sábado, 7 de maio de 2011

Herói em fuga - Adeus até Abril ! - Capítulo III


III




Domingo, depois de selarem com suor, sangue e saliva as mil e uma promessas de amor, os amantes, sempre de mão dada, apanharam o comboio e foram almoçar ao restaurante da praia de Carcavelos, a professora cruzou algumas colegas que lhe invejaram o namorado e a felicitaram calorosamente, apesar de ambos refutarem a relação amorosa, por demais evidente para ser negada, mas vendo-o de gabardina, ninguém desconfiou da menoridade do David.
De volta, na automotora, temendo ser reconhecidos por mais alguém, assentaram-se lado a lado face num banco de uma carruagem vazia, a ler a revista que compraram no quiosque da praia. Em S. João, desceram discretamente e, seguindo os atalhos, voltaram para casa, donde o transmontano telefonou à mãe a pedir-lhe para o deixar ficar mais uma semana pelo Estoril para matar as saudades. Ao lado dele, Marisa não se cansava de lhe acariciar os caracóis e as mãos. Obtido o consentimento materno, foram lavar os dentes e estender-se no sofá a ver um filme de piratas com Errol Flyn.
No intervalo da película, a locutora da RTP — a radiotelevisão Portuguesa — apareceu no ecrã para ler um comunicado de última hora.
— Senhores telespectadores, o Ex.mo Senhor Ministro do Interior, Ataíde de Almeida recebeu hoje em Moçambique, onde se encontrava em digressão desde o passado dia 28 de Agosto, a triste notícia do internamento de um membro da sua família. O governo despachou um Caravela da TAP, que se encontrava estacionado no aeroporto de Luanda, em Angola, para Lourenço Marques, a fim de o trazer de volta para junto dos seus. Fazemos votos para que tenha boa viagem e encontre a sua filha...
— David! David!!! — gritou a professora assombrada, olhando para o quarto.
— Credo! Morreu alguém, Marisa? — perguntou o moço espavorido, escancarando a porta.
— A Giola foi internada de urgência.
— O quê?!
— Por favor, acalma-te, que o pai dela está em Moçambique.
— Telefona à D. Alice, por favor...
— Ainda sabes o número deles?
— Não sei eu outra coisa, Marisa!
— Toma, liga-lhe tu, David — disse constrangida, segurando-lhe o telefone.
E, memorizando os números que ele discava inconscientemente, a professora nem teve tempo para esboçar a mínima reacção. O olhar vítreo do pobre David paralisou-a.
— Alo? É da casa do senhor Ministro?
— Sim, quem fala? — perguntou a criada.
— Diga à D. Alice que o David quer ver a Giola.
— É o senhor Ministro, Célia? — indagou a patroa, ofegante.
— Não, é um rapaz que quer ver a menina.
— David! David!!! Onde estás, meu filho?!
— Em S. João do Estoril. A Giola como está? É grave?
— Desde que o meu marido te mandou espancar, a Giola nunca mais logrou saúde. No início ainda discutia com o pai, mas depois, depois que soube que tu te foste embora para Trás-os-Montes, começou a definhar e fazer greve de fome. O meu Ataíde diz que a preferir ver morta que casada com um comunista.
— Comunista eu, D. Alice?!
— Pois, eu sei que não é verdade... Como soubeste que a Giola...
— A senhora professora Marisa ouviu a notícia e alertou-me logo. A D. Alice sabe que foi ela quem me valeu quando seu marido me mandou agredir por aqueles dois Gungunhanas ?
— Claro que sei e até me sinto devedora, mas com este calvário, a minha vida tem sido um inferno. Ai é tão duro assistir-se impotente ao suicídio de um filho!
— Suicídio?!
— A Giola aproveitou a ausência do pai para engolir um frasco de comprimidos.
— Eu sei que o seu marido já vem a caminho, mas em que hospital está a Giola? Queria tanto vê-la antes de ir para Coimbra!
— Onde posso ir buscá-lo, David?
— Diante das escadarias do Liceu de S. João.
— Esteja lá daqui a cinco minutos. Ah! irei sozinha.
— Até já, D. Alice. Com licença!
— Até logo! — respondeu a senhora, pousando o auscultador cheia de fé.
Vestindo-se à pressa, David mal se penteou e, acenando apenas, saiu para o lugar combinado. Pensativa atrás da vidraça, Marisa viu-o correr pelo asfalto e parar perto de um poste de electricidade. Pouco depois surgiu um Citroen preto que lho arrebatou desenfreadamente, deixando-a de visão suspensa no misterioso e nublado além, como se o inferno começasse por detrás dos confins do horizonte, lá no limiar da Serra de Sintra. Depois, caindo em si, refugiou-se no quarto a admirar o juramento que David lhe escrevera caprichosamente numa folha branca e, para espantar a superstição, releu tantas vezes que até lhe perdeu a conta e acabou por adormecer com ele nas mãos, amarrotando-o.
Entretanto, depois de trinta vertiginosos minutos de viagem, em que a condutora e o passageiro mal se falaram, tão asfixiante era a inquietude dos seus corações contritos, o Citroen só parou diante da entrada do Hospital Militar. Apenas viram a esposa do ministro, os guardas levantaram a barreira metálica, deixando-os entrar. Pouco depois, entregando a viatura a um oficial, a D. Alice murmurou baixinho:
— Dê cá a sua mão, David.
O moço limpou-a na gabardina e, olhando à sua volta, agarrou-lhe os dedos esguios. À medida que o túnel de acesso à enfermaria chegava ao fim, o ritmo cardíaco e o nervos aumentavam terrivelmente. Antes de entrar no quarto da doente, David, que entretanto largara a mão da D. Alice, respirou fundo, benzeu-se e adiantou-se corajosamente, encarando a equipa médica que cuidava da ilustre donzela. Ao abeirar-se da cama foi retido por um senhor de batina branca.
— Deixem-nos à vontade, Dr. Viegas.
— Dra. Alice... — insistiu o médico.
— Se alguém pode fazer algo pela minha filha é este senhor, por isso...
— Afastem-se — ordenou o médico, olhando as enfermeiras que velavam a inconsciente.
E com um aceno peremptório esposa do ministro, arredaram-se todos, deixando o jovem chorar em paz. Sustida pelo soro que lhe entrava por uma agulha cravada numa veia do seu pulso franzino e de respiração assistida, Giola parecia fugir inelutavelmente da vida sem que ninguém lhe retivesse a fuga. Enxugadas as lágrimas iniciais e vencido o desânimo, sempre de pé, a um metro da doente, David estancou os soluços e, intimidado pelo silêncio e os olhares circunspectos dos enfermeiros e do médico, balbuciou rouco:
— Sou eu, o David, ainda te recordas de mim? Não, claro que não! Olha, Giola, se julgas que eu te pude esquecer, conheces-me muito mal! E eu que até cheguei a pensar em raptar-te, minha princesa. Se estás a dormir, acorda, menina, porque senão vou-me embora para sempre. Por amor de Deus, Giola, não faças sofrer a tua mãe. Por favor! Coitada, apenas ouviu o meu telefonema correu logo a buscar-me. Bom, vejo que estás zangada comigo! Se queres morrer, eu vou-me embora. Antes de ir, porém, quero que saibas que tu foste a vénus das minhas noites de insónia, Giola! És tu a musa que vem ter comigo, quando mais preciso. Tu, és a mulher que eu sonhei para os filhos mais bonitos do mundo, Giola. Pois, mas tu nunca me amaste, pois não, Giola? Pois bem, eu sempre te amei, tolinha, e tu queres ir-te embora. Ah, só mais uma coisa, pensa bem no que vais fazer, porque não há salvação para quem se suicidar! Giola, acorda, meu amor! Não mudaste mesmo nada, sabes? Continuas a mesma caprichosa de sempre. Se visses o vexame que estou a passar, abrias os olhos ou mexias os dedos. Ei!, — cochichou-lhe ao ouvido — eles estão a rir-se de mim, Giola! É bem ingrata, menina Giola Almeida, sabia? Bom, vou-me embora! É isso que tu queres, Giola? Bom, adeus! Adeus, Giola!...
E, perdendo a voz, não disse mais nada. Giola permaneceu inerte, como se o seu coração, demasiado ferido, tivesse perdido o hábito de palpitar o ritmo do amor. Ao afastar-se, David sentiu um repelão, como se ela o segurasse e, perplexo, baixou-se e beijou-lhe a mão gelada.
— Saíste-me cá uma friorenta, Giola!! — berrou risonho.
— Deixe-a, David, que ela não gosta de si — disse-lhe a mãe.
— Também acho, D. Alice, mas não faz mal, para onde vai a Giola não precisa de nada, porque de lá nunca ninguém voltou. É um deserto de fogo e de almas gemebundas, condenadas ao degredo eterno que nem Deus escutará jamais. E eu que tanto queria que ela fosse minha alma gémea no Paraíso pelos séculos sem fim, mesmo que aqui na Terra tenha que viver sem mim. Esta tolinha ainda nunca percebeu que esta vida são dois dias...
— Pois não, mas olhe que sempre foi muito caturra a minha Giola. Aliás eu nunca percebi que como um rapaz como o David, bonito e educado, pôde gostar de uma magricela assim!
— Caprichosa a Giola é sem dúvida, mas magricelas não! Ela é elegante, D. Alice! — barafustou meigo, beijando carinhosamente a mão da doente.
— Terá razão, David, as razões do coração nunca são iguais às demais.
— E é precisamente por isso que as decisões do coração nos parecem sempre tão anacrónicas e nos são tão difíceis de tomar...
— Bom, D. Alice, desculpe, interrompê-los, mas, como vêem, não é com palavras doces que a menina Giola vai acordar.
— Realmente eu não sei nada de medicina, nem devo ter a sua frieza, mas por favor não me dê conselhos nesta hora que o meu coração de mãe tem outras razões para agir assim! — retorquiu furiosa, fitando o médico com as suas íris de fogo.
— Por favor acalme-se, D. Alice! Se calhar o senhor doutor tem razão... — disse calmo, amparando a mater dolorosa.
— Ó David, David! — exclamou aflita, aninhando-se-lhe nos braços.
— Bom, Giola, antes de me ir embora, quero que saibas que te amo muito e que sempre te amarei. Ah, só mais uma coisa..., — acrescentou risonho, antes de lhe sussurrar ao ouvido: — tu não és nada magricelas, Giola! Olha, se eles não estivessem aqui, mordia-te toda, todinhaa, até te descobrir a alma. Je t’aime, mon amour! — concluiu sensual, apertando-lhe levemente a ponta dos dedos
— Adeus, filha! — bradou a mãe, beijando-a carinhosamente na testa.
Comovido, David desatou aos soluços e saiu para o exterior para se assoar à vontade. Os olhares beatos do corpo médico, ali de pé como múmias, enfureciam-no; num ápice quis ser Deus para chamar a sua Giola à responsabilidade e lhe pôr os pontos nos ís, mas ele não passava de um simples sonhador, tão doido por mulheres e tão pecador por amor.
Depois de se reconfortarem reciprocamente, foram sentar-se e tomar um café à cantina, onde receberam a confirmação do regresso antecipado do senhor ministro. A chegada ao aeroporto militar de Figo Maduro estava prevista para o dia seguinte às nove da noite, pois o Caravelle-Air da TAP, estacionado em Luanda, tinha sido alvejado por um ataque dos terroristas do Movimento Popular de Libertação de Angola, MPLA, em luta contra o estado português há mais de 12 anos. Durante mais de uma hora, enquanto o pessoal médico desinfectava o quarto, o adolescente abriu ingenuamente o coração à distinta senhora, contando-lhe tudo o que acabava de viver nas últimas horas. Emocionada, a esposa do cínico Ataíde beijou-o maternalmente na testa e, afagando-lhe os cabelos, murmurou baixinho:
— Só pode ser muito corajoso, quem ousa confessar-se ao inimigo, David!
— Inimigo, D. Alice?!
— Não sou eu a mulher do homem que te...
— Oh, aquilo foi o acto de um desesperado, de um avarento que pensou perder o seu maior tesouro e a honra. No fundo, o senhor ministro não deve ser o homem cruel que aparenta, pois não, D. Alice?
— Oh!... — soluçou envergonhada, estremecendo arrepiada e enxugando nervosamente as lágrimas irreverentes que surgiam no canto do olho.
— Acredite, D. Alice, todo o ser humano nasce com um lado bom e altruísta que nunca morre, mesmo quando sufocado pelo egoísmo que vive no lado escuro, porque senão, como é que o homem poderia cumprir o desígnio da sobrevivência da própria espécie? Não há mal que perdure...
— Coitada, afinal a Giola nunca se enganou: o David é um anjo!
— Não exagere que me faz corar...
— D. Alice! D. Alice!!! — bradou exuberante uma enfermeira, da porta da cantina.
— Que se passa?!
— A menina mexeu os dedos, venha depressa!
Arrebatada pelo impulso maternal, a senhora largou tudo e correu precipitadamente para o quarto, seguida como sua sombra pelo rapaz, por quem a filha se deixara definhar, que lhe apanhou a bolsa e o manto. Mal transpôs a soleira da porta, o médico, cruzando os lábios com o indicador direito, impôs-lhes silêncio e, afastando as assistentes com um aceno discreto por detrás das costas, murmurou baixinho:
— Depois que a senhora doutora se retirou, fui examinar o cardiómetro e...
— Eu sabia que a Giola havia de reagir, Dr. Viegas.
— Realmente uma enfermeira jura que lhe viu mexer o dedo, enquanto lhe mudava o frasco do soro. Eu, infelizmente ainda não lhe detectei a menor reacção física exterior. Estranho, é como se ela prolongasse propositadamente o estado de coma, Dra. Alice.
De pé, o pobre David entrara em transe; os seus olhos vítreos pareciam hipnotizados pela aura irradiante que delimitava o corpo da doente, como se a alma e o corpo se tivessem separado e iniciassem uma gravitação. Transfigurado pela visão e asfixiado pelo cheiro do desinfectante, desfaleceu, caindo estrondosamente ao chão sem, contudo, perder os sentidos. Socorrido imediatamente por uma enfermeira, que se ajoelhou e lhe segurou instintivamente a cabeça, nem um ai se lhe ouviu. O seu rosto amarelado era iluminado por um sorriso apaziguador, como se as suas retinas fossem depositárias de um segredo, de uma mensagem.
— Ó meu Deus, David! — balbuciou-lhe a D. Alice assustada pelo estrondo, derreando-se para lhe limpar o suor da fronte.
— Deve ser a tensão arterial — adiantou o Dr. Viegas, de estetoscópio ao pescoço, ajudando a enfermeira a despir-lhe a gabardina para o auscultar.
— É a segunda vez que isso me acontece, senhor doutor.
— Ah, o David...
— Senhor doutor! Senhor doutor!!! a menina mexeu os dedos! — exclamou a enfermeira que estava perto da inconsciente.
— Fátima, você precisa de ir dormir! — acrescentou o médico, constatando que o imobilismo da paciente.
— Tem a certeza, menina?
— Como um e um serem dois, minha senhora, a sua filha! Juro-lhe: a menina mexeu os dedos — garantiu a enfermeira sem pestanejar.
— Vá descansar, Fátima, que bem precisa — ordenou o incrédulo Dr. Viegas, abanando a cabeça, enquanto media a tensão ao visitante.
— Se pensa que a Fátima tem alucinações, engana-se e penso que o senhor doutor não deve mandar embora. Fique, Fátima, fique! — implorou-lhe o moço, sorrindo meigo.
— Quem manda aqui sou eu? David.
— Eu sei, Dr. Viegas, eu sei e não lhe dou ordens! Credo!
— Então...
— Desculpe, eu só queria ajudar. Pronto, faça o favor de me receitar qualquer coisa para fazer subir a tensão.
— Calma, David, calma que eu ainda não lha medi.
— Oh, deve estar a 6 ou 7, sim a seis vírgula oito — adiantou tranquilo, sorrindo à D. Alice que, depois de ir ver a filha, voltava para junto dele.
— Fátima! — exclamou o médico, surpreendido com a exactidão do intruso.
— Diga, senhor doutor — respondeu a enfermeira, cabisbaixa.
— Não se vá.
— Certamente, senhor doutor.
Livre da bolsa que lhe apertou o braço, David levantou-se e vestiu novamente a gabardina. O médico tirou do bolso uns comprimidos e deu-lhos, dizendo:
— São para tomar às refeições!
— Obrigado, senhor doutor.
— Obrigado nós — disse o médico, apertando-lhe a mão.
Vendo o copo que um enfermeiro lhe estendia, David tirou um comprimido que engoliu e empurrou logo de seguida com dois goles de água, antes de se abeirar da doente e de lhe sorrir carinhosamente.
— Ah, quem me dera ter o seu optimismo, David!
— A esperança é a última coisa que morre, D. Alice.
— A Giola viverá e será muito feliz.
— Donde lhe vem essa certeza, David?
— Daqui — disse convicto, pousando a palma da mão direita sobre o coração.
— Oxalá Deus mude o meu marido.
— Há-de mudar; D. Alice, há-de mudar.
— Sei lá!
— Quando vir a Giola neste estado, prometerá o Céu e a Terra para a ver sorrir novamente.
— Ai, credo, parece que o medo se evaporou!
— Não, é a Fé em Deus e a Esperança que renascem, D. Alice.
— Coitada da minha filhinha que está tão magra!
— A D. Alice quer que eu fique aqui esta noite?
— Não será bom, pois não, Dr. Viegas?
— O quê, Dra. Alice?
— Ficarmos aqui de vigília...
— Bom, não é aconselhável, mas compreendo que a senhora queira ficar junto da sua filha. Faça o que o seu coração lhe ditar, Dra. Alice.
— O senhor doutor tem razão, D. Alice, fique e reveze-se com a Fátima, que eu volto amanhã, se a Giola quiser.
— Então despeça-se dela que eu vou a casa buscar um pijama e aproveito para o levar a S. João, porque a senhora professora deve estar inquieta, David.
— Tu bem sabes que nos estás a pregar um susto, pois sabes, Giola? Bom, então deixa-te de birras e ganha muito juízo que eu preciso muito de ti. Ah!, já me esquecia: vou para Coimbra, para a Faculdade de Direito! E lá há muitas miúdas giras! Aquilo é que vai ser uma farra! Se me quiseres, viverei numa pensão, se me rejeitares vou pintar a manta na República dos... Queres vir comigo, Giola? Oh!, não me leve a mal, menina, foi sem querer! Bom, vou-me embora, mas a tua mamã ficará aqui contigo para te puxar as orelhas e dar a papinha, meu bébé! Adeus! Vá, dorme tudo esta noite que amanhã eu cá estarei para saber se também ainda me amas, Giola. Até logo! — exclamou sorridente, beijando-lhe amorosamente a testa.
— Ouviste, filha? Eu vou levar o David a casa e não demoro. Olha, vou trazer-te umas calças e uma t-shirt para irmos passear todos três. Ah! o David é realmente um amor, Giola!
— Vão com Deus! — adiantou o médico, apertando a mão ao estudante.
À saída, cruzaram a única pessoa que vira a Giola reagir. David, interpelando-a com um aceno, sussurrou confiante:
— A menina Giola simpatizou muito consigo, Fátima. Por favor cuide bem dela.
— Com certeza, mas olhem que eu não me recordo de lhe ter falado e deve ter sido apenas casual o facto de só eu a ter visto mexer o dedinho esquerdo.
— Não, Fátima, na vida nada acontece por acaso, porque senão Deus não teria razão de ser. Adeus e continue a rezar pela Giola como o tem feito até aqui.
— Mas... eu rezo em silêncio! — balbuciou perplexa, sentindo o coração atingido pela seta da verdade.
— Eu sei que a família do senhor ministro pode contar consigo. Até logo e que Deus lhe pague, menina Fátima.
— Adeus, menino — disse a enfermeira conivente, aparando-lhe o sorriso angelical.

Intrigada pelo contagioso optimismo do namorado da filha, durante o percurso a D. Alice pôs-lhe mil e uma questões, a que ele respondeu sempre sem hesitar, mas, apesar da pacatez da viagem, não chegou a nenhuma conclusão, repartindo mais duvidosa. Ainda saía do elevador e já Marisa o abraçava desesperadamente e lhe roubava um beijo.
— Credo, parece que não me vês há mais de um ano, Marisa! — exclamou jocoso.
Depois, agarrando-lhe furiosamente as nádegas, arrebatou-lhe os pés do chão e, sustendo-a num fôlego hercúleo, levou-a pendurada ao pescoço até ao interior, fechando a porta com um habilidoso toque de calcanhar.
— Se soubesses o que me passou pela cabeça, David!
— Coisa boa não foi, para me abraçares assim, tolinha.
— Ai!, e ainda te ris?! — barafustou queixosa, vendo-o sorrir e pendurar a gabardina.
— Mas não, Marisa, mas não! Não vês que é tão fácil adivinhar o pensamento dos outros, para quem viveu coisa muito pior antes? Vá, por favor, não me inventes mais separações tristes que eu já sofri demais com a última…
— Pois… E a Giola?
— Oh!, a Giola decidiu experimentar ir dar uma volta pelo outro lado para ver se é melhor que este? A menina decidiu partir em viagem para o limiar da eternidade, mas há-de voltar e ser muito feliz, porque deve ter chegado aos limite do sofrimento…
— Por favor, fala-me claro, David, que não te entendo!
— A Giola está em estado de coma...
— Profundo?
— E o que é que entendes por profundo?
— Sei lá!, se há esperanças que..., sei lá! Pode não ser reversível...
— E que não seja!? Matava-a!!! — explodiu ameaçador.
— Oxalá que tudo corra bem e a Dra. Alice...
— Doutora?!
— Sim, então, a Dra. Alice é formada e foi minha professora de português no liceu...
— Ah, bom!, vós conheceis-vos!!!
— Sim, e até nos dávamos muito bem, mas depois, com a faculdade, separámo-nos e, como ela pertence a outro mundo, nunca mais nos vimos, até porque o Ataíde, além de não me ser nada simpático...
— A mim muito menos, mas, enfim, ele há-de mudar!
— Aí enganas-te, David.
— Então que o leve o diabo bem depressa que já fez muito mal a muita gente! — exclamou raivoso.
— Pois é, mas só Deus escolhe a hora e normalmente os mais maus, se é que temos o direito de julgar alguém, — acrescentou duvidosa — são sempre os últimos a partir.
— É, tens razão, deixemos os outros para lá... Ah! estou com fome, sabias?
— Que queres comer?
— Diz, tu não tens fome, Marisa?
— De ti, muita...
— Desculpa, mas se calhar esta noite não terei coração para...
— Não faz mal, estava a brincar, tolinho!
— A brincar?!
— Oh, tu percebeste-me muito bem, David!
— Desculpe a provocação, mas é assim irreverente que mais gosto de a ver, Dra. Marisa Belchior! — retorquiu malicioso, agarrando-lhe o queixo e beijando-a furiosamente na boca.
— Hum! Que bom senti-lo novamente abraçado a mim, Dr. David! — ironizou corada pelo galanteio, contorcendo-se arrepiada pelas mordeduras varonis.
Saciada febre do beijo, foram para a cozinha preparar uma omelete que comeram num silencioso face a face, como se a linguagem dos olhos bastasse para dizer tudo. Depois, beberam um café com leite e foram trocar medos e segredos para o sofá, num carinhoso corpo a corpo, deixando o simpático Henrique Mendes, talvez o melhor animador da televisão portuguesa, a falar para as paredes.

A noite, indiferente às confidências daqueles mimos, depois de sitiar a vidraça da persiana por correr, entrou sorrateiramente pelo apartamento adentro, para lhes resfriar a língua, mas a curiosidade aquela ânsia era tanta que os rodeios ariscos da escuridão se perderam em vão. E a luminosidade das suas retinas, sustendo a rotação intersideral, prolongou-lhes benevolamente o dia, para que os seus corações acabassem aquela homérica confissão e as suas almas iniciassem em paz mais uma etapa da viagem da epopeia empírica que haviam instintivamente começado na antevéspera.
Apesar das energias dispersas caprichosamente, David mal pregou o olho e, acossado pelo remorso, ergueu-se cedinho, largando a vénus adormecida entre os lençóis. Impaciente, vestiu-se à pressa e, fechando cuidadosamente a porta do quarto, ligou para a criada do ministro, mas não teve as novidades que o seu coração tanto desejava. Desesperado, puxou vagarosamente a persiana da janela e, agarrando-se nervosamente às cortinas, colou as íris na vidraça, pensativo. Marisa, sentindo o lugar dele frio, levantou-se, vestiu a túnica e foi reconfortá-lo, antes de ferver a água do café.

O céu daquela segunda-feira, 11 de Setembro, estava azul claro, sem nuvens no horizonte. Pelas nove horas, ligaram o rádio para ouvir o noticiário, mas, a não ser o agravamento súbito das péssimas relações entre árabes e judeus, na Palestina, nada lhes reteve a atenção. Lisboa acordara pacata como sempre e o país lá ia vivendo como podia, amorfo e resignado com o destino. O campeonato de futebol só estava na segunda ou terceira jornada, mas a juventude benfiquista, com o Jimmy Hagen a treinar as Águias, não via quem lhes pudesse roubar o ceptro, até porque os Leões, apesar de terem o Damas na baliza, não acreditavam muito na vitória, quanto aos Dragões, esses, nem com Cubillas conseguiam levantar a cabeça. Coitados, os tripeiros bem rezavam e gritavam pelo Porto, carago, mas os deuses de Portugal viviam em Lisboa...
Colados ao telefone a olhar um para o outro, David e Marisa não sabiam como passar o tempo. Estavam naquele suplício, quando a campainha do apartamento tocou. Foram abrir.
— Dra. Alice!!! A Giola?... — exclamaram estupefactos, esvaziando-se de sangue, dando como os olhos na esposa do ministro.
— Nada, Marisa, nada!
— Entre e tome um cafezinho — respondeu-lhe a ex-aluna, um tanto envergonhada.
— Então a Giola não voltou a mexer os dedos?
— Nada, meu filho, nada, até parece que piorou. O doutor Viegas diz que o encefalocardiograma não registou nada de especial, desde que vieste embora. Por favor, David, vem comigo. Se soubesses como sinto a falta da tua Fé! Contigo, sinto-me forte, sem ti...
— Com certeza, Dra. Alice, leve-o o tempo que quiser e que Deus nos devolva a Giola sã e salva bem depressa.
— Obrigado, Marisa, é muito gentil da sua parte. Acredite que aprecio imenso a nobreza do seu coração. Que Deus lhe pague e a faça muito feliz, que bem merece.
— Antes de partirmos, toma um cafezinho, Dra. Alice?
— Alice ou D. Alice, se quiser, David — rectificou a senhora.
— Assente-se, enquanto o David vai buscar uma coisa que quer levar para o hospital. Faço-lhe um cafezinho, Dra. Alice?
— Se fosse possível, preferia um chá, Marisa.
— Com bolachas, torradas, geleia...
— Com leite e torradas, se fizer o favor.
— Certamente, senhora...
— Alice, trata-me por tu, que me rejuvenesces, colega Marisa!
— Se bem se recorda, eu sempre a tratei por senhora doutora!
— Se recordo! A Marisa estava sempre no banco da frente para se livrar dos rapazes e não tirava os olhos de mim.
— Normal, qual é o aluno que não tem orgulho do mestre? — indagou corada, atarefada a pôr a mesa e a aquecer a água para o chá.
— Parabéns, tem muito bom gosto! — acrescentou a professora, olhando para a beleza e a graça daquela caprichada simplicidade.
— Que acha da minha gabardina, D. Alice?
— Faz-me lembrar os polícias do meu marido, mas a si, assim aberta, fica-lhe bem, e muito melhor quando usar uma camisola de gola alta. É chique, descontraído, irreverente e tanto provocador.
— Provocador?!
— Assim, o David transmite aos outros uma sensação de segurança e de liberdade, como se não tivesse medo de ninguém, tal como a Giola sempre me falou de si.
— Queres vir connosco, Marisa?
— Por enquanto não, David. Não é que eu não queira, mas porque tenho o pressentimento que a minha presença só iria complicar mais as coisas. Depois, quando ela estiver em casa, terei muito gosto em ir visitá-la. Aliás, deixem que vos confesse, estou mesmo muito curiosa em conhecê-la, por isso despachem-se...
— Hum!, este seu Lipton é óptimo, Marisa! — disse a senhora, saboreando o chá fumegante.
— É inglês, de Ceilão!
— Posso provar, D. Alice? — volveu ougado, pegando numa colher para tirar uma gota do liquido amarelo torrado da chávena da senhora.
— Mas..., eu já o provei, David!
— Não faz mal! Ou também é depositária de segredos de Estado?
— Vá, prove lá um pouquinho — disse carinhosa, pondo-lhe a chávena diante dos lábios.
— Ai a espertalhona, queria conhecer os meus segredos! — adiantou perspicaz, balançando o indicador esquerdo para lhe mostrar que adivinhara a manobra sedutora.
— David!!! A Dra. Alice...
— Não, Marisa, por favor não tente mudar o David. É assim carinhoso que eu gosto dele.
— Ah, é ousadia a mais, Dra. Alice! — retorquiu envergonhada a ex-aluna.
— Pronto, pronto, não se zanguem que eu mudei de ideias: vou beber um copo daquele whisky — acrescentou irónico, dirigindo-se para o armário.
— Está a ver? Os homens são assim: proibimo-lhes um hábito e voltam-nos com um vício muito maior.
— Ai é?!
— Ainda duvida, Marisa?
— Não, agora não, mas cá mais uma razão para a senhora professora me visitar mais vezes, sempre que queira, Dra. Alice.
— Ah!, com todo o gosto, Marisa! Quanto mais não seja para falarmos sobre os homens.
— Sobre homens ou outras coisas, sei que só poderei aprender, senhora doutora — disse acanhada, antes de se virar furiosa para o moço: — Lave bem esses dentes, menino, que a Giola detesta bêbedos.
— Assim não, menina, assim não! Os inteligentes que se prezam, detestam quem lhes dá ordens, mas apreciam e agradecem sugestões discretas.
— Vê lá como vais, David! Vá, não decepciones a tua amada — retorquiu Marisa perspicaz.
Vendo os risos cúmplices das professoras, o adolescente refugiu-se no quarto de banho e aproveitou para lavar os dentes, as mãos e o rosto, acabando por pentear novamente os caracóis e aplicar o Rexona, um desodorizante bastante forte, para regozijo das mulheres. E, empiscando orgulhoso, lá partiu feliz com a Dra. Alice, com a sua gabardina castanha aberta para melhor sentir a doce brisa matinal e respirar o aroma da sua liberdade cerebral.

No Citroen negro, o sua alegria contagiosa era quase uma ofensa à dor, mas perto do hospital tudo mudou: o semblante carregou-se e o olhar esmoreceu, como se a morte rondasse por perto. Depois, ultrapassada a barreira, foi como se entrasse no mundo do silêncio.
Giola jazia inerte no mesmo sítio, na mesma pose, com a mesma indiferença, o mesmo desprezo. A impotência humana estava bem estampada no rosto sisudo do Dr. Viegas; Fátima fora descansar e só voltaria às duas da tarde; pendurando o manto no cabide, a D. Alice foi assentar-se no cadeirão posto à sua disposição durante a noite; os frascos de soro lá se iam esvaziando como se em cada tenaz gota incolor viajasse uma bolha de Esperança e de Fé de quantos a olhavam enternecidos, enquanto a menina, de pálpebras, cerradas, se mantinha caprichosamente longe dali. As palavras carinhosas da mãe e do David nada fizeram. Até às sete da tarde, altura em que partiram, porque a D. Alice queria ir dar a terrível novidade ao marido a Figo Maduro, onde um avião da Força Aérea devia aterrar pelas 21 horas, a Giola nem uma vez buliu o dedo mendinho. Se fosse no Fiolhal ou noutra qualquer aldeia de Portugal, há muito que o caixão com a donzela teria descido à terra, mas aquela aparelhagem toda estava lá para a manter cerebralmente viva até o senhor ministro chegar e ver que se a sua filha morresse não foi por falta de cuidado, mas tão somente porque ela havia decidido partir mais cedo para o Além e, tal alma depenada, passar a eternidade a errar pelos confins do infinito à procura do amor proibido que pai tirano lhe roubara. E nunca as horas de um dia lhes pareceram tanto uma eternidade como os daquela semana horrível. A angústia assentara arraiais nas suas cabeças abrasadas, como se o tempo, esse algoz insensível e cruel dos corações tresloucados, tivesse desistido de prosseguir a sua viagem intersideral. Aterrorizados pelo fantasma da morte que pairava no ar como uma tenebrosa aura de breu, mas estoicamente esperançados no tão desejado sopro de vida da alma daquele corpo incônscio, os corações de quem mais a amava e os olhares enternecidos que tudo tentavam para manter viva a fé do milagroso despertar, passadas tantas horas de vigília, já não precisavam de nada para se compreenderem.
Entretanto, apesar do carinho e afecto com que a D. Alice o tratava e aparente clemência daquele pai tirano, David decidiu evitá-los e passou a velar a donzela nas horas em que eles não estavam, beneficiando da cumplicidade do Dr. Viegas e da Fátima, com quem simpatizara. É que os olhos do ministro lhe pareciam mais falsos que os de Judas.

Quinta-feira, 14 de Setembro, vendo-o espreitar muito eufórico, o Dr. Viegas sorriu-lhe e, para dissimular a frustração que sentia depois de uma noite de redobrados esforços, cochichou-lhe ao ouvido:
— A professora deve ser cá um peixinho!
— Desculpe, o senhor doutor disse? — indagou perspicaz, fazendo-se despercebido.
— Oh! nada, é sem importância, David — acrescentou de sorriso envergonhado.
— Vejo que o senhor doutor está muito intrigado com...
— Realmente..., não é para menos, mas o que é que o David me traz aí nesse saco?
— Um gravador!
— Um gravador?!
— Sim, o Dr. Viegas sabe, e muito melhor que ninguém, quão importante é para a Giola ouvir as vozes e os sons melodiosos de quem, supostamente, ela mais desejou...
— Percebi! Pois, o David sente-se constrangido com a nossa presença e decidiu confessar-se à menina através do gravador.
— Coitada, ela deve ter sofrido muito para querer partir assim tão nova! — balbuciou comovido, mirando-a com aquele olhar comovido e beijando-lhe a mão gelada.
— Escute, David, eu aprecio imenso e louvo mesmo todo o seu esforço para nos ajudar, mas será que o senhor ministro não levará a mal esta ousadia? No fundo ele deve ter ciúmes de si...
— Ciúmes, doutor?! Vergonha, vergonha dele mesmo é o que ele deveria ter!
— Pois, está bem, mas...
— Não tenha medo, senhor doutor, que se a Giola acordar, terá o futuro garantido, a não ser que venha por aí uma revolução...
— O meu futuro?! Revolução?! Não o entendo, David!
— Sim, tanto o senhor como eu ficaremos em maus lençóis se ela morrer.
— Não me diga que ele...
— Ó Dr. Viegas, o senhor não conhece o ministro! Olhe que ele é homem para tudo...
— Pronto, ligue lá o gravador que a Fátima deve estar a... Ah! nunca se fala no diabo que ele não apareça! — exclamou confuso, surpreendido pela aparição súbita da jovial enfermeira.
— Bom dia, o senhor doutor! Bom dia, David! — saudou jovial, ajeitando a touca branca.
— Bom dia! — responderam simultaneamente.
— Sinceramente, Fátima, você viu mesmo a menina mexer o dedo? — volveu o incrédulo.
— Senhor doutor?! — replicou desapontada.
— Pronto, não se arrelie, Fátima.
— Ainda bem que tenho o David para acreditar em mim, senão mais me valia mudar de secção ou de profissão...
— Assim mesmo, Fátima, não desanime que a Giola há-de acordar.
— Bom, se o senhor ministro vier e perguntar o que é isto, eu não vi nada...
— Esteja descansado, senhor doutor — acrescentou o engenhocas, introduzindo carinhosamente o auscultador no ouvido da insensata para que só ela ouvisse a confissão amorosa que lhe tinha gravado durante a noite enquanto a Marisa dormia.
Empiscando-lhes timidamente, o Dr. Viegas retirou-se de estetoscópio ao pescoço. Depois de carregar na tecla play e regular o som, David sorriu à Fátima e, dando-lhe de olhos, afastaram-se para junto da janela, onde se encostaram a falar em surdina para não confundirem a pobre Giola com os seus cochichos.
Depois, durante o dia, tanto um como o outro, não se cansaram de mudar ambos os lados da fita magnética e de perscrutar aquela alma inconsciente, mas em vão. Aparentemente, a ideia do rapaz não surtira o menor efeito. Cansado de jogar ao gato e ao rato com o ministro, de quem se escondia sempre que ele aparecia, David, que passara a última hora de vigília com a D. Alice, pegou na mão fria da Giola e, fitando-a obstinadamente, na esperança de lhe arrancar um tui ou um mui, que fosse, berrou desesperado:
— Fica-te para aí, menina ingrata, que eu não volto cá mais.
— David!! — interferiu o Dr. Viegas instantaneamente, tapando os ouvidos.
— Se ela quer morrer que morra, mas que no-lo diga, doutor! O senhor não vê como a D. Alice sofre?! — retorquiu zangado, enxugando as lágrimas com os punhos cerrados.
— E sofrerei, meu filho, e sofrerei!... — confessou timidamente a senhora, oferecendo-lhe o lencinho branco onde enxugara as dela.
Pedindo desculpas ao Dr. Viegas com um olhar arrependido e um aceno discreto, David retirou-se cabisbaixo para o corredor, esperando que a D. Alice saísse para o conduzir a S. João do Estoril.

Desanimado por tão infrutuosa jornada, ele cerrou as pálpebras e encostou a cabeça no vidro, para não cruzar aquele profundo e desesperante olhar maternal, porque, irado como estava, já nem piedade lhe restava no seu coração, tanta fé e tanto amor e carinho pusera na sua confissão. Quando o Citroen se imobilizou diante do prédio, David limitou-se a apertar a mão gelada da D. Alice e a abafar na inseparável gabardina um súbito arrepio, partindo mudo e derreado. E, comovida, a viatura arrancou a toda a brida para não se derreter em lágrimas.
Apenas o viu entrar no apartamento, Marisa, vendo-lhe a morte nas retinas, nem se atreveu a abrir a boca? Abraçando-o silenciosamente, segurou-lhe a gabardina e, pendurando-a no bengaleiro, dirigiu-se cabisbaixa para a mesa de jantar, mas ele nem tocou nos talheres. Desvairado, bebeu dois copos de água e, largando os sapatos à porta do quarto, foi estatelar-se sobre a colcha de seda. Quando voltou, depois de arrumar a cozinha, Marisa encontrou-o enrolado como um caracol, agarrado a uma travesseira. E, beijando-lhe amorosamente a testa, assentou-se a seu lado a esfolhar uma enciclopédia.



LMP - Lud MacMartinson, Luxemburgo 1979
Romance inédito, não corrigido !!!

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