domingo, 16 de março de 2008

Caprichos do Amor: Epílogo !


Epílogo





Na primeira semana de Outubro, quando o ano escolar começou, Rui e Dina já moravam num apartamento, de três assoalhadas, no 5º andar, de um prédio com vista para o mar, no bairro residencial de Miraflores, em Oeiras.

Num mês apenas, o Dr. Félix, que, para evitar o opróbrio da sociedade, oficializara o divórcio em meados de Setembro, não os deixara gastar um tostão, suportando, generosamente, todas as despesas, como forma de penitência, na condição de ser o padrinho do netinho ou da netinha lourinha como a Alice e, de passarem juntos, em Santo Amaro, um dia por semana pelo menos. Do testamento, feito no dia em que, julgando-se condenado por uma doença incurável, quase se suicidou, não mudou uma vírgula, legando, assim, todos os seus bens ao Romeu e à Julieta da vivenda que teriam de cuidar da senhora Noémia até que Deus a chamasse.

Entretanto, depois que se mudaram para Miraflores, Rui passou a colaborar no Diário, escrevendo, sobretudo, para o Cantinho dos Poetas, influenciando, também, as crónicas da célebre jornalista, que, pouco a pouco, foi conquistando a simpatia da juventude mais inconformada com a situação económica do país, que ia de mal a pior, desde que, em 1960, estoirara a maldita guerrilha em África, até então, esteio do regime de Salazar.

No solar do Monte Estoril, Cristina guardava, religiosamente, no sótão, onde, moralmente, perdera a virgindade, num quadro, um quadro com um desenho seu a decorar a Prece Proibida, poesia que Pat lhe oferecera, escrita em caligrafia de ouro, para jamais esquecer o Primeiro Amor, capricho que os pais, pensando no desgaste do tempo, julgavam efémero, pois pretendentes não lhe faltariam logo que entrasse para a faculdade.

Nos fins de Setembro, no dia em que fora acertar as coisas com o director do colégio, Rui Patrício cruzou a Tânia no patamar da praia do Tamariz e, achando-a tristonha, reconfortou-a, dizendo-lhe que ele não mudara nada e que continuava a ser o mesmo rapaz sonhador, a cumprir, porém, irremediavelmente o seu destino. Ao sorriso melancólico da moça, que, entretanto, falara várias vezes com a inconsolável amiga, Rui respondeu com um beijo fugitivo no rosto.

Em Santo Amaro, onde vinha amiúde, a senhora Noémia não parava de lhe dar conselhos, de lhe preparar os biscoitinhos, que a Dina nunca soubera fazer e de perguntar maliciosamente se já tinham feito o bisneto, porque a idade não perdoava e ela ainda queria ser a sua ama. E o Ruizinho sorria e continuava a mesma criança mimada que lhe puxava carinhosamente o poupo, como ela tanto gostava.

No primeiro dia de aulas, Dina, depois da visita médica, foi esperá-lo. Apenas a viu, de pé, sensivelmente no mesmo sítio, onde, no memorável 17 de Julho, o padrinho o aguardava, Rui parou, levantou os olhos ao Céu e, vendo que ele também lá estava, debaixo do mesmo pórtico, sorriu e desatou a correr ao seu encontro como um maluquinho e beijou-a na boca, desencadeando uma algazarra tão infernal que os muros seculares, se não ficaram surdos jamais se esquecerão de tapar os ouvidos, quando a Dina o vier esperar.

Idolatrado pela meninada da primária e invejado pelos colegas do liceu, Rui lá partiu orgulhoso e feliz, protegendo bem a sua deusa, para apanhar o comboio no Tamariz. E quando, na carruagem, Dina, pedindo que se agarrasse, lhe confirmou os seus pressentimentos, o jovem órfão abraçou-a e beijou-a perdidamente, chorando diante de todos como um menino que acabava de realizar o maior dos sonhos: ser Pai!

Os passageiros, estupefactos, respeitaram instintivamente aquele ápice de felicidade, virando-se para que eles tivessem aquele pedacinho de privacidade que transforma o ápice em eternidade, quando o coração de um homem e de uma mulher pode palpitar e consumir livremente aquele fogo que arde sem se ver e tanto nos faz sofrer se não puder morrer.

Em Santo Amaro, quando os viram correr pela calçada, os velhotes sentiram o coração pular-lhes do peito e, impelidos pela voz da alma, desceram aflitos para o jardim, qual pedaço do Éden, que um Sol resplandecente aureolava divinamente. Solevando a vénus fecundada, Rui Patrício, aproveitando o silêncio das gaivotas comovidas, gritou bem alto, para que todo o mundo ouvisse:
― O seu netinho já vem a caminho!
― Obrigado, Alice! Obrigado, meu Deus! ― bradou emocionado.
E, abrindo-lhes os braços, beijou-os na testa, observado pela governanta lacrimejante que, depois de os felicitar entusiasticamente, acrescentou maliciosa:
― Seus malandros!
Rui e Dina enxugaram as lágrimas com os dedos, sorriram e, escondendo desavergonhadamente o rosto com as mãos, uniram as suas bocas, num beijo apaixonadíssimo que fez piscar os avós.

E as gaivotas, quebrando a mudez, festejaram também a feliz novidade, entoando um coro pipilante, que só acabou, quando os adoráveis papás, acenando-lhes, entraram orgulhosamente na vivenda dos Caprichos do Amor...

Nove anos depois...


A Profecia


continua em

A Força do destino

Lud MacMartinson
LMP, LUXEMBURGO, 1996

Caprichos do Amor: Sábado, 18 de Agosto ( 33º DIA )


Sábado, 18 de Agosto 
( 33º DIA )




Apenas acordaram, Rui e Dina, lavaram-se, vestiram os jeans e desceram a fazerem-se cócegas para a cozinha, a fim de aprontarem o pequeno almoço, ligando o gira-discos. Nilton César, um cantor brasileiro, fazia muito sucesso com Espere um pouco, um pouquinho mais, canção que batia todos os recordes de venda, em Portugal, e que Rui sabia de cor.

Enquanto Dina mexia nas panelas e no fogão, ele, agarrando-se-lhe por detrás, não resistindo ao seu olhar de víbora e ao charme sedutor, lhe cantava sensualmente ao ouvido, arrepiando-a toda. E como se não bastasse, o afável cupido trauteou uma outra, Rose Garden que os Fevers, grupo do longínquo país irmão, adaptou como Mar de Rosas. Dina, que, de vez em quando, também atinava com o lá, experimentou retribuir-lhe a amabilidade, cantando-lhe Quieres ser mi amante? do popular cantor espanhol, Paulito Ortega, mas, não conseguindo, perguntou-lhe, séria:
― Queres ser meu amante, Rui?
― Amante não, marido.
― Queres, então, dizer que me estás a pedir em casamento?
― Sim, queres casar comigo, Dina?
― Quero Rui e prometo ser fiel, amar-te e honrar-te até à eternidade.
― Eu, minha feiticeira, prometo ser-te fiel, fisicamente, mesmo quando a minha fantasia me atraiçoar, nunca deixarei de te amar ainda mais...
― Juras, Rui?
― Que Deus me mate, não só antes de eu te atraiçoar, mas também se tu quebrares este juramento, antes de mim, porque o fim será melhor, do que saber-te de outro, meu amor...
E, abraçando-se, beijaram-se perdidamente na boca, até perderem o fôlego.

Depois do café, Rui subiu ao seu antigo quarto, para ir buscar as poesias, que deixara na gaveta da mesinha-de-cabeceira, mas a porta estava fechada à chave. Forçando a mãozeira, como esta não abrisse, espreitou pelo buraco da fechadura e descobriu o padrinho a dormir. Cauteloso, recuou e foi avisar a Dina, pedindo-lhe que caprichasse no almoço, porque o pobre, vestido como estava, só podia ter viajado de noite e chegado pela manhã.
Entretanto, pelas treze horas, o Dr. Félix levantou-se e desceu, atraído pelo cheirinho de um arroz de tomate como ele adorava. Rui, ansioso, ouvindo passos, aguardou-o envergonhado, nem sabendo como o enfrentar.
― Bom dia, padrinho! Dormiu bem? ― perguntou acanhado, bejando-o filialmente.
― Bom dia, meu filho! E a Dina?
― Estou aqui, Félix! ― respondeu a jornalista, beijando-o também no rosto.
― O senhor falou com alguém da aldeia?
― Não, Rui Patrício. Por acaso, tive sorte. Entrei no cemitério, falei com a madrinha Alice, durante uma hora, assentado na laje de mármore, deixei o ramo num vaso de vidro, que comprei em Vila Real e fui para o Bom Jesus de Braga.
― Para Braga? Por onde?
― Olha, passei em S. Bento da Porta Aberta, visitei a barragem dos Pisões...
― Que viagem cansativa, padrinho!
― Eu preciso de mortificar o corpo, meu filho, e fazer penitência, pelo mal dos meus pecados.
― Oh, mas que pecados, padrinho? O senhor nunca fez mal a ninguém!
― Deus sabe que fiz...
― E em Braga, ficou lá muito tempo?
― Pernoitei lá, numa estalagem bem bonita, por acaso, de quinta para sexta.
― De quinta para sexta?! E na quarta, onde dormiu?
― Ah, na quarta, depois de onze horas de viagem, fui dormir a uma pensão de Vila Real, na rua Direita, a Excelsior ― esclareceu cabisbaixo, pousando o guardanapo, nos joelhos, e bebendo um copo de água.
― Quer dizer que o senhor, esta noite, não parou para dormir, pois não?
― Se quer que lhe seja franco, não. Eu julguei chegar, pelas onze horas ou meia-noite, mas, sozinho, deu-me a morrinha, como diz a senhora Noémia.
― Porque é que se foi embora, sem nos avisar, padrinho. Nós tínhamos ido consigo, sabe ― disse condoído, acariciando a mão do arquitecto.
― Pois é, Félix, o Rui tem razão. Mal, como esteve, podia dar-lhe...
― Eu bem pedi a Deus que me chamasse, diante da Alice, para dar menos trabalho, mas, para ser feliz com a Alice, no Paraíso, tenho que fazer penitência.
― Vá, não falemos mais disso, padrinho, coma, senão o arroz arrefece.
― Bom apetite, Félix!
― Obrigado, igualmente para vocês, meus filhos ― agradeceu sorridente, começando por provar o bife de vitela.
E durante a refeição não disseram mais nada, para não se emocionarem. Depois da sobremesa, no terraço, o arquitecto voltou a acender o cachimbo e fumou, fumou, nervosamente, até o tabaco se consumir e se desfazer em fumo, que, ora às rodelas, ora às bufadas, se dispersou pelo ar abafado. Pouco depois, o arquitecto, mais confiante e reconfortado pela atenção do afilhado, foi telefonar ao Dr. Edgar, que o convidou a ir distrair-se um pouco, ao Monte Estoril, saindo, imediatamente, após ter avisado o Rui e a Dina, que liam e ouviam música no canapé. Largando o romance, o adolescente desatou a correr e pediu ao padrinho para saudar os amigos e lhes dizer que a sua maneira de ser e de pensar não mudara nada e que, em breve receberiam uma carta dele, assim como a Cristina, a quem desejava as maiores felicidades. Quanto ao resto, o padrinho era livre de fazer o que melhor entendesse. Da janela, escondida por detrás das cortinas, Dina, pelo movimento dos lábios e força da expressão, percebera tudo e comoveu-se. Depois, apalpando as retinas, para que ele não desse conta, assentou-se, adoptando a mesma posição.

Chegando, ofegante, Rui contou-lhe logo o teor da conversa. Dina, não resistindo, confessou-lhe, então, que vira tudo e quase chorara, pondo em dúvida, não a sinceridade do seu amor, mas a compaixão, que ainda poderia sentir, pela Cristina. Foi então que, ele lhe contou a história dos avôs dela, dizendo que, se o destino quisesse, verdadeiramente, que eles, Cris e Pat, se reencontrassem um dia, de nada adiantaria querer forçá-lo, agora, pois, de uma coisa estava ele seguríssimo: é que seria ela, Dina, a mãe do seu primogénito e mais ninguém, porque o destino os marcara, com o mesmo ferro para sempre e, casados ou não, esta paixão não morreria, sem deixar rebentos...
E aquela franqueza e convicção inquebráveis, abalaram e precipitaram, definitivamente, por terra, em efusivas lágrimas, as nuvens duvidosas, que ainda pairavam no coração desta mulher, traumatizada, para quem a felicidade presente tudo fazia esquecer e perdoar. Beijando-se loucamente, não resistiram ao apelo estonteante da paixão e, esquecendo-se de tudo e de todos, uniram-se de corpo e alma, num transcendental concerto de amor, que se prolongou, furiosamente, pela sesta fora.

À noitinha, quando regressou, o Dr. Félix parecia um ser novo, renovado. A sua alma transpirava autoconfiança e alegria de viver, o que fez o afilhado dizer que para ter aquela paz, só poderia ter-se confessado ao Cardeal, já que o papa, Paulo VI, estava em Roma. O arquitecto sorriu e disse-lhes que não fora ao cardeal nem ao padre que ele se confessara, mas aos amigos e que a compreensão que eles lhe haviam testemunhado valia mais que todos os perdões da confissão, na igreja. Agora, que o Edgar e a Susana, os seus anjos da guarda que, vigilantes, nunca lhe haviam faltado, sobretudo nas más horas, conheciam tudo, compreendiam e respeitavam a sua decisão, já tinha, outra vez, vontade de viver, pois, confessou, naqueles dias, tentara suicidar-se de várias maneiras, mas a sua Alice, tal anjo protector, guiara-lhe o Mercedes até casa.

E a conversa na sala da televisão, sob o olhar complacente da Alice, para quem se voltara, tantas vezes, como que a pedir ajuda e protecção, prolongou-se pela noite fora, até que o pesadelo e as dúvidas deixaram de molestar e acusar as suas almas pecadoras, perdoando-lhes tudo, para que a felicidade, que todos desejavam, assentasse, definitivamente, arraiais nos seus corações. Quando se beijaram, antes de irem dormir, os anjos do Céus, regozijando-se e espelhando-se na pureza das almas deles, irromperam num concerto de aplausos, que o sorriso inocente transformou em aura perene.

Na mansarda, abraçados, em oração, Rui e Dina, depois de um beijo sagrado, que os colocou, face a face, a olharem-se bem um ao outro, olhos nos olhos, mãos nas mãos e pernas entrelaçadas, sorriram e choraram e acariciaram e rezaram e adormeceram a falar, pessoalmente, de tu a tu, com Deus.

E a felicidade, dormindo inocentemente no meio deles e ecoando infinitamente pelos seus corações puros e bem-aventurados, não os abandonaria jamais, cumprindo os desígnios do destino.

continua em: Epílogo

Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

Sexta. 17 de Agosto ( 32º DIA )


Sexta, 17 de Agosto 

( 32º DIA )




Nesta ensolarada manhã, foi o cupido, quem, obcecado, cansado de velar, pela vénus, horas a fio, de dia e de noite, e de se ter deleitado com os mais estonteantes momentos de amor, da vida deles, acordou mais tarde, inebriado pelo aroma do café, no bule de porcelana, que Dina, vestindo apenas o manto de musselina, pousara na mesinha de cabeceira. Depois, ajoelhando-se, no tapete, diante do mancebo adormecido, beijou-o vagarosamente no rosto, no pescoço e nos pêlos do peito, para, fazendo-lhe cócegas, de mansinho, o despertar. Aquelas carícias sedutoras quase fizeram arrefecer o café, mas, finalmente, incomodado pelas unhas atrevidas da vénus acalorada, que lhe tacteou a tumescência matinal, Rui sentiu o fio do adorável sonho quebrar-se e bocejou:
― Meu a...
― Meu a... ― repetiu Dina, como se fosse o eco sonolento do varão.
― Ah! Ai!
― Dormiste bem, amorzinho? ― indagou sexy, deixando cair o manto de musselina ao sobrado.
― Vem, gostosa, vem! ― implorou maravilhado, seduzido pelo busto ondulante, oferecendo-lhe a mão e deixando-lhe o lugar cálido dos lençóis.
― Ai que quentinho!
― Ui que boa tu és , Dina! Só me apetece comer-te toda, todinha, menina...
― Mas come, morde, chupa, come, isso, assim! Ui, Rui, âaaah-âaaah!... Ui!
― Isso, assim, abre... ― rogou sensualmente, agarrando-lhe as nádegas.
E, tal missionário, em oração, iniciou um violento vaivém pélvico que fez gemer e morrer de prazer a jornalista. Ele, generoso até ao limite da resistência viril, só parou quando, alagado pelo suor dos seus corpos e as explosões vaginais, sentiu que, por não ter urinado primeiro, lhe seria impossível atingir o tão desejado orgasmo. Saltando lestos da cama, correram para o banheiro, tomaram um duche à pressa, e voltaram para beberem o café, mas, como estava frio, decidiram arranjar-se e pentear-se melhor e ir fazer outro, tranquilamente, pois tinham o dia todo por conta deles. Até à uma hora, eles arrumaram o quarto, deram uma limpeza nos móveis, lançaram-se galanteios mútuos, que, em alta voz, ecoavam pelos cantos da vivenda e faziam corar os muros, tão descarados eram os propósitos.

De tarde foram passear, de mão dada, pelas ruas do Estoril, onde almoçaram e viram um peuplum romanum, The Robe , a Túnica, que muito os comoveu, por lhes recordar os tempos dos primeiros mártires do Cristianismo e do poder mágico dos símbolos da nova Fé, como foi o caso da túnica de Jesus, que, caindo nas mãos de um legionário romano, o converteu, fazendo dele um acérrimo defensor dos Cristãos contra o Império Romano.
Depois, enquanto admiravam os jardins e os turistas, falaram do presente e do futuro, do regresso do arquitecto e da senhora Noémia, do trabalho e, como não podia deixar de ser, do julgamento popular e social, apenas a história de amor deles, por enquanto no segredo dos velhotes, se soubesse. Decidiram propor ao Dr. Félix, logo que ele chegasse, para salvaguardar a honra e as aparências, um divórcio amigável e, se preciso fosse, o abandono, por meses, da vivenda, pelos menos até que as coisas se clarificassem. Rui, decidiu, ainda, enviar, na segunda-feira, à Cristina e aos pais, as duas cartas que escrevera, no dia em que tivera a amargurada confirmação, que a herdeira dos Sampaio fora uma paixão impossível, que surgira fora do tempo para ambos, infelizmente.

Quisera o destino colocar no seu caminho uma alma marcada pela fatalidade, como a sua. Mas eram caprichosos e imprevisíveis os caminhos do amor?! Como são insondáveis e misteriosos os desígnios de Deus, que depois de tudo lhe roubar, quando mais precisava, por tudo se quis perdoar, tudo lhe devolvendo, tão repentinamente, a ponto de o perturbar profundamente, para, por fim, o fazer renunciar. E o resto do dia foi passado, embalados pelas melodias que mais preferiram, a reflectir e a amar, ora deitados no canapé até ao pôr do sol, ora assentados nos cadeirões de vime do terraço, quando a noite envolveu Santo Amaro, onde o poeta, acedendo aos pedidos langorosos da musa inspiradora, releu a Prece Proibida ― QUERO ― , ligeiramente corrigida, numa voz sensual e rouca, que, bafejando-lhe os seios, a fez arrepiar e contorcer-se de prazer...


Quero beijar a febre do calor do teu regaço

e ouvir a tua voz murmurar baixinho com fervor
Quero perder-me lânguido no fragor do teu cansaço
a implorar mais, sempre mais e muito mais amor

Quero sentir o teu coração explodir no meu peito
a pedir perdão e compaixão por tanta leviandade
Quero bafejar o ardor da tua nudez em doce leito
e beber a excitação da tua paixão em liberdade

Quero desvendar o mistério desse olhar ferido
a vaguear nas marés deste pensamento libertino
Quero saciar a sede ardente no licor da tua libido
e ancorar estes lábios trémulos nesse busto divino

Quero fenecer exangue na doçura dos teus cabelos
a respirar o aroma erótico do teu fruto em flor
Quero viver à sombra desses jeitos tão singelos
e colher ainda a felicidade nos jardins do teu amor

Quero depor nas tuas mãos este coração em ferida
por favor, não o prives do teu carinho ou compaixão
por ti, ele viveu errante, tal peregrino sem guarida
e chorou tantas lágrimas de desespero e solidão...


― É verdade, meu amor ― disse o poeta, emocionado, dobrando a folha.
― Eu sei, querido, eu sei! ― murmurou a musa, beijando-o, docemente.
― Vem, Dina, vem... ― cochichou langoroso, dando-lhe a mão.
Mudos, olhando-se apenas, eles levantaram-se subiram para a mansarda...

continua em: Sábado, 18 de Agosto ( 33ºDIA )

Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

Caprichos do Amor: Quinta, 16 de Agosto ( 31º DIA )


Quinta, 16 de Agosto 

( 31º DIA )




Acordando por volta das dez horas, Rui Patrício, vendo a Dina dormir, como uma pedra, saiu, sorrateiramente, da cama, e sem fazer barulho, desceu, para a cozinha. Vendo que faltava pão, correu à padaria, comprou também seis pastéis de natas, quatro bolas de Berlim e dois mil-folhas e, ainda um ramo de orquídeas, na florista da estação.
Depois, em casa, espremeu meia-dúzia de laranjas, fez café e, pousando tudo na sala de jantar, correu as persianas, para que a claridade do feriado entrasse. Antes de subir, escondeu o ramo, na sala da televisão, e foi acordá-la.
Pé ante pé, abeirou-se da cama e, beijando-a, começou a fazer-lhe cócegas.
― Hum! Oh, deixa-me dormir, meu amor! ― resmungou a dorminhoca.
― Não durmas tudo, meu amor! ― implorou meigo, descobrindo-a lentamente.
E correu a cortina, encandeando-a, com o brilho do Sol.
― Que horas são, querido?
― Faltam vinte para as onze, Dina.
― Credo, já tão tarde?!
― Vamos tomar o café?
― Óptima ideia, Rui! ― aplaudiu, vestindo a robe de musselina turquesa.
― Então anda.
― Ei, espera por mim!
― Não espero nada, o café pode arrufar - desculpou-se ele, adiantando-se.
Dina soltou um desabafo frustrado e, zangada, correu atrás dele.
Mal surgiu no fundo do corredor, ele trauteou a marcha nupcial tãnrarãm, naranãm..., que a fez comover-se profundamente e abraçá-lo. Pegando-a pelas nádegas, Rui Patrício mandou-a fechar os olhos e levou-a nos braços, até à sala. Surpreendida, Dina beijou-o furiosamente na boca.
― Cuidado, não me mate! Vá, faça o favor de assentar essa bunda gostosa e volte a cerrar bem essas pálpebras, menina, senão... ― ameaçou risonho.
― Está bem, sua alteza ― disse brincalhona.
― Agora, um, dois, três! ― exclamou decidido.
― Uah! Orquídeas! Como são belas, Rui! Gastaste...
― Tchut, para a mais bela de todas, nada é de mais, meu amor! ― disse galanteador, estendendo-lhe o ramo e beijando-a, na boca, com uma emocionada ternura e um olhar, cândido, perdidamente apaixonado.
Surpreendida primeiro, estupefacta depois, Dina não resistiu e chorou, de felicidade, irrigando a musselina, com as lágrimas, que lhe resvalavam, sinuosas e fluidas, pelo rosto, atónito. Mas, aos poucos, com o carinho do Rui e a doçura das natas, o seu coração recuperou o ritmo e começou a bater, as pulsações normais. E os seus olhares, fascinantes, disseram-lhes tudo, sem que, para isso, fosse necessário repetir ou traduzir o mínimo gesto. A felicidade tudo sintonizava em perfeita simbiose.

Por volta do meio-dia, depois de lavarem a louça e arrumarem o quarto, eles tomaram o comboio até ao Cais do Sodré, na Baixa Lisboeta, refazendo o trajecto, que Dina percorria, quotidianamente, para ir trabalhar. Rui, que, de mão dada, afixava, no olhar, todo o orgulho, que sentia, teve a sensação que, na automotora, as pessoas, sendo estranhas, se estimavam, admiravam e se desejavam muito mais e, inevitavelmente, mentalmente, reflectiu na cobiça que a sua amada, assim, tão sedutora, teria suscitado em milhares de passageiros e um ligeiro sentimento ciumento apareceu nas suas retinas.
Depois, pelas ruas da Baixa Pombalina, quando procuravam um restaurante, para comerem qualquer coisa, antes de irem ao cinema, apercebeu-se que, ali, a percepção era outra: as pessoas cruzavam-se, indiferentes e quase nem se olhavam, prosseguindo, cada uma, a sua vida, secretamente, escondendo as alegrias e as tristezas ou a opulência e a miséria, num vaivém infernal, como se todos tivessem pressa de viver.

Perto de Santa Apolónia, entraram num restaurante e, assentando-se numa mesa para namorados, face a face, bem lá no fundo da sala, encomendaram dois bitoques, para não perderem a primeira sessão da tarde.
Às duas horas, já estavam, confortavelmente instalados, à espera que o filme de terror começasse. Fora Rui quem o escolhera, para, melhor, poder sentir e abraçar a sua deusa, aflita e aterrorizada, na escuridão do City II, descobrindo novas afinidades com aquela que, pensava, seria a mãe dos seus filhos.
Durante o retorno, mal se falaram. Sozinhos, numa carruagem, o balanceamento aninhara-os um no outro, a tirar o cochilo da sesta.
Na vivenda, mal trancaram as portas, foram aduchar-se, para se livrarem do pó e do suor e saciarem a libido renascente, espevitados pela nudez e a água tépida, do chuveiro, que lhes caía em cima. Mais tarde, na cozinha, Dina fez uma sopa knorr, que comeram com dois moletes, depois de matada a fome, com sanduíches de queijo e presunto Rui, sentindo-a bastante cansada, mandou-a ir descansar para o canapé, enquanto preparava o café. Radiante, segurou, cuidadosamente, as taças, na bandeja, e dirigiu-se para a sala, mas, oh, coitadinha!, ela, verdadeiramente exausta, já dormia. Recuando, pé ante pé, ele trouxe tudo de volta, para a cozinha, e bebeu o seu café. Depois, lavando e secando a louça, arrumou tudo muito bem e foi balançar-se, no cadeirão de vime, no terraço, fitando o horizonte, com o seu olhar enigmático. E as horas passaram, sem que a Dina acordasse. Assentado, no sofá, diante dela, Rui ficou mais de uma hora a vê-la dormir, a mexer os lábios, a tremelicar, de vez em quando, e a respirar, descobrindo-lhe os seios ondulantes e as pálpebras negras.
Pelas onze horas, instalando-se no cadeirão do escritório, apenas com o candeeiro da escrivaninha aceso, o anjo tentou, traquinou a musa, mas ela não acedeu ao desiderato, intrínseco, do poeta, suscitando-lhe uma enorme frustração, logo sublimada pelo olhar feiticeiro da Dina que, como há um mês, lá estava a desafiar, sobretudo, os varões da vivenda.

Por volta da meia-noite, cansado de esperar, pela bela adormecida, o principezinho semeou-lhe um beijo, na testa, e, procurando uma almofada, deitou-se na carpete do sobrado, sem, contudo, conseguir dormir. Entretanto, Dina acordou e sorriu, vendo o seu guarda costa, que fingia dormir. Ajoelhando-se, então, a seu lado, ela beijou-o e gritou:
― Ai! Oh! Pregaste-me cá um susto, Rui! ― confessou aliviada, deixando-se morder e cair sobre ele, atraída pela força do abraço varonil.
― Então, querida, vamos?
― A cama é bem melhor, não é?
― Sobretudo quando eu estou por cima desses...
― Cuidado, não os apertes, que dói - disse ela, protegendo os seios.
E, erguendo-se, lá foram para a mansarda, testar e desfrutar das molas do colchão. Antes de adormecer, Rui, bocejando, ainda tentou despertar a tumescência, mas, dada a hora tardia e o cansaço, nem ele, nem Dina, chegaram a espantar o sono, acabando por adormecer com o traje que Deus lhes deu.

continua em: Sexta, 17 de Agosto ( 32º DIA )

Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

Caprichos do Amor: Quarta, 15 de Agosto ( 30º DIA )


Quarta, 15 de Agosto

( 30º DIA )




Neste dia de folga, que antecedia o maior fim-de-semana do ano, para quem podia dar-se ao luxo de tê-lo ou pedi-lo, e eram poucos, os amantes nem se incomodaram com a intensa luminosidade do Sol, na janela do sótão, tão abraçados que estavam.
Às onze horas, porém, vendo-se sozinha, naquele Marão, a senhora Noémia decidiu fazer-lhes uma surpresa. Atarefada, espremeu uma caneca de laranjas, fez seis deliciosas torradinhas, com os papos secos da véspera, cortou quatro pedaços de presunto, que passou na sertã, estrelou dois ovos e, colocando tudo numa bandeja dourada, que deixara de ser usada com a morte da Sra. D. Alice, foi bater à porta dos amantes.
― Ruizinho, D. Dina, olhem o vosso pequeno almoço! ― disse rouca.
― Obrigada, senhora Noémia pode deixar, que eu vou buscar ― agradeceu a jornalista, espreguiçando-se e cobrindo os seios desnudados.
― O que é que vocês desejam para almoçar? ― perguntou a velhota, pousando cuidadosamente a bandeja no sobrado.
― O senhor doutor que escolha.
― O senhor doutor já saiu de madrugada e deixou dois bilhetes: um para vocês, mas o outro penso que é para mim. A minha senhora depois faz o favor de mo ler, porque eu só percebo as letras grandes dos nomes.
― Está bem, senhora Noémia, desça tranquila que nós não demoramos.
― O dia, hoje, está muito lindo, D. Dina.
― E o céu?
― Azulinho!
― Obrigado, senhora Noémia.
― Ora essa, sempre às ordens, minha senhora ― concluiu a velhota, orgulhosa, retirando-se a sorrir maliciosamente.
Sentindo as escadas ranger, a Afrodite sacudiu o seu cupido e, mordendo-o, amorosamente, na orelha, saltou da cama, tal Eva no Éden, e foi buscar a bandeja com o pequeno almoço. Abrindo os olhos, Rui viu-a partir, nua, de costas e, baixando a mão aos testículos, soltou um " ah! ", que a fez estremecer.
Escondendo a púbis com a bandeja, Dina empurrou a porta com um pé e, arregalando bem os olhos, derreou-se, para uma vénia, balançando os seios:
― Que mais eu posso para o meu senhor? - inquiriu, submissa, toda charme.
― Ah, não! ― bradou humorado, saltando, lesto, da cama.
― O meu senhor deseja?
― Que a minha rainha, se meta na caminha e abra a boquinha, porque, hoje, quem a serve, sou eu ― respondeu teatral o cupido, tal Adão subjugado, segurando a bandeja.
Obedecendo sem pestanejar, Dina assentou-se no leito e, de busto nu, estendeu a boca para um beijo, em equilíbrio, que quase fez entornar a bandeja. Foi então que, Rui, vendo que faltava qualquer coisa, para que o pequeno almoço fosse romântico, como ele imaginava, apanhou um calção e, vestindo-se à pressa, partiu descalço, com um sorriso nos olhos.
Intrigada, Dina aguardou e, comovida, quase chorou, quando viu uma rosa espreitar rente ao sobrado, antecedendo o cachorrinho, que segurando-a, nos dentes, lha foi oferecer, humildemente. E um delirante boca a boca, arrefecendo o pequeno almoço, abrasou-lhes as entranhas para o resto do dia.
Depois, dado o atraso, esfomeados, eles limparam, rapidamente, a bandeja e correram para debaixo do chuveiro, para um tépido concerto de carícias, que os ensaboou e lavou, mutuamente.
O pêndulo do meio-dia apanhou o Rui Patrício a ler o bilhetinho à avozinha.

" Senhora Noémia, como amanhã, faz anos que a Alice e eu nos casámos e que ela partiu, decidi ir levar-lhe um ramos de flores a Trás-os-Montes, mas não tenciono visitar mais ninguém. Senhora Noémia, a Dina e o Rui precisam de ficar sozinhos para aprenderem a viver, livremente, não é? Se eles não precisarem de si, pode ir o resto da semana para S. Domingos de Rana, se me prometer que rezará um ou dois rosários pela minha Alice. "
― Assinado Félix ― disse o moço, acabando de ler o bilhetinho.
― Ai, Ruizinho, o seu padrinho é um santo, meu filho! ― bradou a velhota, choramingando emocionada.
― Por mim, senhora Noémia, ainda pode ir apanhar o comboio da uma.
― Por mim também, senhora Noémia ― confirmou a patroa sentida, surgindo resplandecente na soleira da porta, de bandeja nas mãos.
― Então eu só lavo essa louça e vou - acrescentou a devota, enxugando-se.
E, enquanto a senhora Noémia arrumou a cozinha, Rui e Dina foram ler a carta que o padrinho lhes deixara, no terraço, aureolados e abençoados pelo esplendoroso manto de luz, com que o Sol os cobria.
Segurando a bolsa da avozinha, toda emproada e perfumada, o homenzinho fez questão de a acompanhar até à estação. Durante o trajecto, e porque ainda tinham quinze minutos, a velhota murmurou:
― O Ruizinho lembra-se do dia em que o seu padrinho e a Dina foram ao conservador do registo civil, lembra? O menino tinha treze anos...
― Perfeitamente, senhora Noémia...
― Nessa altura, quando o vi sorrir e empiscar à Dina, pensei: que pena, não terem a mesma idade e, Deus me perdoe, quase desejei o que está a acontecer, agora, porque tive muita pena da senhora D. Alice. Sabe, Ruizinho, quando se ama de verdade alguém, mesmo que a morte nos separe, não se voltar a casar...
― Se calhar, até tem razão.
― Ah, pois tenho, meu filho!
― A senhora tome cuidado, pois ainda vai ter que criar mais um netinho...
― Olhe, Ruizinho, eu há mais de quatro anos, que estou à espera dele, mas, já agora, preferia que o seu padrinho corresse o divórcio, primeiro, e depois, casados, como manda a lei da Santa Madre Igreja, sim, deviam pensar no menino, para que Deus o abençoe.
― Então, daqui a dois anos, se a senhora...
― Ah, eu sou rija como a torga! Veja lá, que eu, nesta idade, nem o médico ainda me viu o corpo!
― Ó senhora Noémia, não me diga que nunca nenhum rapaz...
― E que se atrevessem! Partia-lhes os dentes todos! Eu fui criada na lavoura e peguei muitas vezes na rabeca do arado. Você que pensa? Em nossa casa, trabalhava-se e o meu pai, que Deus tenha, nunca nos arreganhava os dentes. Ali havia muito respeitinho.
― A senhora ainda me há-de contar essas coisas todas, mas..., despache-se, que senão ainda perde o comboio - avisou ele, acelerando o passo.
A velhota despachou-se também e, segurando na bolsa, deu-lhe cinco mil réis, para o bilhete, mandando-o guardar o troco, mas ele recusou, peremptoriamente, dizendo-lhe que, graças a Deus, não precisava. E a automotora surgiu, logo depois, levando consigo a adorável avozinha.
Voando célere, Rui Patrício nem levou metade, do tempo que era preciso, para, ofegante, ir beijar e morder o pescoço da sua vénus, que, assentada, no canapé, declamava as poesias dele, embalada por uma cassete dos slows mais célebres, em versão instrumental.
― E se deixássemos isso para, no pôr do sol, todos nus...
― E parece-me que vais ter sorte, Rui ― acrescentou maliciosa.
― Isso está mesmo a acabar, Dina?! ― perguntou maravilhado, apalpando-lhe carinhosamente a zona púbica.
― Por favor, não me toques, senão...
― E, então, antecipamos o pôr do sol para a uma, para a sesta...
― Calma, meu amor, calma! ― bradou arrepiada pelas carícias atrevidas do seu homem, que, levantando-lhe o levíssimo vestido florido, lhe beijou o umbigo e lhe mordeu as calcinhas rosadas.
― Ah, só me apetecia comer-te este chocolate! ― exclamou impaciente, admirando-lhe o bronzeado.
― O teu...
― Eu sei, Dina, mas, nestes dias, vai ficar gostoso e integral como o teu.
― Não me digas que és capaz de ir praticar nudismo? ― inquiriu ciumenta.
― Mas só contigo, meu amor ― cochichou baixinho, roçando o rosto pela suave epiderme da bacia
― Ah, bom! ― suspirou amorosa, beijando-lhe os caracóis.
― Diz, Dina, queres ir à praia ou...
― E se ficássemos a fazer nudismo, ao som destes magníficos slows, a ler e a escrever, pois é, ― frisou maliciosa, torcendo o nariz, zangada ― há muito que não me fazes uma dessas poesias que de embalar o coração.
― Pronto, tranca as portas e vai ter comigo ao meu quarto. Lá bate o sol...
E não disseram mais nada, olhando-se apenas.
Enquanto Dina fechou o portão da rua, a garagem e a entrada, à chave, Rui foi ao escritório buscar folhas e uma caneta de tinta permanente, subindo sem a esperar. Pousando tudo na sua mesa-de-cabeceira, agora do padrinho, tirou um cobertor, do armário, estendeu-o no sobrado encerado e despiu-se.
Pouco depois, surgiu a Eva para se deitar ao lado do poeta Adão.
― Deixa-me ver ― murmurou curiosa, olhando os gatafunhos pretos.
― Tchut, silêncio! ― bradou meigo, admirando-lhe a nudez plácida.
― O.k, escreve, escreve, meu amor! ― cochichou baixinho, deitando-se de bruços, a ver a inspiração preencher, magicamente, a folha branca.
Ocupando todo o cabeçalho, escrito em maiúsculas, gigantes, o poema intitulava-se, QUANDO O AMOR VEM ia dizendo:


Este AMOR romântico 

permanecerá eternamente em nós
se tu me compreenderes
e comigo quiseres ... VIVER
Ninguém impedirá este AMOR
enquanto entre nós houver
a mesma estrela a cintilar
e no coração germinar... ESPERANÇA
Que me interessa o murmúrio
que venha por aí apregoar
ou mesmo a calúnia escarnecer
se nos amarmos ... A VALER
Que me importa o que o mundo
trame contra mim
se a razão do nosso coração
continuar viva ... LÁ NO FUNDO

TU ÉS PARA MIM 
DINA QUERIDA
O PRINCÍPIO E O FIM
DO AMOR E DA VIDA
Por isso te digo e te JURO
hoje, aqui, agora
que quando o teu AMOR VEM
nada mais em mim subsiste
nem a força que me retém
nem a outra ESPERANÇA
que ainda existe...


Pousando a caneta, o poeta entregou-lhe a folha e, mudo, deitou-se de costas, para que o Sol o queimasse e o fizesse espiar o pecado de ter iludido, manchado e abandonado, assim tão ingloriamente, a outra esperança...
Percebendo, muito bem, a mensagem dois últimos versos. Sim, a outra esperança, só podia ser a ingénua Cris, mas ela compreendia e aceitava, que não se esquece um amor facilmente. E, colocando-se na mesma posição, agarrou-lhe e apertou-lhe a mão, com todas as suas força, murmurando, comovida:
― Eu também te juro, querido Rui, que nunca amei, amo ou amarei mais ninguém e, por ti, morrerei, se preciso for, meu amor.
― Perdoa-me esta frontalidade, Dina.
― Perdoar, Rui?! A tua sinceridade é a melhor prova de amor que me poderias dar agora e só peço a Deus que continues assim pela vida fora. Perdoar? Tu, meu amor, é que me deves perdoar, por tudo o que não pude guardar só para ti. Perdoas-me?
― Mas..., há muito que Deus te perdoou, Dina! Quem sou eu para...
― Tchut! Deixa-me amar-te. Assim, isso, isso, mas que bom...
E a sinfonia do amor começou, suavemente, à flor da pele, ali, naturalmente.
A meio da sesta, extinto o fogo da paixão, desceram, para se restaurarem e, pegando num pudim, foram deleitar-se com ele, para a sala, oferecendo-o amorosamente um ao outro, adoçado de beijos. Depois, enrolando-se no coberto, que haviam trazido com eles, adormeceram, colados pela boca da vida, embalados pelos melodiosos e inebriantes slows dos Platers, dos Beatles, dos Moody Blues, dos Procol Harum, não esquecendo o Percy Sledge e a sua romantiquíssima when a man loves a woman.

Ao fim da tarde, depois de um novo duche a dois, foram comparar a nudez na penteadeira dos desleixados aposentos conjugais e, apesar da febre renascente que os atraía um para o outro, não passaram aos actos, preferindo respeitar a memória do passado e guardarem-se para o calor da noite na mansarda, quando o amor os apostrofasse.
Enquanto Dina preparou duas saladas, uma de atum e azeitonas, e outra de frutas, Rui encerrou-se no escritório e, inspirado, escreveu a poesia: SONHO VAGABUNDO


No vulcão plácido da tua tácita plumagem vaginal

soltei meu cavalo vadio em gélido e gemebundo gemido
viagem sensual de amor a arder de febre
fagulhas eróticas de um sonho sensual
em snobismo de mensagem paradoxal...
Tudo se confina à periferia dos teus seios
que nos meus dedos se tornam esteios.
Tudo vegeta pela infernal e pleonástica ninfomania
da transcendental nudez em sonoplastia...
No estigma do teu fruto em flor
afago o fogo deste frémito fervor
e em tépida nascente bebo o licor da tua libido
na esperança de saciar o meu sonho proibido...
À flor do beijo,
entre o amor e o desejo,
cresce o óvulo da nossa felicidade
em prematuro ostracismo da liberdade...


Mal a seiva poética secou na ponta da caneta, Rui pegou na folha, releu-a e, frustrado, preparava-se para a rasgar, quando a Dina, aproximando-se, em pés de fada, a salvou e a guardou no peito, dobrada, beijando-o e arrastando-o para a sala de jantar, onde, corridas as persianas e apagados os candeeiros de cristal, comeram, em apaixonado face a face.
Vegetariano, o jantar fê-los recuperar algumas das energias perdidas, com os homéricos e irracionais jogos de amor. Contudo, nem ali, a loucura os deixou em paz. Excitando-se reciprocamente com o pé, por debaixo da mesa, eles engoliram as saladas, rapidamente, sem mastigar, e, largando a louça na banca da cozinha, subiram a matar a fome à animalesca tumescência.
Depois, engastalhados e exaustos, os seus corpos aninharam-se e adormeceram tão repentinamente que a Dina, tentando acariciar e embalar o seu amorzinho romântico, nem teve tempo para ler a poesia, caindo num sono pesado, que só acabou de manhã.

continua em: Quinta, 16 de Agosto ( 31º DIA )

Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

Caprichos do Amor: Terça, 14 de Agosto ( 29º DIA )


Terça, 14 de Agosto 
( 29º DIA )



Apanhada no turbilhão da felicidade, Dina obedeceu cegamente à voz do coração, hipnotizada por um rapaz de sonho, mas, aos poucos, no silêncio da sua consciência, ela foi sentindo e travando sozinha um combate contra os fantasmas do vexame popular, que não se fartariam de a repudiar e os sintomas de uma depressão eminente que apareceram ao terceiro dia.
Acordando terrivelmente melancólica e triste, apesar dos mimos do seu poeta, que se erguera para a acompanhar até à estação, Dina trazia a cabeça em pânico, mas preferiu ocultar-lhe o sofrimento que levava na alma.

Rui, porém, querendo dar-lhe um beijo de despedida, sentiu-a distante e, adivinhando o perigo, voltou a correr para casa e foi contar ao padrinho o estranho pressentimento que ela lhe suscitara.
Depois, pensativo e atormentado, decidiu refugiar-se no escritório e despejou no papel o que sentia, escrevendo, escrevendo sem pensar na rima.
E, pegando no telefone, discou e, ouvindo um alô morto, gritou:

Menina, não seja tolinha!
Não tente esconder,
nessa cabecinha,
o que a faz sofrer!
Menina, não seja teimosa!
Sozinha
não poder vencer!
Olhe que ser corajosa é tudo dizer!


E mudando de tom, como se entoasse o refrão, prosseguiu carinhoso:

Por favor, Dina, abre o teu coração ao vento!
Vá, diz o que trazes no pensamento!
Por favor, Amor, não ligues ao que o povo diz.
Olha que só é pecado ser-se infeliz!


― Mas eu sou muito feliz, querido! ― desabafou lacrimosa, ouvindo aquela melodiosa declaração de amor.
― Por favor, Dina, nunca te esqueças que eu te leio a alma, pois agora eu sei que nasci para te amar e, dê o mundo as voltas que quiser, diga o que disser, jamais deixarás de ser a minha mulher! ― disse-lhe ele numa voz serenamente adulta.
― Oh, se soubesses como te amo, Rui!
― Vá, então prova-mo e conta-me o que vai nessa cabecinha, sua tolinha!
― Agora não posso. Estes muros têm orelhas! ― cochichou cautelosa.
― Então fica para logo...
― Um beijão, meu amor!
― Só?! Então o artista não te merece mais?
― Pronto, um milhão com um chi-coração do tamanho do mundo!
― Ah, assim gostei! Vá, vem depressa, corre, voa, meu amor, que a ansiedade mata!..
― Eu sei muito bem, Rui. Adeus que eu estou a chegar, meu anjo! ― bradou aliviada, retribuindo os beijos estridentes.
Pousando o telefone, Dina foi ao lavabo lavar as olheiras vermelhas, tentando disfarçar a emoção como podia. Animada pelo tom carinhoso do seu destinado, sentiu a maior das dificuldades em se compenetrar de novo, deixando incompleto o artigo que tinha em mãos. Vendo-se assim tão vazia de inspiração, a jornalista puxou por duas crónicas suplentes, que o afilhado lhe inspirara nos primeiros dias de férias, e foi mostrá-las ao director, pedindo-lhe dispensa para o resto da semana. E o homem, há tanto rendido à sua beleza, não teve a coragem de recusar.
Partindo aflita, Dina, esqueceu o estojo de maquilhagem na secretária. Recordando-se disso ainda dentro do edifício, já não voltou atrás, tamanha era a sua ânsia. As retinas ardentes não conseguiam esconder a felicidade que o coração ululante lhe suscitava.

Uma viagem assim tão enfunada viu-se ludibriada pelos sucessivos estremecimentos paragens e arranques da carruagem, como se cada próximo apeadeiro fosse o dela. Perguntava-se aquela alma torturada se, porventura, não estaria a afastar-se de Santo Amaro, quando descortinou as mãos delirantes do seu anjo da guarda. Ao saltar, sentiu-se amparada por uns braços hercúleos que a impediram de pisar a Terra e a fizeram viajar pelo sétimo Céu, beijada e abraçada.
― É perigoso, Rui! ― bradou radiante, levada em braços ao longo da estação.
― Cair ou morrer? ― perguntou sorridente, sustendo a respiração.
― Vá, não sejas tolinho!
― Oh! Taf-taf! ― gracejou Rui, ameaçando atirá-la à linha.
Dina, assustada, perdeu a fala, agarrando-se-lhe desesperadamente ao pescoço. Até casa, o moço não parou de a provocar para a obrigar a deitar cá para fora tudo o que a deprimia, mas ela, envergonhada, preferiu adiar a confissão para a tarde, quando a febre do desejo, que a menstruação lhe retivera nas entranhas, explodisse torrencialmente.
Abençoado purgatório! Depois da sesta, transfigurada, ela nem imaginava que estivera à beira de um colapso depressivo de funestas consequências. Felizmente que o seu anjo da guarda madrugara naquela manhã e, escutando a voz da alma, lhe afugentara aqueles acirrados tabus.

Até ao pôr do sol, depois de levar para a mansarda os embrulhos, que uma camioneta descarregara diante da porta, enquanto que as mulheres arranjavam uma refeição vegetariana, os homens, entusiasmadíssimos, desembalavam e montavam a mobília de casal, para que os pombinhos, aproveitando a folga, pudessem dormir até ao meio-dia da véspera do feriado de Nossa Senhora da Assunção.
Quando os veio chamar para jantar, Dina não resistiu à tentação de experimentar as molas do colchão, atirando-se para cima do plástico como uma criança mimada, deixando-lhes antever, inadvertidamente as calcinhas rubras.
Eles viram-nas bem, mas fingiram-se cegos, sorrindo apenas.
E, enquanto não terminaram tudo, ninguém foi comer. Até a senhora Noémia, sabendo do que se tratava e como eles demorassem, subiu, levando consigo uns lençóis floridos e um farrapo para limpar o pó dos móveis.

Finalmente, antes de descerem, sentiram-se atraídos pelos espelhos do guarda-fatos que, orgulhosos de reunirem, naquele sorriso inocente, o passado e o presente de tão harmoniosa família, brilhavam como em pleno dia. De voz embargada, ninguém disse nada para não quebrar a magia da inefável felicidade.
Ao jantar, o orgulhoso Dr. Félix assentou-se na cabeça da mesa, deixando-lhes o meio da mesa para um discreto, mas intrinsecamente eufórico face a face. Assim, os pombinhos teriam mais espaço para esvoaçar aqueles olhares apaixonados, que tanto o excitavam e lhe devolviam, inexplicavelmente, as cenas de amor com a sua doce e carinhosa Alice.
“ Oh, Alice, Alice! Como brilhavam os olhos tímidos da Alice, naquele dia de Verão de 1946, em que, depois da Grande Guerra, finalmente em paz, se beijaram e amaram, pudica e platonicamente!.. ” ― pareciam exclamar aqueles olhos cansados.

No terraço, uma brisa suave arrefeceu o fim daquele dia atarefado, convidando o arquitecto, cuja nostalgia dava pena ver, aproveitou a retirada da velhota, para se ir deitar mais cedo, largando o casalinho, aninhado, num cobertor, em doces confidências.
Sós, na escuridão do luar minguante, embalados pelos sussurrantes brados do oceano e, a tempos, o chiadouro da diminuição abrupta da velocidade, Rui e Dina, abraçados, foram sonhando. Imaginavam-se avós mimados, de cabelos brancos, no trepasse do milénio; viam-se, em 1975, na maternidade, na clínica de S. Sebastião da Pedreira, com o Artur Alexandre ou a Celina Maria, - nomes dos pais, que dariam ao primogénito - nos braços, a gritar nuá-nuá; pensavam, ainda, dentro de um ano, germinar, eternamente, os seus corações, diante de Deus, para que a tentação fosse menor e a jura sagrada, tendo o director do Rui como celebrante, rodeados pelos verdadeiros amigos, apenas. Isso era para depois de 1974, ano da liberdade total, porque até lá, e já faltava pouco, tinham que aprender a viver a dois.

Perto da meia-noite, sentindo que a descida da temperatura exterior lhes provocara, em contrapartida, uma subida brusca da interior, decidiram ir testar o princípio dos vasos comunicantes, na mansarda, estriando as molas do colchão, se a Dina já não estivesse impedida.
Enquanto subiam as escadas, Rui, atrevido, não parava de excitar a jornalista, ora apalpando-a nas nádegas e nas coxas, ora fazendo-lhe cócegas, tocando-lhe nas costas e nos flancos. Os jogos eróticos, mesmo abafados, não passaram desapercebidos ao padrinho, que, deitado, tentava desesperadamente em vão, entrar em contacto com a Alice.

Subidas as escadas e trancadas as portas da mansarda, o silêncio apoderou-se da vivenda, impondo aos efusivos libertinos uma ordem sagrada, que a remanescente menstruação da Dina veio ajudar.
Depois de beijar e lamber furiosamente a regrada Afrodite, onde podia, o cupido, que não conseguia disfarçar a decepção, pelo impedimento vaginal, soltou um suspiro desanimado, que a alertou. Foi então que, rodopiando e atacando-o, tal fera esfomeada, Dina, depois de o morder e beijar e sugar e arranhar cegamente, agraciou-o com uma felação mágica, que o fez explodir, torrencialmente. Liberto da ululante seiva seminal, Rui Patrício parou de morder o travesseiro e, depois de um derradeiro beijo e um olhar inebriante, virou-se e, feliz, deixou-se agarrar pela afrodisíaca valquíria, que de seios colados nas costas varonis, o embalou até cair de sono.


continua em: Quarta, 15 de Agosto ( 30º DIA )


Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

Caprichos do Amor: Segunda, 13 de Agosto ( 28º DIA )


Segunda, 13 de Agosto 
( 28º DIA )



Ao acordar, Dina apercebeu-se que chegaria tarde ao Diário. Primeiro foi o relógio que se esqueceu de tocar e depois o seu amorzinho, que não parou de a beijar até à estação, fazendo-a perder o comboio. O Dr. Félix, indo prontamente em socorro dela, mesmo a pisar no acelerador, não lhe evitou o atraso. Durante o resto da manhã, enquanto ela tentava concentrar-se e esconder à Vera e aos restantes colegas a sua felicidade, os homens iam matando o ócio pelas ruas da cidade.
Ao meio-dia, descortinando-os no outro lado da avenida, Dina não conseguiu reter-se e, largando o escritório, veio beijar o seu cupido diante de toda a gente, deixando o porteiro embasbacado.
― Parabéns, senhora D. Dina! ― exclamou o velhote, aprumando-se todo.
A jornalista riu maliciosa e, batendo-lhe no uniforme, subiu as escadarias, espalhando toda a sua respeitosa e sedutora classe pela recepção.
Uma hora depois, abandonou definitivamente o edifício, de pasta debaixo do braço e bolsa a tiracolo e, contornando a boutique da esquina, entrou no carro que, à sombra de uma tília, começava a achar a espera demasiado longa.
Durante o retorno, sempre de mão dada, muda, Dina pensava, pensava, mudando a decoração do quarto de casal, mas, por mais que modificasse, o passado não a largava. Ah, se ela tivesse realmente uma varinha mágica!
__ Sabes uma coisa, Dina?
― Diz, Rui.
― E se nós arranjássemos um quarto só para nós na mansarda? Ela é tão ampla!...
― Adivinhaste-me os pensamentos, Rui! Estou a ver que não te posso mentir ― disse admirada, apertando-lhe os dedos com um sorriso malicioso.
― Se é realmente esse o vosso desejo, ainda hoje vou arranjar um pintor! ― apoiou o arquitecto, consultando-os pelo retrovisor.
― Obrigado, mas nós gostaríamos de decorar o nosso quarto, não é, Dina?
― Claro, Rui! ― confirmou orgulhosa.
― Pronto! ― concluiu o chofer, resignado, segurando bem o volante.
E, naquela tarde, não fizeram outra coisa. Entusiasmados, arejaram, varreram, aspiraram e foram ajeitando o ninho dos seus sonhos, ajudados pelos mais adoráveis velhotes do mundo, que, espantados pela excentricidade dos malucos, aproveitavam para recordar as traquinices e loucuras dos idos tempos da juventude.

À noite, os namorados preferiram dormir num velho colchão de palha, à luz da vela, exorcizando de vez os fantasmas do passado, enquanto o Dr. Félix, ocupando o intacto quarto do afilhado, jurava nunca mais usar os aposentos conjugais, tão cheios, a seus olhos, de pecado.
Entretanto, tomando as estrelas do céu por testemunha, Rui e Dina prometeram-se, naquele idílico nicho, um amor sincero, jurando-se mutuamente fidelidade até que a morte os separasse. E foi, recitando poemas à luz da vela cor-de-rosa e o odor de santidade da cera, que o inocente poeta lhe abriu o seu coração pateta, fazendo-a viajar, eufórica, pelo cometa da felicidade.
Depois, sentindo-a feliz, apagou a vela e, abraçando-se a ela, adormeceu sereno, pedindo a Deus que o matasse redondo, no dia em que deixasse de ser assim e traísse o amor de tão bela mulher.

continua em: Terça, 14 de Agosto ( 29º DIA )

Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

Caprichos do Amor: Domingo, 12 de Agosto ( 27º DIA )

Domingo, 12 de Agosto
( 27º DIA )





Farto de cama, mal o sol despontou, o arquitecto pôs-se a pé sem fazer barulho para não os acordar e, pegando nos remédios, desceu para a cozinha, onde preparou um café bem forte para tonificar o corpo e lhe empurrar os doces para a barriga com os medicamentos. Depois, saindo pela calçada, foi assistir à santa missa, retomando o velho hábito domingueiro da Alice. Pelo caminho, num monólogo surdo com a sua consciência, dizia-se que há uma eternidade que não se assentava nos bancos da igreja porque estava furioso com Deus e nunca lhe havia perdoado verdadeiramente.
Entretanto, na vivenda, o amor ia guiando os pombinhos pelo firmamento da quimera, enquanto que as gaivotas, em pipilantes queixumes, repicavam sobre a janela entreaberta para deixar a maresia entrar no quarto, gritando invejosas daquele destino, como se não tivessem mais ninguém por quem chorar. Rui Patrício, incomodado por um raio de luz, foi o primeiro a acordar e a descobrir o charme impetuoso que irradiava pelo rosto sereno da sua amada. E não resistiu à tentação de a beijar na face, na testa, na boca, entre os seios e de lhe murmurar baixinho ao ouvido:
― És tão bela, meu amor!
― Hum! Uah! ― balbuciou inconscientemente, mexendo os lábios e coçando o nariz por causa das cócegas que ele lhe fazia.
― Acorda, Dina! Acorda, meu amor! ― implorou enamorado, fitando-lhe as pálpebras semicerradas que se abriam timidamente.
― Onde estou, Rui? Oh! Porque estou aqui? E se o teu padrinho...
― Tchut! Sossega, tolinha. Hum!... ― murmurou sensual, beijando-a na boca.
― Uah! Até já me esquecia que... ― bocejou radiante, agarrando-se-lhe desesperadamente ao pescoço para ter a certeza de que não estava a sonhar ou a cometer adultério.
― A madame quer que lhe traga o cafezinho à cama? ― perguntou ironicamente meigo, roçando-lhe inadvertidamente o dedo na aliança.
― Não, obrigada, mon chéri! ― respondeu sorridente, retirando de vez o anel.
E, vestindo-se à pressa, deram-se as mãos, correndo descalços para o quarto do doente. Como estivesse vazio, foram lavar-se e pentear-se, descendo em pijama para a cozinha. Lesto, o adolescente revistou as restantes peças da vivenda à procura do padrinho, mas como não o encontrasse, voltou para junto da sua vénus, ajudando-a a preparar o pequeno almoço.

Retornando muito alegre da igreja, o arquitecto foi saudá-los paternalmente ao salão, beijando-os na testa. Face a face, eles olharam-se envergonhados e, hesitando dois segundos, perguntaram em uníssono:
― O senhor...
― Eu nunca me senti tão bom como hoje! ― bradou o doente.
― O padrinho...
― Sim, levantei-me, tomei o café e fui à missa fazer as pazes com Deus, Rui!
― Mas vai tomar mais um cafezinho connosco, Félix, ah!, desculpe, senhor Dr. Félix, não vai? ― inquiriu a jornalista confusa, rectificando aquela confusa relação.
― Tomo, Dina, mas só para lhe fazer a vontade. Vá, não precisa de corar assim! Daqui a uma semana, quando o nosso divórcio estiver oficializado, verá que não se sentirá tão indecisa.
― O senhor doutor é muito bom! Por mais que viva, jamais poderei pagar-lhe tudo quanto fez por mim! Acredite, aconteça o que acontecer, eu sempre o amarei também e o Rui não terá ciúmes deste meu amor por si, Dr. Félix ― confessou-lhe ela, servindo o café.
― O padrinho bem sabe que eu estou perfeitamente de acordo com a Dina.
― Sei, filho, eu sei. Deus não vai permitir que ninguém estrague esta nossa felicidade, Rui - acrescentou o arquitecto placidamente emocionado.
― O padrinho já tomou os remédios?
― Já, Rui, fiquem tranquilos, que a minha tensão arterial está quase normal. Ah, antes que me esqueça, preparem-se que hoje vamos almoçar fora, está bem?

― Está bem! Está bem! ― repetiram eles, rindo descontraídos.
― Então, despachem-se! ― avisou o arquitecto, bebendo o derradeiro golo e retirando-se para o terraço a fumar a sua cachimbada.
Rejubilando, os pombinhos ajudaram-se mutuamente e, em menos de quinze minutos, tudo ficou arrumado, gastando depois o mesmo tempo em adornos e galanteios diante da penteadeira e a satisfazer os indomáveis caprichos.

Diante do espelho, o cavalheiro ia modelando a sua dama, opinando sobre a cor do baton e dos brincos, analisando ao pormenor o visual dela, por forma a torná-lo o mais discreto possível sem lhe retirar o brilho daqueles olhos azuis-turquesa que tanto o fascinavam. Rui Patrício queria mostrar-lhe como estava orgulhoso dela, mas sem, no turbilhão daquela confusão sentimental, ferir minimamente a susceptibilidade do padrinho que os aguardava calmamente agarrado ao volante do Mercedes.
E não ficou decepcionado. Interpretando fielmente os sentimentos e estado de espírito do magnânimo e generoso protector, eles vestiram-se simplesmente como dois jovens de vinte anos, deixando-o verdadeiramente à vontade para ser realmente o pai que ele tanto desejava.
Com aquele vestido florido, o chapeuzinho de palha e os chinelos de sisal, Dina parecia uma das inúmeras colegiais, divinamente fotografadas pelo célebre David Hamilton, enquanto que o Rui, usando aqueles jeans roçados, a t-shirt branca, com as sapatilhas Sanjo, dava um ar de James Dean, de quem pareceria realmente irmão gémeo, se não tivesse os cabelos tão encaracolados, que ele caprichava em manter para, dizia, não perder a força como o Sansão da Bíblia.
Durante a viagem até à Boca do Inferno em Cascais, assentados no banco traseiro de mãos dadas, os dois hippies observavam um sagrado silêncio, respondendo apenas quando eram solicitados.
― Quando entrarmos no restaurante, para todos os efeitos, a Dina é minha filha e você o namorado dela, está bem, Rui? ― disse o arquitecto, ao passar diante da quinta da Gandarinha, quando se preparava para estacionar.
― Sim, senhor doutor Félix ― anuiu encantado.
― Obrigada! ― acrescentou a jornalista submissa.
― Ah! Assim está bem! Vocês são formidáveis! ― bradou o arquitecto, parando no terreiro do Mar do Inferno, o último restaurante de Cascais, a quem as cabeças coroadas da Europa, ali exiladas, haviam apelidado de a riviera portuguesa. É que, mais adiante, surgia o inóspito Guincho com aquelas vagas alterosas e os ventos agrestes.
Estudado o enredo, o filme podia começar. Os actores sabiam de cor e salteado o texto; o cenário estava montado com aquários e mariscos a borbulhar, assim como os figurinos e o fundo sonoro que ecoava pela Boca do Inferno; os operários de palco também se mantinham de pé, prontos a anotar as despesas, mas o operadores de câmara esquecera-se de que o comboio só chegava até Cascais e, àquelas horas, deveria vir a pés calcantes algures pela costa a parar e limpar o suor da testa, carregado de películas virgens.

Dado o atraso, os actores almoçaram discretamente, ignorados pelos vizinhos, uma família de ingleses, que se deleitava a chupar a calda do arroz de marisco, numa algazarra que deixava espantados os poucos portugueses que ali se encontravam. E no coração daquelas futuras estrelas brilhava a mais bela das cores, uma cor que, por ser tão linda e tão rara, dificilmente aparece no arco-íris: o branco da inocência, em perfeita simbiose com o rubro apaixonado e o verde esperança que moravam nos seus olhos, abençoados pelo clemente azul celeste, ali, onde acabavam de realizar o sonho de ir mais além, mais além do mar, mais além deles próprio, quiçá mais além do Infinito.
O conto de fadas daqueles jovens órfãos, ainda no segredo dos deuses, começava a trilhar as veredas da verdade, lá no fim da Terra, perto das cavernas uivantes, sobretudo quando o oceano Atlântico amaldiçoava o seu destino, em vaivém contínuo contra elas, para que, quando os murmúrios da cobardia dessem eco deste romance, eles não se amedrontassem e se amassem com mais ardor ainda, seguindo estoicamente o caminho que eles mesmos haviam corajosamente traçado. É que, depois de escolhido, o caminho só tem que ser seguido.

Aproveitando a sesta para espraiar a felicidade nos zelados pinhais dos campos de golfe do Estoril e Alcabideche, eles foram em peregrinação a pé até ao lugar onde aquela paixão entrara em erupção pela primeira vez. Os trilhos dos pneus, tais pegadas de dinossauros, estavam lá bem vivos e orgulhosos. Deixando a viatura na berma da estrada, a uns quinhentos metros, e seguindo-os a uma respeitosa distância, o ditoso patriarca sentiu a boca da sua amada colar-se-lhe aos ouvidos, justamente quando os adolescentes, de mão dada, inspiravam o inebriante aroma do abençoado adultério e se beijavam apaixonadamente como se fosse aquela a primeira vez e o adultério nunca tivesse existido.
Assentando-se à sombra de um benigno pinheiro, donde exalava o incenso de um odor agreste, o Dr. Félix acenou-lhes, mas como eles, mutuamente subjugados, não vissem nada, desabotoou a camisa azul para refrescar o coração e, fechando os olhos, implorou ardentemente:
“ Alice, por favor, fala-me! Não vês como sofro, meu amor? ”

Sossega, Félix! Recordaste-te também do nosso primeiro beijo, não foi? Ah como foi belo o nosso primeiro beijo perto da figueira!

“ O teu vestido de popelina era tão lindo, Alice! ”

Coitada, a mãezinha erguera-se cedinho para mo lavar e engomar a tempo de o levar à missa. Parece que ainda estou a vê-la dizer-me: ― Pobres, mas limpos! Porém, escuta bem, minha filha, não é só no corpo que devemos ser limpos. Cuidado, Alice, vê lá não sujes a tua alma! ― E as tuas calças de riscado com uma dobra no fundo, ainda te lembras delas, Félix?

“ Eu recordo-me, sobretudo, meu amor, do brilho dos teus olhos! ”

Deixa lá que os teus também ardiam que chegasse! ” “ Era a febre do desejo a pensar como te arrancar aquele primeiro beijo. ”

É verdade, Félix. Parecias um menino a querer beijar a mãe, sem saber o que fazer.”

“ Quando os meus lábios tocaram o teu rosto corado, apanhei cá um choque! Nunca to disse pois não, Alice? ”

Nem precisavas de mo dizer, tolinho! Foi recíproco! ”

“ Alice! Alice!!!... Por favor, não te vás! ”

Tenho sono, meu amor, tenho sono! Ah! Não sabias que o sono também purifica a alma? ”

“ Mas... Alice! Alice!!! Eu amo-te tanto, Alice! ”

Eu também te amo muito, Félix, mas tenho que me purificar. Adeus!

“ Até logo, Alice! ”

E um leve suspiro pôs fim àquela inefável transcomunicação.
No seu rosto transfigurado, o arquitecto espelhava toda a alegria do mundo, enquanto, a uns cem metros, na penumbra de uns pinheirinhos bravos, Rui e Dina continuavam a dar-se o mais longo beijo da vida deles, transvazando-se na boca a tumescência irreverente que os acometera de repente.
― Ôh!... Rui! Dina! ― exclamou áfono, esquecendo a voz no peito.
Eles mal o ouviram, mas sentiram-lhe os ecos do pensamento e sobretudo o júbilo da nostálgica felicidade remanescente.
― Vamos para casa, padrinho?
― Vamos, filho.
― O senhor doutor sente-se bem, sente? ― perguntou a jornalista, vendo-lhe o peito desabotoado.
― Oh! Desculpe, Dina! Mas esta frescura faz tão bem ao coração ― respondeu pudibundo, abotoando a camisa à pressa para esconder os pêlos.
― Deixe, que eu lha aperto ― disse ela, sorrindo-lhe filialmente.
― Obrigado, filhinha.
E lá retornaram mudos a Santo Amaro.
Apenas entrou em casa, o arquitecto, ainda mal remetido das emoções, foi descansar, deixando-os a ler e a ouvir música deitados no sofá. Ao fim da tarde, depois de se cansarem de se enrolar, acariciar e beijar ao som daquelas melodias que tão bem embalavam os corações românticos e que eles iam trauteando como sabiam ao sabor da paixão, subiram para conhecer o porquê daquele sagrado silêncio, parando o gravador.

Agarrado ao travesseiro, tal criança inocente, porventura jovem sonhador, o venerando senhor, insuflado por uma sinfonia celestial, dormia placidamente na cama do afilhado. Eles sorriram-lhe e desceram novamente para preparar um refresco de maracujá, o fruto que mais lhes fazia recordar aquela fulminante e contagiosa paixão.
Entretanto, o pôr do sol ia caindo sobre a baía, aproximando-os da hora da velhota chegar, e um nervoso opressivo começava a apoderar-se-lhes do coração, roubando-lhes o discernimento e obrigando-os a preocuparem-se mais com a aparência que podiam transmitir aos outros do que com a própria realidade vital. E aos poucos, o amor ia sofrendo interiormente, dobrado sob o peso daquele tabu demolidor.
Corajoso, Rui Patrício subiu ao seu quarto para falar a sós com o padrinho.
― A senhora Noémia deve estar a chegar ― murmurou aflito, pousando as suas mãos nervosas nas dele.
― Eu sei. Deixa isso comigo, meu filho ― afirmou o padrinho, adivinhando-lhe o constrangimento.
― Será que ela vai compreender? E nós? Devemos esconder-nos dela ou...
― Não te aflijas, Rui! Por favor, não mudes nada, porque assim tu ajudas-me a ser feliz, meu filho. Não cometas os mesmos erros que eu cometi. Segue o teu caminho porque ninguém será feliz por ti e além do mais a tua felicidade é a chuva que rega a minha felicidade, meu filho.
― Como assim, padrinho?
― Tu és a chama viva por onde circula a minha paixão esmorecida! Tu talvez não saibas, mas foi por ti que a madrinha voltou. Ao identificar-me contigo, Rui, eu reaprendi a ser aquele jovem fogoso e ingénuo que conquistou o coração da maravilhosa Alice que eu conheci e amei loucamente, como tu agora, aos vinte anos, só que, naqueles tempos os costumes eram outros e o amor era mais platónico. Por favor, meu filho, nunca mudes nem faças nada só para ser agradável aos outros, mas sempre e só por ti, seguindo os desígnios que Deus te deu, porque tu tens um coração de ouro.
― Não é verdade, padrinho, eu sou muito egoísta ― refutou o órfão, envergonhado pelo panegírico.
― Sim, é verdade, Rui. No dia em que deixei de viver por mim, pelas minhas convicções, mas pelos outros, perdi o controlo do meu destino e, sobretudo, a voz e a referência da minha consciência. Nunca percas a tua, meu filho! ― rogou-lhe ele, deixando cair das retinas lacrimejantes as gotas da verdade, que, desde o dia anterior iluminavam novamente a sua alma apaziguada.
― Pode ficar tranquilo, padrinho, que eu não mudarei e nunca farei nada só para agradar aos outros e, muito menos, a quem não tiver nos olhos a luz da inocência que nos guia e nos faz felizes...
― Foi justamente essa tua inocência apaixonada que ressuscitou a tua madrinha, a minha querida Alice. Ai Alice, Alice!
― Pronto. Vá, venha, padrinho. Ah, só uma curiosidade... ―- bradou intrigado.
― Diz, diz, Rui.
― O senhor chegou a namorar com a minha mãe?
― Então, já que queres desfazer dúvidas, assenta-te aqui.
― Chegou, padrinho? ― insistiu o moço risonho, com aquela malícia sadia que faz abrir as trancas do coração e derruba os medos ou segredos mais recalcados.
― A Celina, a tua querida mãe, era, como sabes, minha prima e, quando éramos novos, eu com nove e ela com onze anos, muito antes de conhecer a Alice, eu gostei muito dela, como uma criança, mas ela nascera para o Artur, o teu verdadeiro pai, meu filho, assim como a Alice me estava reservada.
― Sim...
― Aliás, foi a tua mãe quem me ensinou a amar a Alice, me deu muitos conselhos e lhe falou de mim nos melhores termos.
― A minha mãe e a Mã Lixe eram muito amigas, não eram?
― Se eram! A Alice, quando tu eras bebé, beijava-te e adorava-te como se tu fosses o filho dela e eu, aos poucos, comecei a ver-te, naturalmente, como se tu fosses realmente do meu próprio sangue, mas os teus verdadeiros pais são a Celina e o Artur.
― Então isso quer dizer que o senhor estava a prever o que lhe ia acontecer.
― Bem, nunca imaginei que a tua madrinha morresse tão nova, mas tinha muito medo do parto, porque ela era muito apertada de quadris e metia-me cá uma impressão o bebé ter que sair ...
― Pronto, papá Félix ― disse aliviado, abraçando-o filialmente como ele tanto desejava.
Entretanto, vindo em pés de fada, Dina encostara-se a chorar na soleira da porta, recordando também os pais que o destino colhera na flor da idade, quando ela, botão de rosa à espera da Primavera, já começava a piscar aos rapazes e embalar as bonecas.

Naquele domingo, enquanto Rui e Dina colhiam a felicidade nos aposentos conjugais, doravante seus, na cozinha, o Félix e a Noémia recordavam com saudade aqueles inolvidáveis meses com a Alice.
E, quando adormeceu, o coração da velhota também já batia ao ritmo do amo e dos pombinhos...

continua em: Segunda, 13 de Agosto ( 28º DIA )

Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson