
II
E o sono teve o condão de, não só lhe limpar o suicídio do coração, mas, sobretudo, de a pôr em contacto com o ente querido que mais amou e por quem mais chorara: o paizinho que Deus lhe roubara um ano antes.
“ És tu, pai? Por favor diz-me qualquer coisa, papá! Vá, não sofras mais por causa de mim e pede a Deus que me leve para junto de ti. ”
“ E a Florbela, filha? Tu tens que viver, nem que seja por ela! ”
“ Ah! Se não fosse a Florbela, já me teria cortado as veias ou… ”
“ Não desesperes, que hora a hora Deus melhora, filha! ”
“ Quando não piora, papá! Até parece que Deus se esqueceu de mim… ”
“ Não digas tolices, Vera, que Deus não castiga ou tampouco se esquece de ninguém! Deus, escreve direito por linhas tortas, filha! ”
“ No Paraíso, onde Ele é Rei e Senhor, talvez, mas na Terra, pelo que vejo, quem manda é o diabo, que não descansa enquanto não nos mete ou faz da nossa vida um inferno! ”
“ Ai como andas afastada de Deus, filha! Largaste tudo…, mas, desculpa, ia ser injusto contigo e acusar-te do mal que te fiz, quando, abandonando-te, corri para a Venezuela à procura de melhor vida! Eu troquei-te pelo dinheiro, filha, e por isso agora sofro tanto, aqui neste vale de lágrimas que é o Purgatório… Reza por mim e perdoa-me, Vera! Essa é a melhor forma de me amares, filha! O resto, agora, aqui e na verdade não conta mais… ”
“ Tá bem, papá, eu vou passar a rezar por ti, mas, tu, por favor, ajuda-me, senão ainda me deixo morrer…”
“ Vive, filha, vive por ti, pela Florbela, pela tua mamã, pelo teu irmão e, sobretudo, por Deus, se queres ser digna da verdadeira Felicidade! Vá, coragem e… mil beijinhos. Adeus, meu bebé! ”
“ Papá!! Não te vás embora, papá! ” — gritou desesperada, tentando agarrar-se ao manto de luz que se afastava.
E, estremecendo aflita, acordou, dando com os olhos na escuridão, onde nada havia e donde nada caía. Nada! Mas…, persistindo, do nada jorrou um raio de esperança que fez renascer no seu coração a desleixada e amargurada Fé em Deus.
Cansada de perscrutar a negridão, Vera acendeu o candeeiro e virou-se de bruços, mas a inquietação fê-la dar mil voltas na cama e apagar a luz para retornar escuridão. A claridade, desnudando-lhe o olhar, envergonhava-a, aterrorizava-a! É que assim, trancada na obscuridade, tinha a sensação de recuperar a Liberdade.
Nesta sexta-feira, 2 de Outubro, a presa quase não almoçou. Mais que a fome e a vontade de comer, faltava-lhe a razão de viver. Retornando à cela, deitou-se para matar o tempo e acabou por adormecer.
Às 15 horas foi intimada a dirigir-se illoco presto à sala das visitas, onde era aguardada. Lavando os olhos para dissimular o sono, Vera penteou-se à pressa e aplicou um desodorante debaixo dos braços. E, seguindo o corredor, lá se encheu de coragem para afrontar a primeira e a mais vergonhosa reprimenda da sua vida.
Desembocando na sala de visitas, deparou com as mesas quase cheias de prisioneiros a conversar com a família, e, suspendendo a respiração, percorreu-as uma a uma, mas seu conhecido não viu ninguém. Erguendo-se da cadeira, onde esperava certamente por alguém, um homem jovem fez-lhe sinal com a mão trémula, interceptando o seu olhar mórbido.
— Vera? — indagou o estranho, dirigindo-se aos eu encontro.
— Sim, sou eu mesma!
— Ah! Afinal você é mais… — bradou embasbacado, estendendo-lhe a mão.
— Mais?
— Nada, desculpe, eu sou o Hugo Amado e estou aqui enviado pela Aline!
— E para quê?
— Para a tirar daqui! Não é isso que a senhora quer? Mas assente-se e conte-me lá o que lhe aconteceu!
— Olhe, se veio para me reconfortar ou dizer palavras lindas, não perca o seu tempo que não é disso que eu preciso, senhor Hugo!
— Ah bom?! E poderei eu saber do que é que a madame realmente precisa? Vá, diga lá! — insistiu sério, pegando na caneta para anotar os desejos da ré.
— Desculpe, mas o senhor não me pode ajudar! — desabafou desanimada, vendo-o seu interlocutor corar profundamente e baixar os olhos.
— Porque? A madame faz de mim bem fraco!
— Eu preciso de um homem, de um advogado que me tire deste inferno, Hugo!
— E a Vera está mesmo inocente?
— Estou!
— Jura?
— Pela alma do meu pai, com quem sonhei esta noite, e pela saúde da minha filhinha, que é o que mais adoro neste mundo, juro, Hugo, juro!!! — bradou lacrimosa, elevando a voz e fazendo todo os presentes olhar para deles.
— Tchut! Fale mais baixo! — sussurrou envergonhado, tocando inadvertidamente com a ponta dos seus dedos tímidos nas mãos dela.
— Eu estou inocente, Hugo, eu estou inocente! — murmurou desnorteada, limpando ao punho a lágrima irreverente que lhe resvalava pela face.
— Não chore mais, que eu vou tirá-la daqui, Vera! — garantiu sereno.
— Como? Não! Não acredito! O senhor é advogado? — indagou perplexa.
— Quer acredite, quer não, eu serei o seu homem, Vera!
— Você?! O Hugo…
— Sim, a cara de menino que a madame vê à sua frente, e por quem não dá um vintém furado, será o seu homem, Vera! Se dentro de oito dias, ainda estiver aqui, esquecer-me-á, mas se não…
— Se não…pagar-lhe-ei e ficar-lhe-ei eternamente grata, Dr. Hugo Amado! Mas…, diga, diga, o senhor queria dizer-me qualquer coisa, não?
— Não, não era nada! Ou melhor, sim, era, mas asneira!
— E a ver pela cor do seu rosto, devia ser grande, doutor!
— Enorme, madame! Imensíssima!!
— De que tamanho? Da ponta dum dedo ou dum pedaço de gelo?
— Oh não, está muito longe e muito fria, madame!
— Então? Do tamanho do mundo não pode ser, pois não, doutor?
— Pode! A asneira que eu lhe direi quando a tirar daqui é muito maior que o universo, madame!
— Infinita?
— Talvez!
— Então será melhor guardá-la para si, doutor!
— Sábia decisão, madame, porque eu não me acharia com coragem para lha revelar, por enquanto…
— Mas depois…, já que a pensou, diz-ma, doutor?
— Certamente!
— Então jure e bata-me na mão! — desafiou divertida, esboçando o um ligeiro sorriso e estendendo-lhe timidamente os dedos esguios.
— Juro! — exclamou sério, retendo-lhos firmemente e olhando-a decididamente sem pestanejar nem vacilar!
E, subitamente aterrorizados pelo desafio que acabavam de se lançar, Hugo e Vera prosseguiram cabisbaixos o sibilino diálogo. Tal padre no confessionário, o advogado ouviu-a pacientemente de confissão e, perscrutando-lhe subtilmente as palpitações cardíacas, tentou resistir ao íman sentimental que metamorfoseava em paixão a piedade que a tristeza da presa lhe suscitara logo no primeiro olhar.
E o término da visita soou cedo de mais para que a parcimónia e a rigidez, impostas pela ética profissional aos homens de leis, não cedessem aos impulsos libidinosos, separando irremediavelmente aqueles dois corações em desordenada palpitação.
No trajecto de retorno a Diekirch, a capital da cerveja, onde instalara o seu Bureau d’Étude — o escritório — e era impacientemente aguardado pela secretária, uma luxemburguesa de olhos azuis e cabelos loiros, o jovem advogado não conseguia resistir à inexplicável atracção que sentia pela mulher com quem acabava de passar aquela tarde.
De repente, Hugo, tão tímido, introvertido e submisso, ousou revoltar-se contra os tabus e autoridade paternal que, impondo-lhe uma ditadura virtual, mas tremendamente devastadora, lhe barravam o caminho da felicidade. Hermeticamente fechado desde a infância, o seu órgão vital vira-se atrofiado e mais parecia um motor eléctrico, habituado a obedecer à corrente, que um coração de gente. Ao pagar-lhe o diploma, o pai impusera-lhe leis draconianas, transmitindo-lhe obrigações e sujeitando-o a privações, que lhe atrofiaram o carácter e limitaram o seu livre-arbítrio.
Estacionando o carro no parcómetro virado para o rio, o advogado pousou a pasta no pilar e, debruçando-se para o jardim, respirou fundo, vociferando toda a raiva que sentia por não ter a coragem de soltar bem alto o seu grito de revolta e acabar de vez com as aparências e sórdida aquiescência paternal.
— Boa tarde! — disse melancólico e pálido, transpondo a porta do escritório.
— Boa tarde, maître! — respondeu a secretária cabisbaixa, prosseguindo a tarefa que tinha em mãos.
— Uf! A que horas temos a próxima audiência, Martine?
— Às dezoito… O senhor doutor sente-se bem? — perguntou preocupada, vendo-o desatar a gravata e abrir o colarinho para respirar melhor.
— Bem só me sentirei quando a Vera sair da prisão!
— Vêrá?! Quem é? Não me diga que é a … — questionou admirada, afrancesando o nome da portuguesa.
— A Vera é, uma mulher de sonho, Martine!
— Vê-se, doutor!
— O quê?
— Que o senhor se deixou contagiar e amarrar pelo charme da prisioneira!
— Ela é linda, Martine!
— Se você o diz… Bom, quer que lhe vá buscar um café ao Bistrot, doutor?
— Ah! Agradecia!… — implorou mimado, esticando-se todo.
Sorrindo, a secretária abriu a gaveta e, retirando da caixa cem francos, foi comprar dois cafés. Aproveitando a ausência da colaboradora, Hugo saltou do sofá e correu a deitar água no rosto, mergulhando as retinas avermelhadas na água fria que retinha na cova da mão. Depois, enxugando os olhos e as mãos, apertou o colarinho e a gravata, retornando ao seu cadeirão negro, onde consultou o dossiê que devia defender à noitinha.
E, nos dias que se seguiram, Hugo quase não advogou, concentrando todas as suas energias na causa mais importante da sua vida e que não o deixava dormir em paz: a do amor!
Entretanto, enquanto Vera desesperava por não ver a hora de deixar a prisão e voltar a abraçar a filha adorada, Aline telefonava para o senhor Marxen da polícia judiciária e para o Dr. Juiz Alphons Schmitt, para que eles não se esquecessem da prima, sem contar as horas que passava ao telefone com o Hugo.
Em Larochette, Florbela, afeiçoada à senhora Dora, que a cobria de mimos, não quase não dera pela ausência da mãe. Por vezes, à noite, antes de se deitar, ainda perguntava por ela, mas logo vinha a ama com um ursinho, um docinho e um beijinho para a distrair e, porventura, suprir a falta do carinho maternal.
Inácio, esse, parecia condenado e conformado a viver recluso toda a vida, tão pouco lhe ligava a família e tantas eram as agravantes da sua culpabilidade. Coitado, o réu ficara órfão com um ano de idade e sempre vivera rodeado de mulheres, a mãe, que sempre lutou pela sua prole como um homem, e as irmãs, a Carminda, que dera com os pés ao marido em Portugal e ao filho e viera tentar a sorte neste país frio, embarcando nas mais tórridas aventuras, e a Célia, que continuava na Suíça, para onde arrastara o mano quando ele atingiu a maioridade.
Que triste destino, o do pobre Inácio! Ao dez anos, quando sonhava com os livros e queria ser professor, para mostrar à mãe que era alguém, viu-se obrigado a pegar na enxada e ir para a jorna com os tios e os primos para atenuar a labuta maternal e lhe aliviar o sofrimento. É que, além das varizes, a senhora Joana arrastava com ela a mágoa de se saber condenada por um bicho que lhe ia sugando inelutavelmente a vida.
E, aos dezoito anos, o filho, agigantando-se e, porque tendo barba, homem se julgava, encheu-se de coragem e foi para a terra onde os bancos passam a vida a abarrotar o bucho de dinheiro, sujo ou limpo, pouco importa! Mas a ilusão, alimentada nas horas de desespero e solidão, que a invernia da serra suscita, quando a existência parece ter caído em desdita, rápido se desvaneceu.
Afinal, a Suíça não era nada como a pintavam!
De garçon de restaurante, onde serviu a burguesia e se imiscuiu pela via do sonho, a ajudante de maçon, Inácio experimentou vários biscatos, mas sem sucesso, até que, aos vinte e dois anos, no casamento de uma prima, conheceu a Vera. E a adolescente, atraente e irrequieta, conquistou-o definitivamente.
Ao fim de quatro anos de assídua correspondência, casaram-se! Ele, julgou ter encontrado a Bela Adormecida, e ela o Príncipe Valente que a faria descobrir o país encantado que lhe parecia o Grão Ducado do Luxemburgo, onde viviam os seus padrinhos de casamento, a Lídia e o Valdemar, e muitos dos convidados.
E o sonho cor-de-rosa, lindo a princípio, começou a ver a escuridão entrar nos meandros da realidade e a obscurecer-lhes a linha do horizonte, antes de lhe cortar o fio da felicidade. Perdida a dignidade, só lhes restava sofrer as consequências e viver o opróbrio da sociedade até quando houvesse vontade e o demónio ou o destino quisessem, porque de Deus já esperavam mais nada: haviam nascido para sofrer!
No dia 6 de Outubro, terça-feira, a prisioneira cruzou a responsável do seu bloco no corredor, mas, desanimada como estava, passou por ela como o diabo pela cruz.
— Vêrá!!! — gritou a guardiã, agitando o braço.
— Sim!
— Não se esqueça de ligar o despertador para as sete, porque às oito deve estar pronta para ir para a audiência.
— Audiência, madame? — estranhou Vera, franzindo o testa.
— Afinal não é verdade o que você me disse ontem: o seu advogado não se esqueceu de si! Chapéu! Grande homem, sim senhor!
— Você acha, madame?
— Claro que acho, Vêrá! E você não?
— Oh! Aquilo parece mais um menino mimado que…
— Desconfie dos homens frágeis! Eles são um perigo, Vêrá!
— Pois, é, mas, infelizmente, o seu conselho chega tarde de mais, madame!
— Ah! Não seja assim tão pessimista! Nunca é tarde de mais! Vá, ligue lá o despertador e, amanhã, não se esqueça de se vestir com toda a pompa que a circunstância merece e de gritar ao juiz a sua inocência, se quer ver a sua filhinha antes do Natal. Ciao e… merda! — exclamou a guardiã, cruzando os dedos para lhe desejar boa sorte.
— Obrigada, madame, obrigada! — agradeceu Vera, refugiando-se na cela.
E da noite escura jorrou um raio de esperança envolto num sorriso resplandecente, como se as súplicas dos últimos dias fossem, finalmente, exorcizadas!
Mentalizando-se para o frente a frente com o juiz, Vera adormeceu muito tarde, mas um ciclo de sono bastou para lhe revigorar o corpo e a alma. E nem foi preciso despertador: a insónia impediu-a de voltar a cerrar as sobrancelhas. Impaciente, ergueu-se e tomou banho, lavando-se e ensaboando-se por várias vezes, até deixar a pele limpa e perfumada. Como tempo era coisa que não lhe faltava, lixou as unhas, pintou-as e, bufando-lhes, esperou que o vermelho secasse; mirando-se ao espelho, afinou as sobrancelhas e sorriu demoradamente. E o brilho dos seus olhos desfez-se num sorriso mais enigmático que o da Gioconda;: pelos seus dedos esguios e macios, apesar das intermináveis jornadas de lava-pratos, raquete e rodilha na mão, voltou a deslizar um resquício de amor.
Os derradeiros cinco minutos foram um verdadeiro suplício para a condenada: não tivesse tido tanto trabalho para se aprimorar e mandaria tudo às malvas com uma cabeçada nas grades, depois de roer as unhas até ao sabugo e fazer esguichar o sangue pelas cutículas.
— Está pronta Vêrá? — murmurou a vigilante.
— Sim, madame! Desde a cinco da manhã! — respondeu baixinho, abrindo a porta da cela.
— Você vai espantar o juiz, madame!
— Porquê?
— Qualquer homem com dois dedos de testa sabe que tamanha classe não pode ter descido tão baixo! A sua inocência salta aos olhos e o Juiz não é cego, Vêrá!
— Então só espero que ele não tenha acordado de bunda para o ar, sofra de miopia ou apanhado alguma conjuntivite nos últimos dias!
— Certamente que não! Vá, deixe de franzir a testa e sorria, que o sorriso será a melhor prova da sua inocência. Isso, assim! Cuidado, não fuja com a minha prisioneira, senhor Alex! — avisou a guardiã, empiscando ao colega encarregado do conduzir a furgoneta até ao tribunal do Luxemburgo.
O condutor gracejou e, sorrindo, indicou o caminho à presa. Retomando o ar compenetrado, Vera obedeceu e seguiu-o cabisbaixa. E as portas, accionadas pelos guardas, foram-se abrindo uma a uma até à antecâmara da liberdade, onde lhe foram aplicadas as algemas.
Vinte minutos mais tarde, descarregada mesmo à porta do tribunal, Vera sentiu o nervosismo miudinho da viagem apoderar-se dela e perturba-la. Irritada, começou a friccionar as mãos e a olhar em todas as direcções, como que a pedir socorro, mas ninguém lhe valeu naquele aflição, e lá subiu as escadas até à sala de audiência, onde cruzou o sorriso cândido do Hugo tranquilizá-la e aliviar-lhe o terrível sufoco que lhe apertava a garganta e não a respirar pausadamente.
— Olá! Vá, não se enerve! Calma, que eu estou do seu lado, madame! — aconselhou o advogado, tocando-lhe ligeiramente no antebraço.
— Ainda bem que veio, senhor doutor! Uf! Ui! Nunca pensei que custasse tanto! — suspirou corada, esboçando um tímido sorriso.
— Eu já falei com o Senhor Doutor Juiz! Ele é um homem simples e compreensivo! Por isso, fale devagar e não se enerve. Conte-lhe a verdade e tudo correrá bem. Vá, respire fundo e sorria que dá gosto vê-la sorrir — disse calmo, pautando a convicção das suas palavras com gestos suaves e olhares joviais.
— Obrigada pelos seus conselhos, senhor doutor!
— Pst! Aquele senhor de cabelos brancos que ali vem é Senhor Doutor Juiz!
— Maître Amadô, madame, bonjour! — Mestre, Amado, senhora, bom dia! — saudou sorridente, meneando a cabeça e dirigindo-se para a sua cátedra.
— Bonjour, Monsieur le Juge! — Bom, Senhor Juiz! — responderam Hugo e Vera, retribuindo-lhe o sorriso amável com que os olhara.
Deixando-se guiar pelos polícias, que a conduziram até à cadeira que ladeava a do escrivão, a presa sentou-se e aguardou pacientemente que a audiência começasse. Perto dela, o advogado acenava-lhe discretamente e mimava-lhe calma, baixando e subindo lentamente a mão direita.
Obedecendo à ordem do juiz, Vera levantou-se e, adoptando uma posição vertical, procurou exteriorizar o orgulho e a dignidade que arrastava na alma, sorrindo serenamente.
— Precisa de intérprete, madame?
— Em princípio, não, porque eu compreendo muito bem Sua Excelência, Senhor Doutor Juiz, mas, se for preciso, peço ajuda ao Dr. Hugo Amado.
— Com certeza, madame! — anuiu o juiz, dispensando o intérprete.
Descontraída por este aparte, Vera ganhou confiança e sorriu ao advogado, que retribuiu a gentileza, aconselhando-lhe calma e empiscando jovialmente.
E o silêncio arrebatou à sala os derradeiros ruídos irrequietos dos sapatos que roçavam no sobrado encerado. Virando-se para trás, a acusada passou rapidamente o olhar pelos presentes e, porque ninguém pertencia ao seu mundo, não se sentiu incomodada!
— Você procura alguém, madame?
— Não, Senhor Dr. Juiz!
— Bom, o Mestre Hugo Amado, introduziu um recurso contra a sua detenção, alegando que a prisão só pode prejudicá-la e traumatizar a sua filhinha. Eu acredito na boa fé do seu advogado e presumo que seja assim, mas os factos atestam o contrário, a menos que a senhora me prove o contrário. Eu sou todo ouvidos, madame! — disse o juiz, cedendo-lhe gentilmente a palavra.
— E o que é Vossa Excelência quer que eu lhe diga?
— Tudo!
— Tudo?!
— Sim, tudo o que possa abonar e provar a sua inocência. Quando chegou ao país, o que fez, como se deixou enredar nesta rede…
— Rede?! Mas que rede, Senhor Dr. Juiz?!
— A madame não me diga que não sabia da vida que o seu marido e a súcia dele levavam?
— E que vida levava o meu marido? Roubava? Matava? Por favor diga-me, Senhor Dr. Juiz, que eu juro pela saúde da minha filha que não sei.
— Então o que é que a madame sabe?
— A única coisa que eu sei é que fui enganada e explorada pelo meu marido durante meses. Mais, ele trocou-me pela droga!
— Pela droga?!
— Sim, Senhor Dr. Juiz, o meu marido deixou de dormir comigo para se trancar e drogar às escondidas na garagem.
— Às escondidas?! Explique-se, madame!
— Quando a nossa vida começou a correr mal, o Inácio fez alguns biscatos para me ajudar a pagar as despesas de casa, o aluguer e a electricidade e parte da comida. Foi barman num cabaré, taxista e guarda nocturno…
— Tem a certeza que ele foi realmente isso, madame? Algum dia lhe viu, porventura, a folha de paga?
— Não, isso nunca vi!
— Porquê?! Nunca lha pediu?
— Pedi, todavia, ele sempre se desculpou com a fiduciária, — dizia que estava lá — até ao dia em que deixou de me trazer o menor cêntimo para casa e começou a roubar-me parte do pouco que ganhava para viver.
— E porque nunca se queixou à polícia?
— Ele disse que, se alguém soubesse, me arrancaria o coração pelas costas, como mandou fazer um rei Português aos assassinos da sua amada…
— Pois, é a história de D. Pedro e D. Inês de Castro.
— Ah! O Senhor Dr. Juiz também a conhece essa história?
— Sei essa e muitas mais! Porém o que me interessa, agora, é a aprender a sua!
— Oh! A minha é muito triste, Senhor Dr. Juiz!
— Talvez, mas, por enquanto, ainda não morreu ninguém!
— Não?!
— Que eu saiba, não, mas, pelo que vejo, você não é da mesma opinião!
— Agora, que eu sei que o meu marido vendia droga, duvido muito que essa porcaria não tenha morto ninguém.
— Ainda duvida ou tem a certeza, madame?
— A certeza que eu tenho, Senhor Dr. Juiz, é que, por causa da droga, perdi o marido, perdi o bom nome que herdei dos meus pais, perdi a confiança, perdi…, perdi quase tudo!
— Quase tudo?
— Sim, Senhor Dr. Juiz, se eu ainda não perdi a vida e esperança, é porque tenho que viver e trabalhar para que a minha filha, o tesouro que me resta, seja feliz! Ela tem esse direito! A Florbela é muito pequenina e precisa mais de mim do que pão para a boca. Pão, Senhor Dr. Juiz, qualquer pessoa lho pode dar, mas o amor de mãe só eu! Por favor, deixe-me lutar por ela e defendê-la.
— Defendê-la?! De quem?
— De tudo e de todos! Do mundo, da indiferença e até da compaixão. Eu quero que a Florbela tem alimento para a alma; quero que ela saiba donde veio e, sobretudo, que saiba que não está só no mundo e que pode sonhar como qualquer outra criança e que também merece e tem o direito de ser feliz. Dinheiro, não darei, porque não sou rica, mas o que eu lhe garanto, ai garanto, mais, juro e ela alma do meu pai, que amor, pelo menos, nunca lhe faltará! Pobre de amor, Senhor Dr. Juiz, a minha filha nunca será, acredite Vossa Excelência ou não na inocência da mãe dela — afiançou comovida, encarando energicamente o homem de quem dependia a sua liberdade e a felicidade da filha e enxugando as lágrimas.
— Quer acrescentar mais qualquer coisa, madame?
— Posso fazer-lhe uma pergunta, Senhor Dr. Juiz?
— Poder pode, mas eu só respondo se quiser!
— Com certeza, Senhor Dr. Juiz. É Vossa Excelência quem decide!
— Faça!
— Que a minha filha seja inocente o Senhor Dr. Juiz não duvida, pois não?
— Não, madame! Não duvido! Tenho a certeza!
— E que eu esteja inocente, ainda duvida, Senhor Dr. Juiz?
— Ainda, madame, ainda!
— Então estou condenada?
— Talvez sim, talvez não, madame!
— Isso quer dizer o quê, Senhor Dr. Juiz?
— Que ainda não tomei uma decisão, madame.
— Muito obrigada, Senhor Dr. Juiz!
— Vá em paz, madame! — disse o magistrado, acenando gentilmente.
Procurando desesperadamente os olhos do seu advogado, Vera quis esboçar um sorriso de alívio, mas a inquietação ainda morava nas suas retinas angustiadas. Cabisbaixa até à furgoneta, não abriu a boca. E, sentando-se no banco que o guarda lhe indicou, meteu a cabeça entre as mãos, lá se deixou arrastar para a prisão de Schrassig.
De volta à cela, a presa quis dormir sem comer, contudo a vigilante, amável como sempre, reconfortou-a e, insistindo para que se alimentasse, convenceu-a a restaurar as forças para afrontar a decisão do juiz.
Meio tonta, Vera lá foi mastigando, mais por simpatia que por necessidade o puré com vitela estufada que a guardiã lhe serviu num tacho condicionado, mas a sua garganta lacrou-se antes de terminar e a garrafa de Evian, que a podia ajudar a engolir o pouco que ousar meter à boca, nem a abriu, porque não era de pão ou de água que ela precisa: a inocente tinha fome e sede de dignidade e justiça.
Abatida e abúlica, Vera deitou-se sobre o leito e, cobrindo as pernas para não ter frio, pregou os olhos no tecto. Escorregando no seu pensamento vítreo, o pensamento desembocou no limbo cerebral, que é uma espécie de vazio indolor onde vão parar as ideias ocas, os sentimentos amorfos e os propósitos invertebrados, inexplicavelmente abortados ou rejeitados logo após o nascimento.
E foi nesta visão apática que a guardiã surpreendeu a sorumbática, quando, às 14 horas, lhe bateu estrondosamente na barra de ferro da porta translúcida.
— Acorde, madame Vêrá, acorde que está na hora! — gritou espalhafatosa, agitando o envelope lacrado que o colega da recepção lhe viera transmitir.
Petrificada, a macambúzia fez ouvidos de mercador, prosseguindo a mirífica e hipnótica contemplação em que parecia irremediavelmente embebida.
— Mas que mulher cabeçuda! Nunca vi ninguém tão teimoso como você, madame! Eh! Teimosa e ingrata é o que você é, Vêrá! Prisioneira, levante-se e escute a decisão do juiz! Allez! — Vamos!— De pé e em continência!! — ordenou enérgica, mostrando-lhe uma cara de poucos amigos.
— Pardon?! — Desculpe! A madame disse juiz? — questionou assarapantada, saltando da cama para agarrar o envelope branco.
— Para trás, menina insolente! Se fosses minha filha, já tinhas apanhado dois pares de açoites nesse rabistel ou dois bofetões que até andas de lado!
— Ah! Você é má!!
— Má?! Eu? Má e mal agradecida é a madame Vêrá!
— Desculpe, madame, desculpe! — escusou-se arrependida.
— Bom, por esta vez e porque não quero ficar com má impressão sua, está desculpada, mas para a próxima, se me volta a cair entre as mãos…
— Se me volta a cair entre as mãos?! Ouvi bem, madame?
— Ah! Afinal a insolente não é surda! Hum! Se eu pudesse rasgava ou queimava esta carta para a obrigar a ficar aqui mais uns dias, mas…
— Oh! Merci! — Obrigada! Hum! Você foi muito gentil, Renée! Hum! — exultou comovida, beijando e abraçando violentamente a guardiã
— Eh! Pare e ganhe juízo que as outras prisioneiras vão ficar cheias de ciúmes, Vêrá! — murmurou baixinho, recuando assustada.
— Eu sou bem maluca, não sou, Renée!
— Maluca? Você é tarada, menina! — cochichou irónica, empiscando envergonhada e adoptando uma pose autoritária para ler o cartão.
— Vá, leia logo! — implorou a impaciente.
— Eu, Alphons Schmitt, Juiz da Comarca do Luxemburgo, em virtude dos poderes que me são concedidos, ordeno que a Senhora Vera Da Silva Moreira Cabral, seja posta imediatamente em Liberdade. Luxemburgo, 6 de Outubro de 1998, 13h25’. O Juiz, assinado Schmitt Alphons — leu pausadamente, antes de acrescentar: Está livre, madame! Vá, arrume as suas coisas e chame um táxi ou alguém que a possa vir buscar. Boa sorte! Adeus! — disse cabisbaixa, virando-se.
— Renée! Renée!! — bradou comovida, obrigando a guardiã a voltar-se.
— Sim, Vêrá?
— Do fundo do coração, obrigada! Obrigada, Renée!!
— Allez! Taisez-vous, sinon je vais pleurer, Vêrá! — Vá, cale-se senão vou chorar! — disse confusa e corada, desaparecendo no corredor.
Ás quinze horas, a reclusa podia abrir os braços e dar meia volta no terreiro para melhor encher os pulmões com o insípido, mas arrepiante aroma da Liberdade! E até o Sol, testemunhando tamanha felicidade, se desfez em luz para dar mais brilho e mais cor àqueles olhos castanhos que, cheios de gratidão e fitando os Céus, procuravam cruzar os de Deus, mas o Omnipotente primou pela ausência para que a pecadora melhor sentisse a Sua bem-aventurada Presença.
Ao volante do carro que a conduzia até à estação do Luxemburgo, o polícia da judiciária, que, tal escravo, nos últimos meses, a seguira como fosse própria sombra dela, não se cansava de a olhar sorrir a rodos. E até parecia que a alegria contagiosa da prisioneira saltava para a rua, transformando em felicidade todas as pensas de quem, excluído da sociedade, deambulava triste pela cidade.
— Merci, merci beaucoup, monsieur Fellens! — Obrigada, muito obrigada, senhor Fellens! — agradeceu grata, apertando acanhadamente a mão do agente.
— Il n’y a pas de quoi, voyons! Allez! Bonne chance, madame! — Mas…, não tem de quê! Vá! Boa sorte, senhora! — respondeu o guarda, intimidado pelo olhar dela, que cruzou ao agarrar-lhe a ponta dos dedos.
Um sorriso, um discreto aceno de adeus e cada um seguiu o seu destino.
Até Diekirch, onde era aguardada pela Aline, Vera não se cansava de mirar através do vidro e, aproveitando a indefinição provocada na paisagem pela velocidade com que a carruagem deslizava sobre a linha férrea, repensar na miséria a que chegara a sua vida. Decidida, porém, a mudar radicalmente e a afrontar o tratante que desposara inocentemente, tomou o propósito de nunca mais se vergar perante nenhum homem, mas se, porventura, tal acontecesse, o felizardo que caísse nos seus braços teria que pagar a preço de ouro o presente para que, quando o fim da aventura chegasse, a sua alma libertina, que seria a dela doravante, se sentisse orgulhosamente redimida do passado, para ousar afrontar sem a menor sombra de pesar ou inquietação o futuro.
Não, a Vera da Silva abandonaria o apelido Moreira Cabral do marido e jamais aceitaria ser a madame de alguém, fosse o senhor de estirpe milionária e se chamasse Gates ou descendesse ele de um Bourbon Nassau Windsor Orléans & Bragança. A prisão abriu-lhe os olhos e fez dela uma mulher insubmissa e livre. Livre! Livre como o vento, o pensamento ou Deus no firmamento.
E nem mesmo um derradeiro solavanco da carruagem a fez mudar de opinião. Obcecada pela Liberdade, a passageira nem se apercebeu que chegara ao fim da viagem e lá permaneceu estática no banco agarrada à sua aprazível miragem.
— Vera! Vera!! Ei! Estou aqui, Vera! — gritou-lhe a prima, mal a viu colada à janela, agitando espalhafatosamente os braços.
— Ah?! — bradou atónita, esfregando os olhos.
— Acorda, mulher! Hum! Parece que andas com sorte!
— Com sorte eu?! Não brinques comigo, Aline!
— Então, Vera, se a linha não terminasse aqui, distraída com estavas, ias parar à Alemanha, rapariga!
— À Alemanha?! Ao fim do mundo, Aline, ao fim do mundo é que eu iria parar, Aline!
— Ao fim do mundo, Vera?! Não me digas que…
— Se soubesses no que vinha pensar!…
— Nem imagino! Em que pensavas tu, Vera?
— Vou pedir o divórcio ao Inácio e nunca mais nenhum homem se há-de gabar de me ter gozado!
— Oh! Não?! — bradou incrédula, sacudindo a cabeça de espanto.
— Agora, que sei o que é a prisão, nem que viesse o rei de Inglaterra para me meter uma argola no dedo, não deixaria! Preferiria mil vezes abrir-lhe as pernas!!
— Só podes estar maluca, mulher!
— Maluca eu?! Nunca estive tão ajuizada! Os homens são todos uns trastes, mas deixa lá que eles vão pagar-mas, Aline!
— Credo! Vens tão mudada, Vera!
— Mudada?! Nem imaginas a sorte que tu tens, Aline!!
— Sorte? Eu? Porquê?
— Na rifa da vida, enquanto a ti te saiu o Paraíso, a mim calhou-me o Inferno!
— Vá, dá cá o saco e conta-me lá essa história que agora quem ficou a ver navios fui eu — disse Aline, enfiando a trouxa no banco traseiro.
— Cuidado com o trânsito! — aconselhou Vera, sentando-se ao lado da prima.
— Parece que estás com medo de morrer, rapariga!
— E não é para menos! Já agora; que conheci o Inferno e o purgatório, não queria ir desta para melhor, sem saber como é o Paraíso! — arguiu enigmática.
— Por favor, troca me lá isso por miúdos, Vera! — implorou confusa.
— Calma, que na estrada para Ermsdorf, depois de atravessar-mos a ponte de Diekirch e passarmos a Opel, eu conto-te!
— Ah! Passámos diante do escritório do Hugo e eu nem me lembrei de to mostrar! Fica no rés do chão da residência Mirabeau, ali mesmo na esquina! — disse Aline, segurando o volante com a mão esquerda e apontando com a direita para trás.
— Pois, deixa lá! Outro dia viemos com mais tempo e aproveitamos para passear pelo jardim e levar a Florbela ao baloiço que fica perto do repuxo. Coitadinha da minha filha! Como terá ela passado estes dias todos?
— Não te preocupes que a senhora Dora não lhe deixa faltar nada. Vá, conta-me lá essa história do Paraíso!
— Paraíso?! Que Paraíso?? — volveu esquecida de todo, enxugando a lágrima que chorara pela filha.
— Sim, porque é que eu tive mais sorte que tu? Já não te recordas? Ah! Tu estás
perdidinha de todo, rapariga! Diz, os guardas bateram muito na cabeça, bateram?
— Oh! Bem se vê que nunca estiveste na prisão, Aline!
— Prisão?! Ai, credo, cruzes! Que o diabo seja surdo, Vera! — arrepiou-se a prima, accionando distraidamente a buzina que se escondia no centro do volante.
— Ei! Não apites que a polícia pode vir atrás de nos! — atemorizou-se a presa, mirando instintivamente para trás.
— Deixa lá os gendarmes em paz e explica-me lá essa história do Paraíso! — insistiu Aline, reduzindo a velocidade para iniciar a subida de Gilsdorf.
— Ah! Pois… Tu és uma felizarda porque, depois de uma infância dourada, em que os teus pais que te cobriram de mimos, tiveste a sorte de casar com o Gilberto, que é um homem trabalhador, honesto e satisfaz todos os teus caprichos! Tu estás a conhecer e a gozar o Paraíso na Terra, Aline! — desabafou enciumada.
— Realmente…, visto por esse prisma, tens razão! Mas, coragem, Vera, que tu ainda és muito nova e, bonita como és, ainda hás de encontrar alguém que te ame e faça muito feliz! Haja fé!
— Eu nasci para sofrer! E então agora, que estou manchada e marcada pela desgraçada nódoa da prisão, nunca ninguém me amará de verdade! Achas que se no tempo da inocência não cheguei a tomar gosto e a conhecer o rosto da felicidade, algum dia terei essa sorte? Primeiro, na infância, os meus pais trocaram pelo dinheiro e abandonaram-me como uma trouxa, obrigando-me a afrontar sozinha o mundo dos adultos e ser mulher antes do tempo. Depois, na adolescência, imatura e sedenta do amor que eles nunca me deram, a premente falta de afeição fez-me sucumbir ao charme da na ilusão e embarcar, para desgraça minha, na cantiga do Inácio. Coitado, no fundo, ele até nem era mau tipo e queria oferecer tudo o que eu lhe pedia, mas ninguém pode dar o que não tem, Aline. Se rico não era, amor nunca conhecera nem tivera: o Inácio ainda era mais infeliz que eu! Sozinho, ele vivia no purgatório, mas ao casar-se comigo, e ao arcar com a responsabilidade da família, quis libertar-se da miséria e, sonhando alto demais, começou a perder o contacto com a realidade…
— Que se agarrasse ao trabalho!
— Falar é fácil, quando nunca se desconhece a verdadeira face da dificuldade, Aline! Sabendo que só podia livrar-se do purgatório pelo sonho, o Inácio quis saltar no abismo, pensando que do outro lado encontraria o Paraíso, mas caiu no Inferno, arrastando-me com ele. Que Deus o tenha dó dele e o ajude a sair de lá, se pode, e a mim nunca mais me deixe aí voltar, se não quer que eu entregue a minha alma ao diabo! — ameaçou irada, enxugando as retinas flamejantes onde se reflectia a toda a dor mundo.
— Deus é Pai, Vera, Deus é Pai!
— Então que não me abandone como o meu!
— O teu, Vera?! Se o teu pai te abandonou um dia, foi que tivesses uma vida melhor, um futuro mais risonho! Ele não o fez por mal! Vá, não o julgues…
— Eu não o julgo nem tampouco estou zangada, Aline, porque sei que ele vela por mim e pela Florbela. Ainda ontem sonhei e falei com ele…
— Falaste com ele?! Então agora dá-te para falar com os mortos, Vera?!
— Dá e faz-me bem! Parece estranho e nem sei explicar, mas, depois da conversa, sinto-me muito mais aliviada e confiante na vida. Os nossos mortos também sofrem, velam e rogam por nós.
— Deus que me perdoe, mas não acredito nisso!
— Pois eu acredito. Como te dizia, ainda ontem sonhei com o meu paizinho e ele disse-me que tivesse coragem, porque hora a hora Deus melhora e hoje estou livre! Se não foi ele quem rogou a Deus por mim, quem podia ter sido, Aline!
— Não se tivesse o Hugo ocupado de ti e falado com o juiz e…
— O Hugo?! Ah pois, o advogado! Sim, ele mostrou-se muito gentil e ainda esta manhã me deu muita coragem. Se ele não tivesse aparecido no tribunal, me tivesse aconselhado e tocado no braço…
— Ah bom?! Então o Hugo tocou-te no braço?
— Tocou-me no braço, sorriu-me e passou o tempo todo a meu lado a dizer-me que tivesse calma! É, tens razão, só pode ter sido o advogado quem me arrancou da prisão! — disse pensativa, alegrando o seu olhar contemplativo.
— E se fôssemos ver a Florbela? — sugeriu Aline, na lomba que antecedia a derradeira subida de Ermsdorf.
— Claro, mas primeiro deixa-me ir mudar de roupa e deitar um perfume.
— Então será melhor deixar-te em tua casa, enquanto faço as camas e dou uma arrumadela à minha, que me levantei de madrugada.
— Pegaste mais cedo ao trabalho para me ires esperar estação, não foi, Aline?
— Oh! Deixa lá, Vera! Não é a primeira vez que vou acordar a patroa!
— Só te meto em trabalhos, eu sei. Um dia, porém, se eu não puder ou não tiver tempo, Deus há-de pagar-te e com juros, Aline!
— Se eu estivesse no teu lugar, gostaria que me ajudassem e estou certa que tu também me ajudarias. Ainda bem que, connosco, a família ainda serve para qualquer coisa, Vera!
— Ainda bem! Mas, de qualquer maneira, quero que saibas que aprecio imenso a tua ajuda. Obrigada, Aline! — acrescentou grata, pegando no saco e saindo para o terreiro, donde saíra com o marido para conhecer a maior vergonha da sua vida.
— Ora essa! Não tens de quê, Vera! Vá, não te aparates muito, senão a Florbela ainda pensa que foste para alguma festa e não a quiseste levar — traquinou Aline.
— Hum! Ciumenta ou invejosa?
— Ciúmes, Vera?! Só se for da minha afilhada! Agora quanto à inveja…
— Esquece, Aline, esquece! Era asneira…
— Asneira?! Tu?! Tu andas com a pulga atrás da orelha, Vera!
— Eu?!
— Tu, pois, quem devia ser?
— Vai arrumar a casa e aproveita para limpar também a cabeça! — ironizou Vera, lançando-lhe um beijo de adeus.
— Mas tu vieste marafada da prisão, rapariga!
— Marafada, estragada, maluca e sem nada na cuca, Aline! — berrou galhofeira, saltitando como uma criança.
— Depois da prisão, qualquer dia ainda vais parar ao manicómio, Vera!
— Manicómio?! E porque não?
— Ela vem doida de todo! Ela perdeu o juízo a maluca! — monologou Aline, dando meia volta e subindo a ladeira.
Vinte minutos mais tarde, em Larochette, passando diante da Brasserie de l’Ernz Blanche, onde trabalhava, Vera olhou para lá e viu Carminda a paquerar o cliente do costume, um homem casado e pai de quatro filhos, a quem queria lançar o anzol. “ Sua lambisgóia! Desavergonhada! — sussurrou entre os dentes e de soslaio para que a prima não se apercebesse da raiva que sentia pela cunhada.
Preocupada com o trânsito, Aline não ouviu nada. E, rolando pacatamente mais trezentos metros, viraram par a rua Michel Rodange para fazer uma surpresa à Florbela, que, àquelas horas, quatro da tarde, já devia estar sentada à mesa a tomar o lanche com os outros meninos. Pedindo à prima que parasse mesmo diante do balcão da casa da ama, Vera saltou do carro e, sorrindo para consigo, correu a carregar na campainha. Foi a senhora Tavares quem abriu a porta e, recuando dois passos, a arrastou pelo braço para o corredor, para que ninguém ouvisse.
— Vera!! Você aqui, Vera?! — indagou atónita, arregalando os olhos e enxugando a mão molhada ao avental.
— A Florbela sentiu a minha falta, senhora Dora?
— Um pouco, no princípio, mas depois habituou-se.
— Posso vê-la?
— A Florbela não está cá, Vera!!
— O quê?! A Florbela não está cá?? — retorquiu aflita e incrédula.
— A assistente social veio cá roubar-ma ontem à tarde! — revelou a ama.
— A assistente social??… Mas com ordem de quem, senhora Dora? Com ordem de quem?? — perguntou desvairada, batendo com os punhos na porta.
— Acalme-se, Vera, que a menina saiu daqui a mando do juiz e foi para uma casa onde a justiça põe todas as crianças órfãs e abandonadas. Desculpe, mas a polícia vinha com a assistente social e eu não pude fazer nada. De resto, a Florbela partiu toda contente: eu disse-lhe que você foi trabalhar para longe, porque lá ganharia muito dinheiro para lhe comprar uma Barbie para o Natal, e que depois iria lá visitá-la.
— Para onde a levaram?
— Para a Casa Dom Bosco.
— E onde fica essa Casa Dom Bosco? Sabe, senhora Dora?
— No Luxemburgo, mas… Aline!! Chegue aqui, Aline! — gritou impaciente, da soleira da porta, acenando desesperadamente.
Ouvindo o apelo, Aline desligou o motor e, arrancado a chave, correu lesta.
— A Florbela está desde ontem na Casa Dom Bosco do Luxemburgo, que fica perto do parque do Galcis, onde se faz a festa com os carroceis e a roda gigante.
— A Schouberfouer?
— Isso a chuvafoua ou lá como é! O parque onde o Papa rezou missa, quando veio ao Luxemburgo, e que fica mesmo diante do antigo Consulado de Portugal.
— Sim, sei muito bem onde é, senhora Dora e a Casa Dom Bosco também.
— Então correi e ide lá ver a Florbela. E você desculpe e não chore, Vera, que ninguém faz nada contra a justiça! — lamentou-se a ama, consolando aquela mãe lacrimosa.
— Eu sei, senhora Dora, infelizmente, eu sei! — disse Vera resignada, enxugando as lágrimas e cerrando os punhos para arrebatar a aflição na garganta.
— Vá! Então? Se foi o juiz quem mandou, a menina está em boas mãos e não lhe falta nada! Sossega, Vera, que a minha afilhada já é uma mulherzinha!! — encorajou a madrinha, batendo na espádua da prima.
— Mulherzinha? Ó pobre… — murmurou a inconsolável, soltando o desabafo que trazia no seu atormentado coração maternal.
— Pobre, não! A Florbela é uma rica menina, ouviu? — admoestou a ama.
— Pronto, vamos lá, Vera, que as lágrimas não chegam ao Céu nem tão pouco resolvem nada! — retorquiu corajosamente a madrinha, empiscando à senhora e agarrando a prima pelo braço.
— Se a virem e falarem com ela passem por aqui ou telefonem-me, ouviram?
— Fique descansada, senhora Dora, que, se falarmos com Florbela, viremos cá dar-lhe o beijinho que ela mandar.
— Obrigada, Aline, mas diga lá a esses letzebóias que eles não cuidam melhor da Florbela que eu! Mais rica que a minha, essa Casa Dom Bosco pode ser, mas mais amor não lhe dá seguramente! — garantiu comovida, enxugando as lágrimas à ponta do avental.
— Ai-ai! Parece que hoje só me saem choramingueiras! Vocês vejam lá o que fazem, que, quando tal, Larochette fica inundado! — opinou reinadia, correndo a pôr o motor em marcha.
Saindo cabisbaixa e soluçante, Vera nem respondeu ao aceno da ama da filha, enfiando-se envergonhada no carro.
Deslizando calçada abaixo, a viatura aproximou-se do canto da Farmácia e, espreitando o tráfego que vinha dos lados do Castelo, virou para a Place Bleiche, que contornou, antes de seguir para a capital pela sinuosa estrada que atravessa o vale da Ernz Blanche, zona de florestas e prados verdejantes, propícia para a caça e a pastorícia, onde os soberanos do Luxemburgo edificaram o castelo de Fischbach, residência do príncipe Henri, actual Lieutenant — Tenente — do Grão Duque, Sua Alteza o Grão Duque Jean, seu pai e neto da Princesa Maria Adelaide de Bragança, em que delegou o poder, depois de trinta e quatro anos de um sábio e próspero reinado.
Chegando à Casa Dom Bosco, Aline estacionou o carro perto do Ciné Utopia e pediu à Vera que dominasse os nervos e a deixasse falar a ela, porque os luxemburgueses são mais atenciosos e respeitosos quando se lhes dirigem na língua deles, dialecto germânico com resquícios de francês, nos primórdios da escrita, particularmente difícil para os latinos, nomeadamente os lusófonos, que lhe preferem a língua de Molière.
A noite começava a cair sobre a cidade, quando, atraídas pela luz que saía de uma ampla janela, se abeiraram dela, espreitando cautelosamente para o interior. Sentada elegantemente à mesa, Florbela comia e sorria como a mais feliz das crianças, comovendo quem a espiava.
— Estás tão bonita, filha! — cochichou baixinho a mãe, estancando as lágrimas com um lenço de papel que trazia de precaução na mão.
— E se a deixássemos e fôssemos falar primeiro com Hugo? — sugeriu Aline.
— Se calhar não é má ideia — anuiu Vera, assoando-se sem fazer ruído.
— Vamos, antes que nos vejam! — sussurrou a madrinha, lançando um beijo furtivo à afilhada e retirando-se pé ante pé.
E, apesar do orgulho que sentia ao descobrir que a sua menina portava como uma gente grande, Vera obedeceu, seguindo cautelosamente as pegadas da prima, que, adiantando-se e olhando-a, lhe pedia que baixasse a cabeça, a roçar pelo parapeito da janela.
Retornando a casa pela estrada de Echternach, — a cidade mais antiga do país, que neste ano celebrava mil e trezentos anos e fora fundada por Saint Willbrod, o bispo que convertera os pagãos destas paragens e aí construíra uma abadia, donde difundira a Fé Cristã pelas terras bárbaras da Europa do seu tempo — elas não se encheram de falar da menina dos olhos delas.
Em Ermsdorf, Aline telefonou imediatamente ao Hugo, contando-lhe o sucedido com a Florbela e rogando-lhe que a ajudasse a ela e à Vera, que estava ao lado dela, a tirar a inocente do orfanato onde se encontrava por ordem do juiz. Escutando-a sem a interromper, o advogado pediu-lhe que não saíssem de casa e fizessem um cafezinho, pois dentro de cinco minutos estaria junto delas para as ouvir de viva voz e as aconselhar o melhor que pudesse.
Pousando o auscultador, Aline disse apenas:
— O Hugo vem aí!
— Ainda bem, porque muito tenho para lhe agradecer, mais lhe pedir e uma pergunta lhe fazer.
— Uma pergunta?! Que pergunta?
— Ah! Isso… é… privado e não te posso responder, por enquanto, pelo menos.
— Estás a deixar-me intrigada, rapariga! Não me digas que…
— Que quê, Aline?
— Que…, que…, sei lá!… Que lhe estás a lançar…
— O anzol como a lambisgóia da minha cunhada ao outro, é?
— Anzol não direi, mas um olho charmoso, como dizem os brasileiros…
— Não, Aline, não me atreveria a tanto! Estou-lhe muito grata, e sê-lo-ei toda a vida, mas ainda tenho os pés bem assentes no chão e não esqueço quem sou: uma mulher casada, com uma filha nos braços e, já agora, toma lá esta, divorciada, porque o Inácio nunca mais dormirá comigo na cama!
— O Inácio não, mas…
— Ah claro que não irei para um convento nem tão pouco deixarei de viver plenamente a vida, como qualquer outra mulher. Quanto ao Hugo, que era a ele que estavas a referir, eu percebi-te muito bem, sua malandra, tira o cavalinho da chuva, que o menino, — eh! O senhor advogado tem uma carinha de menino!, — frisou risonha — não é do meu mundo, mas se um dia ele atrevesse a meter-me nele, a família nunca permitiria tal afronta, disso não tenho a menor dúvida, Aline!
— Oh! Tens a família dos meus padrinhos em muito má conta! Eles são do nosso mundo, rapariga!
— Isso é o que tu pensas, Aline, e é verdade, mas eles…? Quem se julgam eles que são? Por mim, não os conheço e até os julgo, pelo que fizeram pelo filho, pessoas de bem e merecedoras da maior admiração, porque não deve ter sido fácil para eles custear as despesas dos estudos dele e dos irmãos que, que parece, também têm uma óptima profissão.
— Então porquê essas dúvidas todas, Vera?
— Não sei! Talvez seja o meu sexto sentido ou…
— Ou?
— Ou medo de sonhar!
— Medo de sonhar, Vera?!
— Sim, Aline, eu já quebrai tantas vezes a cara que agora nem a sonhar me atrevo! Vá, não me obrigues a sonhar, que dos meus sonhos só saíram pesadelos e medonhos! Monstruosos! Tão monstruosos que me conseguiram arrastar para a prisão! Não! Agora, até de sonhar estou proibida! Deixai-me arrumar primeiro a minha vida, divorciar-me e cicatrizar as chagas que trago em ferida aberta no coração, porque a prisão…
— Psch! Ouviste bem? Parece-me que…
— É ele! — cochichou Vera, mal colou o nariz na janela, ajeitando as calças e passando a língua pelos lábios para lhe avivar a cor.
— Ei! Vê lá que pergunta lhe vais fazer, menina! — advertiu Aline, antes de correr a abrir a porta ao advogado.
— Olá! Como vai, madame Da Silva?
— Se a Florbela estivesse aqui, seria a mulher mais feliz do mundo, Hugo!
— Como se sente, madame Moreira Cabral?
— Melhor, muito melhor, graças a si, senhor advogado! Muito obrigada, pelo que fez por mim nos últimos dias! — agradeceu Vera, corando e apertando-lhe nervosamente a mão gelada.
— Bom, o que eu vou dizer agora, não tem nada a ver com o Maître Amado, mas sim com o filho da tua madrinha, Aline — observou o advogado, entregando-lhe o paletó preto.
— Vá! Deixa-te de etiquetas e desembucha, homem!
— Então onde está o café que te pedi?
— Por fazer, mas não demora, Hugo! Vai lá para a sala que a Vera tem uma pergunta para te fazer!
— Só uma é pouco! — comentou risonho, pegando na esferográfica.
— Estai à vontade…
— A Aline disse-me que a madame Cabral quer tirar uma dúvida. Que dúvida é essa? — adiantou o advogado, fitando a cliente um tanto incomodado.
— Dúvida, doutor?!
— Sim, parece que a Vera deseja pôr uma questão!
— Eu só queria fazer-lhe uma pergunta, mas já desisti!
— Já desistiu?! Assim tão depressa? Fazia-a mais corajosa e combativa, madame! Enganei-me? — questionou Hugo, sentando-se no sofá oposto ao dela.
— Não! Com certeza que não, senhor doutor!
— Uf! Ainda bem!
— Só que há perguntas ou dúvidas, se preferir, que têm uma hora e local próprios para se fazerem ou desfazerem, não acha?
— Perfeitamente!
— Então deixemos essa questão delicada e de foro pessoal e passemos ao que importa. Como e quando é que posso recuperar a Florbela, senhor doutor?
— Sinceramente, não sei, mas penso que rapidamente, uma vez que ela deve ter sido posta no orfanato por precaução e na falta da autoridade parental. Agora, porém, como a senhora foi reconhecida provisoriamente inocentada e, como tal, pode exercer novamente a sua autoridade maternal sobre ela e, confesso-lhe, como foi esse um dos trunfos que utilizei esta manhã perante o Senhor Doutor Juiz, a guarda judicial da sua filha já não se justifica — argumentou confiante.
— Pois, mas quando, senhor doutor? — insistiu o seu coração maternal.
— Se sair para a semana…
— Hoje não, que já é tarde, mas amanhã…
— Amanhã?! Você não é a minha única cliente, madame Cabral!
— Mas sou a que mais precisa de si!
— Ah! Disso já não estou assim tão seguro, madame...
— Chega! Por favor, não me chame mais madame Moreira Cabral, que, apesar de ainda o ser, já não me sinto!
— Então como prefere que eu lhe chame?
— Sei lá! Vera! Madame!
— Eu nunca vi uma madame sem nome!
— Olhe, se a Vera lhe não der jeito, prefiro que me chame mademoiselle, menina, senhorita! Tudo, menos madame Cabral, ouviu? — retorquiu alterada.
— Ei, Vera, fala mais baixo que o Hugo não é surdo! — repreendeu Aline, segurando um tabuleiro com três chávenas, um bule fumegante, um açucareiro, quatro colheres de chá e uma bandeja com doces.
— Desculpe, se ergui a voz, senhor doutor, mas foi sem querer!
— Não tem nada que me pedir desculpas, senhorita, e, sobretudo, não mude nada que é assim que tem mais charme! Oh! Desculpe, Vera! — confessou ingenuamente o advogado, corando e fitando a anfitriã bastante acanhado.
— Uf! Até parecia que a senhorita, como disse, além de ingrata era mal-educada, o que, diga-se, nunca foi, mas, como hoje já lhe ouvi tantas…, não me admiraria nada que a prisão tivesse transformado a Vera numa fera! — ironizou Aline, empiscando ao hóspede.
— E se tomássemos o café? — sugeriu o advogado, adiantando-se às mulheres.
— É cala-te boca senão sai asneira! — apoiou Vera, pondo a chávena debaixo do bico do bule para que o Hugo a servisse, como ele insistia.
— Pois… asneira! — murmurou o cavalheiro.
— Os advogados também dizem asneiras, Hugo?
— Dizem? Ui! É muito pior que isso: fazem, Aline, fazem-nas!
— E se deixassem de fitas ou… de asneiras? — questionou Vera, corando inexplicavelmente.
— Então falemos da Florbela! — sugeriu a madrinha.
— Como é a Florbela, que não conheço? — perguntou curioso.
— Ah! A minha afilhada é um amor de criança! Olha, quando soube da desgraça, eu telefonei à ama e disse-lhe que não me oferecia para a perfilhar! — confessou vaidosa.
— Não me digas que chegaste a pensar fazer isso pela minha filha?
— Ainda duvidas, Vera?
— Não, não duvido e agradeço-te imenso esse gesto, Aline!
— Vocês falam com tanto amor e carinho da Florbela que estou morto por a conhecer! — interferiu Hugo, subjugado pelos olhos castanhos da mãe da menina.
— Tens bom remédio, rapaz!
— Qual, Aline?
— Pegas no telefone e convences o juiz a deixá-la vir para casa!
— A estas horas, rapariga?! Os juizes não estão sempre no tribunal…
— Telefona-lhe para casa ou para o celular! Anda!
— Ei, a minha confiança com o Senhor Doutor Juiz não chega até esse ponto e o meu respeito por ele não me autoriza a isso. Hoje não, mas amanhã…
— Pronto, tu lá sabes, mas ai de ti que não me tires a minha afilhada do orfanato! Não te pago! — ameaçou Aline, empiscando à prima.
— Esteja sossegado, senhor doutor, que serei eu quem lhe pagarei os seus honorários, porque fui eu quem fiz a asneira…
— Ei, caramba, Vera, até parece que, se ainda não fizeste, te preparas para cometer mais alguma asneira!
— Só Deus sabe, Aline, só Deus sabe, o que o futuro me reserva! — desabafou cabisbaixa para esconder a inquietação que morava no seu olhar.
— Não te atormentes e não caias mais em armadilhas, que a família cá estará para te ajudar, se precisares.
— Obrigada, Aline, mas amanhã irei falar com o meu patrão e, se ele quiser, volto ao trabalho, que dinheiro é coisa em não nado.
— O seu patrão vai recebê-la de braços abertos, Vera! — adiantou Hugo.
— Porque diz isso, senhor advogado?
— Porque, quando a polícia o interrogou a seu respeito, teceu-lhe os mais eloquentes e honrosos elogios. O seu patrão aprecia muito o meu trabalho, sabia?
— Sim, desconfiava, mas…
— Mas quê? O que é que receia, Vera?
— O ambiente… Ainda não sei como encarar as pessoas, as boas e as más!
— Sobretudo não mude nada e marche de sempre de cabeça erguida, porque não há nada que lhe apontar. Pelo contrário, você deve sentir-se orgulhosa do que fez nada vida, pois nem todos teriam resistido como a Vera resistiu a tudo e que tive e tenho todo o orgulho em a defender! Parabéns e amanhã, se Deus quiser, poderá certamente beijar e abraçar a sua menina! — acrescentou sereno.
— Oxalá que Deus o ouça, senhor advogado! — implorou Vera confiante.
— Não, de preferência o juiz! — corrigiu Aline, empiscando a Hugo.
O advogado segurou o queixo com a mão e, sorrindo à senhorita do seu coração, murmurou confuso e corado:
— Com a ajuda de ambos seria bem melhor!
As mulheres olharam-se em silêncio e, meneando as cabeças, manifestaram-lhe a total aquiescência, forçando o homem de leis a franzir a testa, antes de esboçar um esperançado sorriso a ambas.
Depois de tomar o café, Hugo consultou o relógio e, arregalando as órbitas de pasmo, apressou-se a despedir-se de Vera, apertando-lhe a mão de fugida. Acompanhando o advogado à saída, Aline sussurrou-lhe ao ouvido, ao entregar-lhe o paletó negro:
— Não sei se já te apercebeste disso, Hugo, mas tu és a única esperança da Vera! Por favor…
— Pschiu! Não digas mais nada, Aline!
E realmente as palavras quedaram-se por ali. Desaparecendo irracionalmente na rampa de Ermsdorf, o Volvo 144 do advogado pôs-se em Diekirch num abrir e fechar de olhos. Enfunado por miragem idílica, Hugo parecia viajar noutra dimensão. Apaixonado, aquele coração varonil já nem sentia as palpitações e nas retinas flamejantes daqueles olhos cegos pairavam apenas as imagens libertinas de um amor impossível.
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