terça-feira, 3 de maio de 2011

Herói em Fuga - Adeus até Abril - Capítulo I

Estoril - Portugal, Julho de 1973

I

Ancorado nos braços da medusa nórdica, o nefelibata fazia desfilar no mais recôndito da sua alma os últimos meses da sua vida, recordando sobretudo as passadas que dera e as portas a que batera naquele dia 8 de Janeiro de 1973, o primeiro em liberdade, até descobrir a pensão familiar dos Firmes, em S. Pedro do Estoril, onde estava hospedado; taciturno, relembrou ainda as noites de incerteza, antes de rescindir com o sagrado, apesar dos duelos interiores contra os tabus e a maldita timidez, com que os anos da hipócrita clausura haviam impregnado e algemado o seu espírito introvertido, mas terrivelmente sonhador. Ele sabia muito bem, que se os abutres da celestial tirania não lhe haviam sugado inteiramente o impulso vital, era à irreverente veia poética que o devia. E, sorrindo para Vika, recitou mentalmente, de olhos pregados no além, para que ela não se consternasse e tivesse pena dele, pedaços de poesia, afugentando assim a mórbida nostalgia do adeus iminente. A quimera sempre fora a única tábua de salvação por onde boiara a liberdade que ululava furiosa e impacientemente dentro dele. Tal como o nobre povo, escravo da ditadura fascista, também ele se sentia como um passarinho que, nascendo e vivendo toda a vida numa gaiola, não conseguia voar para muito longe, tanto o fascinanvam as grades da prisão. Mas, passados aqueles primeiros meses de melancólica solidão, um dia de Verão, na praia do Tamariz, quando a inspiração insuflava no o seu coração atribulado, uma donzela de sonho viera assentar-se timidamente junto dele para melhor lhe espreitar os gatafunhos. Oh!, como era bela a Giola! — bradava mentalmente, recordando aquele amor impossível. Com ela surgira a esperança de um grande amor, um amor puro, imaculado e plangente, um amor amassado e delirante, um amor como só ele e as musas sabiam, mas o destino decidiu de outro modo e logo vieram as mademoiselles parisienses, com aquelas ideias feministas, durante duas semanas de férias, catapultá-lo para os braços da sensual libertinagem. Os píncaros do amor haviam confundido e baralhado o seu espírito temerário e obscurecido a inocência daquele coração errante. Finalmente, a liberdade, que ele tanto desejara na solidão do misticismo herético, colara-se-lhe à pele e o erotismo narcotizara-lhe a razão.

Depois, inexplicavelmente, o charme desinibido da francesinha Chantal ofuscara rapidamente a virgindade da Giola, liceal a quem o papá ministro lhe proibira de amar. E a arrogância desse pai, sinistro cão de guarda do regime, até a liberdade de sonhar lhe roubou, criando no seu cérebro um abismo tão profundo que só uma descomplexada sibarita como a Vika, em cujo regaço estava meditando, conseguiu aplanar tenuemente.

Os idílios breves daquele fim de ano escolar aconteceram tão naturalmente que nem teve tempo para consultar a sua consciência atribulada, roída pelo remorso de uma promessa infantil que a adolescência rebelde não quisera cumprir: ser padre. O misticismo forçado, que julgava inquebrantável, sucumbiu aos apelos da dolce vita e, tal robot, deixou-se navegar ao sabor da paixão sem esboçar o menor arrependimento, como se o pudor e o escrúpulo tivessem morrido no dia em que transpôs pela última vez a porta do seminário, essa prisão onde a realidade e o sonho, tão antagónicos, nunca chegaram a um consenso e ainda bem, porque só liberto desse compromisso é que a sua consciência podia exercer o livre-arbítrio.

Daqui a umas horas, de retorno à terra natal, o adorável sensualismo sumir-se-ia e com ele muito provavelmente os sentimentos libertinos. Na aridez transmontana, lá onde liberdade rimava apenas com abade, o tempo, esse meteoro que tudo cura e digere, o tempo..., o tempo seria seguramenre o seu carrasco, o algoz do coração, se pecado era amar assim.
Enfim! O destino nascera com ele e, não só o forçara a trilhar os caminhos insensatos do sagrado, como lhe fizera descobrir as delícias do amor. Porém agora, se os tabus malditos quisessem impor-lhe um degredo inóspito, para lá do Marão, por amor, tornar-se-ia refractário e desertor, pensava arrebatado pela inefável miragem.
— Hello, David, you are sleeping, my dear? — perguntou em inglês a sibarita.
— Não, estava a sonhar, Vika.
— Comigo?
— Com o destino, tolinha — balbuciou o nefelibata, furtando-se à libidinosa.
— Ufa!, ainda bem! Pensei que estavas a trair-me.
— Trair-te, meu amor? Não, uma musa assim não se trai nunca, Vika, morre-se com ela, my Darling.
— Oh! yeh! That’s great! Hum! Que gostoso! Vem, David, vem! — suplicou a feiticeira, debruçada, fazendo ondular os seios bronzeados.
— Ui.! não, agora não! Desculpa, Vika, mas eu prometi telefonar hoje à minha mãe — disse convicto, saltando da cama e vestindo-se à pressa.
A sueca franziu a testa, decepcionada. David sacudiu os caracóis com os dedos, lançou-lhe um beijo furtivo e, consultando o Seiko, que o tio Toninho lhe enviara do Rio de Janeiro, saiu cautelosamente do quarto da nórdica.

Do Tamariz até aos correios, não conseguiu concentrar-se: num ápice viu as conquistas desfilarem-lhe nas retinas e, confuso, nem prestou atenção ao tráfego da Marginal. Pelo prisma do seu cérebro ebuliente circulava um cocktail de imagens e sentimentos tão intensos e diversos que, naquela hora, se arrependeu de ter abandonado a vida religiosa. Não, a paixão platónica, que as musas que lhe insuflavam torrencialmente nos poemas e nos sonhos, era muito diferente da que a realidade agora lhe proporcionava.
Na estação dos correios, na subida para S. Pedro do Estoril, mal olhou a empregada que lhe indicou gentilmente a cabina 2, onde se trancou e discou os números do telefone que trazia decorados na ponta da língua.
— Trrim! Trrim! Trrim! — ecoou o auscultador nos seus tímpanos impacientes.
— Tou! Tou!!! Aqui é o taberneiro do Fiolhal, quem fala?
— Boa tarde, senhor Filinto! Então como está?
— Que nunca pior, mas, desculpe, o senhor quem é? Donde fala? Olhe, nestes dias o estupor do telefone não tem andado muito afinado...
— Sou o David, o filho do senhor Alexandre.
— Ah, é vossemecê, senhor doutor?! — respondeu o taberneiro, limpando as rugas da testa a um lenço de popelina às riscas vermelhas.
— Doutor?! Ui, não me doa a cabeça antes..., se lá chegar, senhor Filinto!
— O tempo passa tão depressa, senhor dou.... Oh! Cá volto eu com o doutor, carago! Ó David, tu desculpa, mas eu já me habituei a chamar-te assim — acrescentou o comerciante indeciso, enfiando o lápis das contas atrás da orelha.
— Está bem, como quiser, senhor Filinto.
— Então tu que desejas?
— Por favor, mande chamar a minha mãe que eu volto a ligar daqui a uns dez minutos.
— Certamente, com licença. Eh! rapaz, vem cá! — gritou de mangas arregaçadas para um garoto que espreitava na esquina da taverna. — Eh!, vai dizer à senhora Luísa do Alexandre que venha ao telefone que o David quer falar com ela.
— Muito obrigado, senhor Filinto — agradeceu o pré-universitário.
— Não tem de quê, sempre às ordens! — disse o taberneiro, pousando o auscultador.
Alapados nas caixas das grades de cerveja Sagres, que lhes serviam de bancos, quatro velhotes de kentucky, o popular mata-ratos, nos beiços, batiam a bisca; os carros de bois chiavam pelas esburacadas ruelas de terra batida e as mocetonas carregavam nos seus poupos negros molhos de palha para os colchões: a azáfama das malhadas trazia a aldeia em alvoroço.
Entretanto, o Pipo, o moço dos recados, lambendo já os beiços pelo rebuçado que receberia de gorgeta, desatara a correr, obedecendo lesto ao taberneiro, e fora avisar a mãe do David, por quem nutria uma certa amizade, tantas vezes ele, de férias, lhe matara a fome e lhe contara histórias de polícias e ladrões.
A senhora Luísa estava mesmo a pousar o pulverizador nas escadas graníticas, quando o Fernando lhe deu o recado. Largando o bombo, a mulher do Alexandre atou o lenço, para melhor disfarçar as pingas de sulfato impregnado na madeixa negra e lá seguiu o mocinho, ignorando as socas apinceladas de azul.
Ofegante, a senhora Luísa aguardou de pé que o filho lhe ligasse, mas, como o contacto demorasse, assentou-se num rolo de cordas perto do telefone, donde não tirava os olhos negros. E os minutos passaram-se sem que o David desse sinais de vida. Foi então que, inquieta, perguntou ao taberneiro:
— Tens a certeza que o telefone não está avariado, Filinto?
— Não, a linha é que deve estar entupida...
— Entupida?! Como assim?
— Sabes, com tanta gente a querer falar ao mesmo tempo e de tão longe, se calhar os cabos até podem romper-se com tanto peso, quando não é algum estouvado que os corta por aí!
— Ah bom!
— Então o David passou de ano? — retorquiu o taberneiro, curioso.
— Bom, ele estava muito confiante antes das provas, Filinto, mas nem sempre as coisas correm bem e este exame, o último antes da universidade não deve ser nada fácil!
— Quem me dera que o meu catraio aprendesse assim como o teu. Se eu soubesse que ele tinha boa cabeça também o metia no estudo. É que aqui, rapariga, um homem anda sempre a esfossar com licença no esterco a vida inteira e nunca passa da cepa torta!
— Graças Deus, o David...
— Sim! Sim!!
— Estou!!! — bradou o taberneiro, segurando energicamente o auscultador.
— A minha mãe...
— Sim, eu vou ta passar. É ele... — acrescentou o Filinto, entregando instintivamente o aparelho à prima.
— Então está tudo bem, filho? — perguntou-lhe a mãe, lacrimosa.
— Sim, mas porque chora, mãe? Vá, não chore, que eu já posso ir para Coimbra!
— Ah! Graças a Nossa Senhora de Fátima, Deus... Ah! Ficaste bem, filho!
— Dispensei do exame de aptidão, mãe. Ligue ao pai e diga-lhe que agora, com a bolsa de estudo que vou ganhar, já não lhe vou gastar tanto dinheiro e assim também nós poderemos construir uma casa nova como a do Manuel da senhora Judite.
— Nunca foi com casas novas que eu sonhei, filho!
— Eu sei, mãe, eu sei, mas, se Deus quiser, ainda a ajudarei a ter uma casa como deve ser. Vá, não chore e veja se o taxista vem este fim-de-semana para Lisboa.
— Espera, não desligues, filho! Eh! Filinto, — gritou orgulhosa — não sabes se o Zé Pala vai esta semana para Lisboa?
— Não, não sei. Então o David já quer voltar para a parvalheira, mulher? — inquiriu o taberneiro, lá do fundo da tasca, a medir as peixotas de bacalhau.
A senhora, obcecada pela alegria que lhe ia na alma, não respondeu.
— Está-me a ouvir, mãe? — berrou o estudante.
— Sim, estou a ouvir-te, filho. Olha, não te preocupes, fica aí mais uns dias, que bem os mereceste, e prepara as malas que o Zé Pala lá te irá procurar. Diz, tu ainda tens dinheiro, David?
— Sim, mãe, ainda não cambiei os mil francos belgas que o pai me mandou para o meu aniversário.
— Pronto, então fica com Deus. Um beijinho, filho.
— Outro para si, mãe. Adeus! Ah, diga ao senhor abade que fale com o irmão dele que está em Coimbra para me indicar uma pensão de família que eu não gosto nada das repúblicas.
— Está bem, filho, adeus! — disse felicíssima, pousando o auscultador e sorrindo orgulhosamente para os embasbacados que a miravam na hora daquele triunfo.
Fora difícil, mas valera a pena! Afinal, o destino, que lhe roubara quase tudo, acabava de lhe devolver a grandeza perdida e o orgulho de ser quem sempre fora: a filha de um grande homem, herói da 1ª Guerra Mundial. Se, com a falência do seu negócio na aldeia, o nome dos Macedo fora, porventura, derrastado pelas más línguas, o filho, com aquele sucesso, acabava de o pôr bem lá no alto e sozinho. Ela, que sempre sofrera em silêncio os caprichos do destino, não se vangloriaria nada com isso, mas que, no interior, o seu coração exultava de alegria, lá isso exultava.

Entretanto, pousado o telefone, o estudante correu para a pensão e começou a empacotar os livros e a roupa, recordando, inadvertidamente, os mesmos gestos dos nove anos passados no seminário, sempre que via o nº 161, com que a mãe lhe marcara o enxoval, naquele longínquo Verão de 1965, quando entrou no seminário de Vila Real.
Depois, os últimos dias de ociosidade passou-os com os amigos, com quem foi ao cinema e conheceu outras garotas, mas não era com elas ou tampouco com a Vika que o seu coração se embalava verdadeiramente. No fundo, só a Giola, se calhar por ser proibida, o fazia sonhar e lhe parecia digna de ser a mãe dos seus filhos. Por isso decidiu que abandonaria o Estoril sem se despedir de ninguém.

Como quase todos os fins-de-semana, o Zé Pala, o taxista do Fiolhal, teve um frete para a capital e, sábado de madrugada, depois de uma fastidiosa viagem, passou pelo nº107 da rua Guiomar Torrezão, em S. Pedro do Estoril, onde o David morava desde o dia 7 de Janeiro.
Ainda era noite quando descobriu o endereço do conterrâneo. Temendo incomodar os Firmes, os inquilinos daquele casarão, estacionou o Opel Record no pátio do imóvel e, cerrando os olhos, esperou que o sol despertasse.
Mal se elevara no sono e já um canzarrão latia perto da viatura. Atordoado, esfregou as olheiras e espantou o animal com um aceno. De repente, uma luz ténue acendeu-se lá no primeiro andar da moradia. Enchendo-se de coragem, foi bater timidamente à porta. O senhor Manuel Firme, que preparava a marmita da jornada, teve a impressão de que alguém o chamava, mas não respondeu logo. Com um segundo truz-truz mais forte, porém, quis tirar as dúvidas.
— Bom dia, meu senhor! — saudou o taxista, envergonhado.
— Bom dia! — murmurou o nabantino, convidando o estranho a entrar.
— Desculpe, por acaso não é aqui que mora o David Macedo? — perguntou o Zé Pala, mostrando o bilhete que a senhora Luísa lhe dera antes de partir.
— É sim senhor, entre. Você está a chegar do norte ou dormiu por aqui?
— Credo, Deus me livre! Mal de mim se tivesse que pagar uma noitada num destes hotéis! Assim não ganharia para o gasóleo, senhor...
— Manuel, Manuel Firme, senhor...
— Zé!, Zé Pala!
— Não me diga que viajou toda a noite, senhor José Pala?!
— É como diz, senhor Manel Firme, saí ontem à noitinha de casa e, por causa de um furo em Castro Daire, só cheguei há coisa de vinte minutos.
— Bem se vê, senhor Pala — deduziu o mestre de obras, vendo-lhe as mãos sujas.
— O senhor não tem por aí um púcaro de água para as lavar? — perguntou o motorista, acanhado.
— Com certeza, senhor José Pala, aqui tem o lavabo — disse o pedreiro, acendendo-lhe a luz do quarto de banho.
— Nossa, como brilha! — exclamou o taxista, espantado com os azulejos reluzentes.
— Pudera, com duas mulheres cá em casa!...
— Isto é um luxo, senhor Firme! Lá na terra, os nossos pedreiros são mesmo uns trolhas! — desabafou o taxista, admirando aqueles azulejos pousados a preceito.
— Não me diga, senhor José?!
— Ó carago!, lá por isso, pergunte ao David! — insistiu o taxista, limpando as mãos ao lenço do bolso.
— Não se acanhe que as toalhas são para se usarem! — atalhou o mestre.
— Deixe lá, estas são finas de mais para cheirarem a gasóleo. Muito obrigado, mas trago sempre dois lenços comigo: um para o nariz e outro para limpar o suor das mãos ou da testa.
— O senhor não se acanhe, homem de Deus! Vá, venha matar o bicho!
— Um copo de água beberei, senhor Firme, que tenho a garganta seca.
— Assente-se e sirva-se — ordenou o pedreiro, apontando para o queijo flamengo e para os moletes que estavam em cima da mesa.
— Vocemessê trabalha longe?
— Oh! Os meus homens nem precisam de mim!
— Os seus homens?!
— Sim, eu sou chefe de obras na firma do António Guerreiro.
— Ah bom! — exclamou o taxista, mirando o Firme com olhos subalternos.

E um respeitoso silêncio inundou o corredor até à cozinha. Pegando timidamente num papo-seco, o Zé Pala abriu-o com os dedos, enfiou no miolo uma fatia de queijo e começou a mordiscá-lo parcimoniosamente.
Depois de esperar que a mulher se acabasse de arrumar, o senhor Manuel deixou o taxista a matar o bicho e foi despedir-se do hóspede. À medida que subia as escadas e se abeirava da porta do quarto do moço, a emoção ia tomando conta dele e, na hora do adeus, foi traído pelas lágrimas.
— Você já está a pé, David? — perguntou baixinho.
— Já, senhor Manuel, entre — respondeu o hóspede, abrindo-lhe a porta.
— Olhe que o seu taxista está a matar o bicho. Boa sorte e quando for doutor não se esqueça de nos vir fazer uma visita.
— Certamente, senhor Manuel.
— Pronto, espero que tenha boa viagem e desculpe qualquer incómodo ou atitude menos correcta da minha parte, sim? — disse o nabantino, apertando a mão ao hóspede.
— Ora essa, senhor Firme, se alguém deve pedir desculpas nesta casa, sou eu, pelas noites em que não respeitei a hora de entrar e...
— Vá, porte-se bem e não se esqueça de nós. Adeus!
— Até qualquer dia, senhor Manuel e obrigado por tudo — agradeceu comovido, batendo nas costas do mestre de obras, que se retirou cabisbaixo a enxugar os olhos.
Entretanto, a senhora Maria Rita viera dar os bons-dias ao taxista. Quando o marido desceu, ela estava na cozinha a verificar se o farnel ia nos conformes. Despedindo-se do Zé Pala, o pedreiro pegou no saco da merenda e lá foi para a labuta quotidiana. O sol erguera-se sorrateiramente e cobria com o seu manto alaranjado o bairro de S. Pedro do Estoril; a uns quinhentos metros, na descida, a praia da Azambujinha não se cansava de marulhar, como que a dizer adeus ao poeta solitário.

Com a ajuda da D. Rita, o estudante desceu toda a bagagem para o pátio, deixando ao conterrâneo o trabalho de a arrumar na viatura, e voltou para se despedir do filhos dos patrões. Comovido, David enxugou as lágrimas, abriu cautelosamente a porta do quarto do Zezito, afagou-lhe a fronte e, beijando-lhe a mãozita, enfiou debaixo do travesseiro um envelope. Depois, encaminhando-se para a cela da Lita, o estudante olhou-a e quis beijá-la, mas não se atreveu, inibido pela presença da mãe da moça.
Elevada no sono, a liceal mastigou em seco e afastou os lençóis para libertar o calor matinal, deixando entrever a combinação desabotoada por onde espreitava um seio madrugador. A mãe, que seguira o hóspede, limpava as retinas a um lencinho bordado. Consultando-a com um olhar enternecido, David indagou baixinho:
— Posso, D. Rita?
A senhora baixou levemente a cabeça, consentindo-lhe tal intimidade. O hóspede abeirou-se então da Lita, beijou-a fraternalmente no rosto, cobriu-lhe discretamente o seio madrugador e, puxando pelo envelope que trazia no bolso de trás das calças Miura pretas, pousou-o em cima da mesinha de cabeceira. A patroa acompanhou-o até à porta. Comovido pelas lágrimas da senhora, que sempre o tratara como filho, cerrou os dentes e, arrancando do fundo da alma um resto de coragem, balbuciou calmamente:
— Não chore, D. Rita, que em Outubro virei fazer-lhes uma visita, está bem?
— Oh!, você diz isso para me consolar, mas depois, na faculdade, não pensará mais em nós! — desabafou a franzina senhora.
— Mas não, D. Rita, mas não!
— Mesmo?!
— Claro! Então a senhora não vê que aquela maluca da Vika, quando souber que eu me fui embora sem lhe dizer nada, virá aqui pedir-lhe o meu número de telefone.
— E eu dou-lho ou não?
— Não, não dê, D. Rita.
— Porquê? O David ainda pensa na filha do senhor ministro, pois pensa?
— Na Giola?
— Sim, na Giola. Esta na cara que o David morre de amores por ela!
— A Giola não é do meu mundo, D. Rita!
— Ora essa! E porque não?
— Eu nasci da província e sou filho de gente pobre, D. Rita.
— Ah, não será bem assim, David! A sua família tem algumas terras e, além disso, não se esqueça que é neto de um herói da guerra..., bem remdiado...
— Lá isso é verdade, mas já foi há muito tempo e, infelizmente, os meus tios não souberam gerir a fortuna que o meu avô lhes deixou. A minha mãe, essa, nunca foi ambiciosa, coitada, e sempre confiou demais no que o irmão e o cunhado lhe disseram.
— Você devia telefonar à Giola, David. Olhe que a D. Alice não é como o marido.
— Eu sei D. Rita, mas depois que esse animal me mandou espancar...
— Realmente o senhor ministro não deve ser pessoa que se cheire.
— O poder deu volta à cabeça, D. Rita. Aquele não merece a filha, nem a mulher que tem. Se eu pudesse...
— Vamos, David!! — bradou o taxista do fundo das escadas, apontando para o relógio de pulso.
— Já vou, senhor Zé Pala — respondeu o estudante. — Bom, tenho que ir, D. Rita, adeus e até Outubro, se Deus quiser.
— Muito obrigado pelo mata-bicho, minha senhora — agradeceu o motorista, antes de ligar o motor ronronante do Opel Record.
— Ora essa, não tem de quê! Vão com Deus, senhor José — respondeu a D. Rita, depois de beijar o hóspede pela última vez.
— Se a Giola telefonar diga-lhe que foi a falar nela que eu me despedi do Estoril! — bradou emocionado, acenando de costas para esconder as lágrimas que lhe resvalavam pelo rosto.
— Deus escreve direito por linhas tortas, David! — gritou-lhe a senhora, do patamar.

E o taxi, avançando lentamente, transpôs o pórtico do pátio, desaparecendo rua abaixo. Ao passar na Azambujinha, o estudante sorriu e, fechando os olhos, encostou os caracóis avermelhados na mão, entre o assento e o vidro lateral. E a saudade, embalada pela mórbida reminiscência daquele Verão sensual veio instalar-se-lhe no coração, embebendo-o nas mil e uma recordações que o cérebro lhe devolveu morbidamente.

Amuado e pensativo, o Zé Pala dirigiu-se para a Brandôa, deixando o conterrâneo acabar de dormir o sono da manhã, ao som de uma das inúmeras fitas românticas que enchiam o porta-luvas do táxi. Balançado pelos buracos do estradão, o estudante bocejou timidamente e esfregou os olhos: o cheiro nauseabundo daquelas barracas de madeira fê-lo agoniar. O sorriso de uma criança de pé descalço foi espelhar-se-lhe na retina sonolenta, obrigando-o a olhar a realidade nua e crua sem pestanejar. Que miséria, meu Deus!
Ali a gente não vivia: vegetava apenas à flor da imundice, na fronteira da miséria, entre quatro tábuas salpicadas de cimento e óleo queimado, cercada pelos detritos e pelos restos da sociedade de consumo que, a setecentos metros, se pavoneava orgulhosamente. Que nojo! Lá em casa, no pátio que o tio Toninho brasileiro lhe dera, as capoeiras das galinhas eram bem mais limpas!
Mais adiante, dois tanques de água serviam de lavadouro colectivo, onde depois de as mães lavarem as calças remendadas dos pais, os filhos nadavam alegremente. Chocado, David pegou no bloco do taxista, arrancou-lhe uma folha e anotou os tópicos do cenário que acabava de descobrir.
Durante o regresso, o estudante ainda tentou aprofundar o conhecimento daquela realidade insalubre, mas os companheiros de viagem mostraram-se pouco loquazes. Naqueles olhares silenciosos e circunspectos via-se toda a dignidade do mundo. Persistir seria violar a íntima liberdade de quem, mais não tendo para viver dignamente, tudo fazia para não morrer cobardemente.

Uma eternidade depois, no planalto do Pópulo, sozinho com o Zé Pala, respirou, finalmente, de alívio: os ares dos pinheiros da terra natal, que adivinha na penumbra, viajando à velocidade da luz, fizeram-no renascer e suspirar emocionado. Saciadas as raízes da Saudade, que tão melancólica e maçadora viagem ressequiram, o pré-universitário pôde deslumbrar ao longe o clarão dos fachos de palha certamente empunhados pelos familiares e pelos amigos que o aguardavam-no orgulhosamente. Entretanto, cortada a luz eléctrica, o taberneiro fechara a tasca, que ficava a uns cinquenta metros da estrada, e viera ver aos curiosos, misturando-se no grupo que rodeava o senhor abade, o homem que convencera a senhora Luísa a deixar estudar o David, oito anos antes.

Finalmente, quando os faróis do Opel Record surgiram na curva do bairro do Ribeiro, a garotada, que nutria pelo estudante uma enorme admiração, desatou num alarido ensurdecedor que obrigou o padre a tapar os ouvidos.
— Ei, rapaziada, agora é ele! — gritou um garoto no paredão.
— Não é nada esse, seu pantomineiro! O carro do Zé Pala vem mais atrás — acrescentou outro, encavalitado no galho da cerejeira enluarada, seguindo os últimos hectómetros do táxi.
— Cala a loja, seu pançudo! — retorquiu o primeiro, ostentando raivosamente o facho.
— Amanhã, se te apanho, parto-te os cornos!
— Pst! Pst!!! Ei! vós aí, desçam cá para baixo e mais respeitinho, ouviram? Ai os meninos!... — gritou o regedor, imperial, empiscando ao pároco da aldeia.
— Deixa-os lá, Manuel, os catraios estão em pulgas — adiantou o prior.
— Em pulgas, senhor abade!?
— Nós vamos jogar ao Cadaval e com o David...
— Ah!, então é por isso?!
— É ele! É ele!!! — berrou a rapaziada, correndo para a estrada de facho em punho.
— Fujam para trás! Ó Chico, afasta essa canalhada senão o Zé Pala ainda atropela algum!
— Ei! Vá, todos para trás! Quem não obedecer vai para a mitra, ouviram?
— Essa era boa! — bradou o mais reguíla dos miúdos.
— Deixem passar a senhora Luísa — ordenou autoritário o regedor, sorrindo à prima.
O clarão vermelho fez-lhes descobrir os olhos de um anjo aureolado pelos faróis do táxi. E, precipitando-se nos braços abertos, o estudante pôde sentir o calor do beijo tímido e emocionado da mulher que lhe dera o ser. Mas como palpitava e chorava o coração da sua mãe! Os irmãos, esses, agarraram-se-lhe logo às pernas.
— Estás tão magro, filho! — notou a senhora Luisa, soluçando.
— Mas não, mãe, mas não! — respondeu o filho, abraçando-a demoradamente.
Derreando-se um pouco, o estudante encostou o rosto aos lábios do Jorge e do Toninho, respectivamente de quinze e nove anos, antes de beijar a maninha Adélia, de cinco, que se escondera intimidada atrás do avental da mãe. A emoção apanhou-o de surpresa e, saltando subitamente dos olhos maternais, contagiou também os seus. Envergonhado, respirou fundo e, baixando a cabeça, tirou um lenço do bolso.
Depois de enxugar aquela lágrima irreverente que lhe saltara das retinas encadeadas, o académico beijou humildemente a mão do pároco, a quem agradeceu, e apertou entusiástica, mas fugazmente as que lhe eram estendidas.
— Parabéns, David! — exclamou orgulhosamente o padre Ferreira.
— Só fiz o meu dever, senhor abade.
— Bom, até amanhã e boa noite a todos!
— Boa noite, senhor abade!!! — gritaram pequenos e grandes, acenando ao sacerdote que se retirou de lanterna em punho, protegido fielmente pela tuchê, uma cadela muito meiga que o seguia para todo o lado e se quedava sem latir nas patas traseiras diante da porta da igreja.
— Amanhã jogamos contra o Cadaval, David! — berrou o Pipo, empoleirado no muro da horta do senhor abade.
— A rapaziada está animada, David: contigo, com o Valdemar e com o Arménio, dizem que são favas contadas — acrescentou o taberneiro.
— Então eles já vieram? — perguntou o estudante, distribuindo mãozadas e palavras de gratidão à direita e à esquerda.
— Já, mas foram convidar o Vila Pouca ou o Vidago para vir aqui jogar no dia da festa — respondeu prontamente o regedor.
— Ui.!, eles são malucos, senhor Manuel?! O Vila Pouca e o Vidago andam na terceira divisão e qualquer deles deve ter uma selecção...
— Qual o quê, nós este ano não temos medo deles! Venha quem vier, eu aposto um cabrito com quem quiser. Os emigrantes têm uma equipa lá no Luxemburgo e parece que já vão com vinte e talo jogos sem perder — adiantou o senhor Filinto.
— Eles têm treinado muito?
— Todos os dias, depois da sesta, até a lua se deitar ou bola se perder atrás das giestas. Aquilo é que são valentes...
— Mãe, não pegue nessa mala que é pesada.
— Ó Luísa, se for preciso, deixo-te os embrulhos junto das escadas — avisou o Zé Pala.
— Ei!, vós aí, levai as coisas do David a casa — ordenou autoritariamente o taberneiro.
E logo meia dúzia de rapagões e de miúdos se precipitaram sobre os embrulhos. Sorrindo, despediu-se de todos e seguiu o clarão enluarado da última tocha de palha. Entretanto, os manos e a mãe tinham ido abrir a cancela da varanda aos moços que lhe transportavam os calhamaços de sete anos de liceu. Generosa como era, a senhora Luísa pagou-lhes a gentileza com rebuçados que recebera da Lúcia, uma amiga que vivia na Alemanha. Felizes, os rapazes lá se foram, deixando o David matar as saudades em paz.

Depois das Festas de Santa Bárbara, no terceiro domingo de Agosto, as férias, apesar das romarias das vizinhanças, dos jogos de futebol e das gentilezas dos emigrantes, que tanto se orgulhavam de o levar para todo o lado nos Simcas, nos Fords-Capri ou nos Peugeots, começaram a tornar-se melancólicas e tristes: o seu coração ficara no Estoril. Içado pelo pároco aos píncaros da notabilidade concelhia no ano em que, seminarista ainda, guiara o Compasso Pascal pelas ruas e bairros da vila, David continuou o mesmo rapaz simples, amável e serviçal que todos conheciam.

Ajudando a mãe como podia nas árduas tarefas do campo, quis esquecer os seus amores do fim de ano escolar e forjar uma carapaça que resistisse às fraquezas da alma e aos solitários assédios da paixão, dizendo-se que, afinal, o Estoril e o Fiolhal não tinham nada em comum, a não ser que ficavam ambos em Portugal, mas o vírus do amor há muito que o trazia em gestação no coração.
Nas duas semanas que passara com o pai, emigrante em França, abordara as hipóteses mais viáveis para poder singrar na vida e ser alguém, contudo nenhuma o entusiasmou tanto como o do sonho da advocacia. O senhor Alexandre, que até pensava que, com o curso complementar dos liceus, o David já poderia arranjar um bom emprego, vendo nos olhos do filho o clarão da felicidade, não sentira a coragem, nem o direito de o dissuadir de tal propósito e lá se conformou à ideia de continuar em França ou no Luxemburgo, para onde tencionava mudar-se, por mais cinco ou seis anos até que ele se formasse.

No turbilhão dos sonhos cor-de-rosa, David só pensava em desforrar-se da crueldade do destino e estudar, estudar muito para levar à barra dos tribunais os larápios que lhe vigarizam a família, forçando a mãe a vender parte da herança e obrigaram o pai a trilhar os caminhos da diáspora lusitana, depois de ter passado três anos nas catacumbas auríferas das Minas dos Mouros em Campo de Jales e quatro nos escombros de volfrâmio das Minas da Panasqueira, na Barroca Grande, donde emigrara para França sem dizer nada à mulher em 1969.

Coitado, desde que regressara do Rio de Janeiro, o emigrante passou-as boas!
“ Terminado o serviço militar, o Alexandre, então com vinte e três anos, decidira casar-se com a Luísa, a mais mimada das donzelas da terra, que era a menina dos olhos do senhor António Macedo, herói da Primeira Guerra Mundial e lavrador muito abastado, cuja esperteza no negócio do gado lhe permitira amealhar uma fortuna em terrenos de cultivo, vinhas e olivais pela Terra Quente, sobretudo no concelho de Murça, nomeadamente nas aldeias de Martim, Porrais, Palheiros e Candedo, além do vizinho Cadaval.

Os Pereiras, família de pastores ao serviço dos senhores da terra, tinham emigrado para o Brasil no fim dos anos trinta, fixando-se na Cidade Maravilhosa, onde o senhor Luís era cobrador da Light, a multinacional que geria a electricidade e os transportes urbanos do Estado da Guanabara e do Rio de Janeiro. Depois da 2ª Guerra Mundial, o cobrador, que granjeara a amizade de dezenas de patrícios, abriu uma Pensão Familiar na rua Miguel de Frias, não longe das obras do maior estádio de futebol do mundo: o Maracanã, em construção para a Copa de 1950. Sabendo-se minado por uma doença terrível, o avô decidira mandar a mulher, a Marquinhas Rosa, com os filhos para a terra, onde, entretanto, graças aos Cruzeiros amealhados ao longo daqueles anos por terras de Vera Cruz, comprara alguns terrenos rústicos e construíra uma casa. O pai, que ainda chegara a frequentar o colégio no Brasil, regressava ao Fiolhal um homem feito, mas também cheio dos vícios da capital carioca: o tabaco, o jogo e o cinema, além de uma lábia e umas manias que os ricos da terra não possuíam e muito lhe invejavam. Era um prosa, o filho do Luís Martins Pereira! Não admira pois que, quando o senhor Macedo soube do namoro da filha com tal marmanjo, tudo fizesse para lhe arranjar melhor partido entre os herdeiros dos amigos da Terra Quente. E bons pretendentes não faltaram, mas era do Alexandre que a Luisinha gostava e nada feito. Desgostoso com a caturrice da caçula, o senhor António Macedo não lhe deu o consentimento, nem gastou um tostão com o enxoval da filha que, com a ajuda da tia Angelina que vivia em Cerdeira, se casou em Alfarela de Jales no dia 20 de Janeiro de 1955, com dezoito anos incompletos. A ira e o desgosto do herói de La Lys, disse-lhe a avó materna, acabou nesse mesmo dia à noite, quando a tia, depois de um almoço melhorado na sua casa, alugou um táxi e veio apresentar os pombinhos ao cunhado, mas na realidade as pazes só foram feitas no domingo do baptismo do David, nascido na quarta-feira anterior, 24 de Novembro desse mesmo ano.

Nessa época, a melhor taverna do Fiolhal pertencia a outra tia da Luisinha. Para ajudar a filha, o senhor António Macedo, que arrastava penosamente as sequelas dos gases respirados nas tranqueiras de Verduns, decidira dar-lhe uma ajuda, convencendo a cunhada a deixar o negócio à Luísa. A Angélica, que até simpatizara com o Alexandre, bastante engenhocas, muito educado e senhor de uma bela caligrafia, lá aceitou o conselho e passou a taverna aos sobrinhos, pois não teria tempo de gastar o pé de meia nos dias que Deus lhe daria.
Mas uma década depois, os anos cinquenta pagavam ainda a factura da Grande Guerra: os campos, donde tudo se extraíra, pareciam cansados, estéreis; o povo, tão habituado a sacrifícios, sobrevivia como podia; os negócios faziam-se a crédito e era ainda a palavra de honra quem mais valia. Os tostões, esses, quem os tinha guardava-os para quando surgissem as maleitas, se tivesse que ir ao médico, ou se caísse uma cama do hospital.

Ingénuos, mal aconselhados pelos cunhados e desfalcados pelos clientes que compravam tudo a crédito, o Alexandre e a Luísa caíram nas mãos de um fornecedor tão ganancioso que, depois de lhes vender o Céu e a Terra, não os deixou ganhar fôlego para que pudessem pagar as dívidas. Mais que a amargura da falência e a perda de parte da herança paterna, foi o escárnio e o regozijo cínico, de quem mais favores lhe devia, que deixaram o coração da pobre Luísa em pedaços. Não, ela não lhes merecia tal cobardia e tamanha ingratidão.
Pobre menina rica! Depois de curar em silêncio aquele opróbrio, ainda arranjou forças para lutar e dar aos filhos um quinhão invisível que os gananciosos e arrogantes, por mais contos de réis que juntassem, jamais poderiam comprar: a educação e o saber. É que um burro carregado de libras só é doutor no reino dos asnos... Depois, enchendo-se de coragem, o marido desceu às profundezas das minas, onde recuperou orgulho e coragem para dar o pulo para França, e a vida começou a sorrir-lhes... ”

No primeiro fim-de-semana de Setembro, David aceitou um convite para ir jogar futebol na aldeia do Pópulo, a quatro quilómetros do Fiolhal, onde se realizavam os festejos em honra da Nossa Senhora da Boa Morte, uma das maiores romarias das redondezas, mas nem os urras pela vitória sobre o Murça e o Alijó, nem os convites das moças para dançar no arraial lhe dissiparam a tristeza que trazia na alma. Por detrás dos seus cabelos encaracolados escondia-se um olhar insensivelmente apaixonado por uma alma do outro mundo. Mesmo as colegas da escola primária, que serviam em Lisboa ou no estrangeiro e agora voltavam à terra mais ricas e mais chiques, de olhos e lábios pintados e pulseiras e anéis de ouro, o cativavam como antigamente, quando jogavam aos pares no adro da igreja ou debaixo dos frondosos castanheiros do souto da escola. Como é que um moço tão querido e tão rodeado podia sentir-se tão triste. Se não o conhecessem como conheciam, diriam que eram manias, mas manias não eram seguramente. Quantas delas não o puxaram em vão para dançar e gozar a vida?! E quanto mais as raparigas o procuravam e se encostavam, mais ele as evitava e fugia delas. Porquê? Que raio de feitiço lhe teriam feito? Estaria ele apaixonado por estudanta ou uma doutora?
Pobre rapaz!


LMP - Herói em Fuga - Adeus até Abril !
nb: romance inédito, escrito em 1979 !

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