domingo, 16 de março de 2008

Caprichos de Amor: Quinta, 2 de Agosto ( 17º DIA )

Quinta, 2 de Agosto
 ( 17º DIA )



Antes de descer, já mudada e perfumada, Dina passou a beijá-lo no rosto e a sorrir-lhe meiga, porém ele, elevado no sono, não se apercebeu de nada. O arquitecto, que seguira a esposa, também se comoveu com o seu indefeso aspecto angelical.

Entretanto, a senhora Noémia, a braços com a azáfama da limpeza, nem se lembrou mais dele. De aspirador em punho, ela limpou o pó dos tapetes, arrumou a cama dos patrões e, quando entoava Coimbra tem mais encanto, ouviu gemidos. Aflita, largou tudo e foi ver. Mesmo abafado pelos lençóis e pela colcha, o adolescente batia o queixo, tremelicando de frio e alagado de suor.
― Nossa! O menino está com febre! ― bradou alarmada.
― Oh! ― choramingou ele, agarrando-se aos lençóis.
― Bote lá a língua de fora, Ruizinho.
― Âaaah! ― balbuciou o doente.
― Como está branca! Deixe-me ver a testa ― disse ela, pousando-lhe a mão na fronte suada para lhe tirar a temperatura.
Inquieta, cobriu-o bem e desceu a avisar o arquitecto que se entretinha com os papéis.
― Senhor doutor, senhor doutor! ― exclamou ofegante.
― Que se passa, senhora Noémia?!
― O menino está doente.
― Que me diz?! ― volveu aflito.
― Venha ver ― convidou ela, virando-lhe as costas.
Mais lesto, o Dr. Félix ultrapassou-a no corredor e, galgando os degraus aos dois e aos três, acorreu à mesinha de cabeceira do afilhado.
― Meu filho! ― bradou emocionado, sentindo-lhe os tremeliques.
― Tenho frio, padrinho ― choramingou o doente.
― Tenha calma, Rui, que o senhor doutor vem já. Vá, deixe-se estar assim bem coberto e não se aflija que isto não é nada. - disse o arquitecto, dominando a aflição que lhe ia na alma.
E, retirando-se aflito, pediu à governanta que visse se tudo estava em ordem, pois ele iria telefonar e pedir ao doutor Campos, o médico familiar, que viesse. A velhota só mudou as toalhas da casa de banho e fez um chazinho ao doente.

Antes do meio-dia, já o doutor lhes passava a receita para irem à farmácia comprar os medicamentos e os tranquilizava, dizendo-lhes que o jovem tinha uma óptima compleição física e que aquele resfriado passaria rápido. Na hora do almoço, a jornalista ligou ao marido, mas ele não lhe disse nada. Depois de ajudar o afilhado a tomar os comprimidos, o arquitecto desceu para o terraço, onde, de cachimbo nos beiços, aguardou as visitas, perscrutando a curva do pinheiro manso como um menino curioso. Mal avistou o BMW descapotável do colega, sorriu, acenou e desceu a para os acolher na entrada.
― Olá Susana, Edgar, menina! Como estão?
― Bem, senhor doutor. E vocês? ― disse a graciosa donzela fora do carro, oferecendo o rosto ao padrinho do rapaz que ali a arrastara.
― Mais ou menos, Cristina ― respondeu o arquitecto, beijando-a distraído.
― Que se passa, Félix? ― perguntou-lhe a professora, inquieta.
― O meu afilhado está doente, mas o médico diz que é um mero resfriado ― disse ele, ao cumprimentá-la, tentando disfarçar a emoção.
― É, isso passa depressa ― disse o advogado, apertando-lhe a mão nervosa.
― Onde é que o Rui está, Dr. Félix?! ― perguntou a adolescente, tristonha.
― No quarto dele, Cristina.
― Posso ir vê-lo?
― Claro que pode! ― exclamou o arquitecto, sorrindo-lhe meigo.
E, desatando a correr, a donzela largou-os diante do carro. Fazendo chiar os chinelos de sisal pelas escadas, lesta, ela nem sentia as pernas. No patamar, parou ofegante e, depois de se acalmar, murmurou baixinho:
― Posso entrar, Pat?
― Tchut! O menino está a dormir, Cristina ― implorou-lhe a velhota.
― Posso ficar aqui, ao pé dele, senhora Noémia? ― cochichou comovida.
― É, fique aqui, menina. Se você soubesse como ele me fala de si! Coitadinho do meu Ruizinho! ― bradou a idosa, acariciando-lhe as fontes com ternura.
Comovida, Cristina olhou-o e ajoelhou-se muda diante dele, beijando-lhe carinhosamente os dedos inertes. Depois, sacudindo a longa madeixa dourada para trás, colou-lhe levemente os lábios no rosto plácido, mas ele não se mexeu. Admirando-lhe as sobrancelhas castanhas e a boca ressequida, assentou-se timidamente no espaço livre da cama. E, tal anjo da guarda, lá ficou em adoração. Rui Patrício dormia e da sua fisionomia transparecia, de vez em quando, os estigmas da debilidade que tanto compadecia o coração magoado da doce Cris.
Entretanto, os adultos vieram deitar uma olhadela ao doente, mas, como ele continuasse elevado no sono, voltaram para o terraço, sorrindo à Cristina que, toda mimos, lá continuou assentada e vigilante.

Finalmente, a meio da tarde, depois de duas horas de compaixão, a adorável enfermeirinha viu-o abrir vagarosamente as pálpebras e olhá-la perplexo. A ternura da moça comoveu-o. E, comovidas, as suas retinas vidraram-se e alagaram-se. As lágrimas começaram, então, a rolar-lhe pela face. Tossindo forte, ele passou a língua pelos lábios ressequidos e, enxugando-se à ponta do lençol, balbuciou:
― Cris!
― Tchut! Descansa, Pat! ― cochichou-lhe meiga, baixando-se para o beijar levemente na testa e lhe aplanar as sobrancelhas humedecidas.
― Eu..., eu... ― murmurou ele, sentindo a voz embargada.
― Eu sei. Mas eu também te amo muito, muito, Pat! ― disse emocionada, adivinhando-lhe os pensamentos.
Então, agarrando-lhe as mãos angelicais, ele beijou-as febrilmente. Arrastada pela compaixão que ele lhe suscitava, Cristina inclinou o tronco e ofereceu-lhe a testa para que a febre dos lábios secos, colando-se-lhe à epiderme, sentissem quanto ela o amava. Depois, ouvindo-o pedir de beber, ela levantou-se e foi buscar-lhe um copo de água, avisando os pais e o arquitecto que subiram imediatamente para o reconfortarem e lhe desejarem as melhoras. Compreensivos, demoraram apenas cinco minutos e, deixando-o entregue aos cuidados da filha que, entretanto, lhes pedira para só a virem buscar ao pôr do Sol, quando a D. Dina estivesse de volta para continuar a cuidar dele. E, sob o efeito dos sedativos, Rui Patrício, muito mais aliviado, encostara-se no travesseiro e, segurando as mãos afáveis de tão sexy enfermeira, confessou-lhe a angústia que tanto o atormentava e fazia sofrer. A paixão enraizara-se tanto nas suas veias que o mínimo desfalecimento moral o precipitava para o abismo e lhe suscitava ideias funestas. Demasiado impaciente, ele não sabia esperar e dar tempo ao tempo. A obsessão desenfreada e louca roubava-lhe a paz da alma, tão necessária para o diálogo com Deus.

Naquela tarde, o brinde, com um colega aniversariante, atrasara um pouco a jornalista que só chegou, por volta das dezanove horas. Mal entrou em casa, a senhora Noémia avisou-a da doença do afilhado.
Aflita, Dina nem saudou o marido e acorrendo à cabeceira do doente, surpreendendo-o a acariciar a rival. Apanhada de surpresa, ela tentou disfarçar como pôde os ciúmes, mas Cris, lendo aqueles olhos defraudados, segurou corajosa e ostensivamente as mãos do adónis acariciando-as com redobrada ternura.
― Olá! ― disfarçou sorridente, nada perturbada com a cena.
― Olá! ― respondeu a donzela intimidada, largando a mão do doente.
― Com que então o menino adoece e não diz nada?! ― ironizou a jornalista bem-humorada, beijando-lhe afectuosamente o rosto pálido.
― A madrinha parece que está sempre a gozar comigo ― adiantou o jovem, fitando atenciosamente a amável e abnegada enfermeira.
― De manhã, antes de sair, passei por aqui, mas você dormia como um calhau ― afirmou Dina, mirando ostensivamente a intrusa.
― Felizmente que ainda há quem tenha pena de mim, não é Cris?
― É! ― balbuciou corada, evitando os olhos da rival.
― Bom, o que é que o doutor Campos lhe receitou? ― perguntou a jornalista, subjugada pela candura dos namoradinhos.
― Olhe, os remédios estão ali em cima da cómoda ― acrescentou o doente, apontando para as caixas dos medicamentos.
― Pronto, como a tua madrinha já chegou, vou-me embora, Rui. Amanhã telefonarei à senhora Noémia. Adeus! ― disse a donzela, levantando-se nervosa.
― Obrigado, Cris! ― agradeceu sereno, lançando um beijo furtivo que a donzela lhe devolveu graciosamente nas costas da madame Fontoura.
― Que Deus lhe pague, Cristina! - bradou Dina, lendo as instruções.
― Não é Deus, mas eu quem lhe deve pagar - acrescentou o doente.
― Adeus! Até amanhã! ― murmurou Cristina, sorrindo e acenando pela frincha da porta.
E um silêncio providencial caiu no quarto para acalmar os ânimos quase rotos da jornalista. Uns segundos de erógena visão bastaram para os reconciliar. Depois, lembrando-se da herdeira do Dr. Sampaio, Dina apressou-se a seguir-lhe as pegadas, aguardando juntas a chegada do advogado e esposa. Como eles demorassem, a senhora convidou a ingénua rival a tomar um refresco e aproveitou para lhe agradecer a gentileza que tivera para com o afilhado.
Quando os amigos regressaram, o arquitecto e a esposa faziam companhia à Cristina no jardim perto do portão. A donzela apanhou o descapotável na berma da Marginal. Antes de desaparecer na curva do pinheiro manso, ela lançou um derradeiro olhar para a janela do quarto do seu apaixonado, mas, preso ao leito, não descortinou nenhum aceno gratificante.

Naquela noite, o menino foi coberto de mimos. Até a senhora Noémia, que só subia ao primeiro andar de manhã para arrumar as camas e fazer a limpeza ou quando aí era expressamente chamada, quis ir dar as boas-noites ao doentinho e desejar-lhe as melhoras, rezando, mesmo ali, um Pai Nosso e uma Ave Maria por ele.
Ao descer, a velhota cruzou os patrões e, sorrindo, deu-lhes as boas-noites, refugiando-se, em seguida, no mundo fervoroso e místico dos santos de Deus, a quem dedicou, em ladainha, parte do seu sono. Graças ao efeito mágico dos comprimidos, no fim do dia o doente já tinha outros ares. Aliviado, sentindo-se mais afoito, ele quis mostrar aos padrinhos que estava bom para outra e que não havia razões para tanta inquietação.
Apesar da inebriante presença da madrinha, que o cobria de zelosas carícias, ele começou a enfadar-se e a abrir a boca de sono, quando faltavam duas horas para o novo dia, e deixou-se deslizar entre os lençóis, animando-se no olhar complacente da maravilhosa fada e do padrinho que, entretanto, lhes viera fazer companhia. Perspicazes, eles beijaram-no e retiraram-se, resignados. Antes de cerrar definitivamente as pálpebras, Rui Patrício recordou o carinho que a graciosa Cris amorosamente lhe dispensara. O seu cérebro cansado era divinamente refrescado pela quimérica doçura e o perfume extasiante da donzela. E, inundado por um sorriso benigno, a aura da inocência ou da ingenuidade, quem sabia?, circundou-lhe a cabeça, enquanto do seu olhar gelatinoso jorrava um misticismo exaltado, mas amorfo de sensualismo. Por vezes, sentiu as mais inverosímeis extravagâncias aflorarem-lhe a razão abúlica, bombardeando-o de débeis teoremas, silogismos e dilemas intemporais. E aos poucos a canseira foi-lhe entorpecendo os mais índoles sofismas nefelibatas, anestesiando-lhe o cérebro cansado.

Ah, como seria bom morrer, se todos os anjos do Paraíso fossem assim! E foi a sorrir para a mirífica Cris que se feneceu aquele olhar. Comovida, a madrinha cobriu-o, beijou-lhe a testa e retirou-se para o seu quarto, deixando as portas escancaradas.



continua em: Sexta, 3 de Agosto ( 18º DIA )


Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson

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