos.
— A Verónica é muito forte, D. Rita! — adiantou a mãe, sorrindo orgulhosa.
— Sem dúvida nenhuma, Norina! Mas... Onde está o Júlio?
— Ali, olhe! — disse calma, apontando para Júlio que controlava o nível do óleo e da água.
Saindo para o terreiro, elas acenaram ao condutor e dirigiram-se para o espaço reservado às mulheres, donde voltaram lavadas e penteadas. Depois, abrindo a mala do Opel, pegaram no cabaz da merenda e levaram-no para a sombra de uns arbustos. Chamando o taxista, abriram os cabazes e almoçaram, espraiando um pouco, antes de iniciarem o resto da viagem.
Em França, atravessados os Landes, região de pinhais e areais por onde se infiltrava a maresia do Golfo da Gasconha, não se cansaram de admirar aquelas planícies imensas, que ladeavam as auto estradas, e as inúmeras zonas industriais. E a cada fábrica que cruzavam, não se aborreciam de recordar que ali deviam trabalhar muitos compatriotas. Impressionadas com o tamanho o desenvolvimento, tiveram indubitavelmente a percepção de estarem a descobrir um outro mundo, mais humano e mais justo, apesar da maior velocidade que a vida lhes parecia ter. E, depois de várias paragens para abastecerem o Opel e respirarem um pouco, chegaram a ao destino de madrugada.
Mergulhada na noite e embalada pelo plácido Rhône, Macôn pareceu-lhes uma cidade calma e aconchegante. Estacionando a viatura no largo do mercado, sob os holofotes da marginal, Júlio ligou a luz interior e, conferindo o endereço da Zélia, apercebeu-se que acabara de atravessar a route de Lyon e saiu para se certificar se a placa, que julgava ter visto segundos antes, era mesmo a que estava afixada na esquina. E, saindo do carro, andou uns vinte metros, conferindo que estava certo. Depois, voltando para junto das dorminhocas, ligou o contacto e tomou a direcção desejada. Entrando na avenida, segurou cautelosamente o volante e, rolando pacatamente, lá foi conduzindo e controlando o número indicado no cartão com o nome das localidades por onde haviam passado. Estacionando o Opel no terreiro que se estendia à frente da casa da Zélia, trancou as portas e, deitando o banco, cruzou os braços, esperando que o Sol nascesse para ir bater à porta da Zélia. Mas, cansado e feliz por ter chegado ao destino em vinte e oito horas, acabou por se relaxar e adormecer, embalado pelo ruído crescente dos camiões e das viaturas que se dirigiam para Lyon.




Continua em Capítulo XIV



LMP - Luxemburgo 1984 - Lud MacMartinson