quinta-feira, 26 de maio de 2011

Capangas de Camarate - Preâmbulo da Conspiração !


MOSCOVO ― URSS
Kremlin, 13 de Agosto de 1979





No salão imperial, a nomenclatura soviética, alinhada atrás do féretro parece viajar por outras galáxias. Mais que a tristeza pelo falecimento súbito do venerando e mui respeitado camarada Skulakov, os apparatchiks sentem já apreensão dos dias tenebrosos que os ventos capitalistas sopram do ocidente. O silêncio asfixia-os, mas eles não ousam sequer a quebrar a monotonia daquela irracional cerimónia fúnebre: é “ esquizo-pestânico ” supremo, como eles apelidam o Chefe, ultimamente tem andado mal-humorado e os lambe-botas do KGB, para o aliviarem das cefaleias demoníacas, não se cansam de lhe servir bodes-expiatórios ao mata-bicho com as mais tenras gazelas das estepes siberianas.
― Pst! Silêncio! ― sussurrou por entre os dentes o cicerone presidencial.
“ É preciso ser bem idiota para exigir silêncio a moscas mortas! ” ― cogitou um neófito miliciano, oriundo de Murmansk.
Perscrutando as múmias circundantes, mestre bradou eufórico, batendo energicamente os tacões das botas no sobrado luzidio.
― Sua Excelência o Secretário Geral do Soviete Supremo e do Politburo da União das Republicas Socialistas Soviéticas, camarada Boris Kaganev!
Assustada pela ruidosa saudação prestada pelos camaradas vindos dos quatro cantos da Rússia, a viúva do defunto foi acometida por ataque de tremedeira e quase desfaleceu. Valeu-lhe a mão providencial e braço másculo do guarda-costas de Kaganev, que a susteve e suspendeu enquanto que o chefe lhe apresentou os pêsames, antes de a despachar para fora do salão com um sentido ósculo proletário.
Eclipsando-se no meio dos imponentes paletós negros, a velhota furtou-se discretamente, deixando os camaradas estrangeiros apresentar uma sentida e sublime vassalagem ao sisudo esquizofrénico. Tal múmia petrificada, Kaganev em pestanejava, oferecendo maquinalmente a mão aos seus súbditos.
Ainda o cortejo vinha a meio, quando, avistando o representante da Lusitânia encolhido sob um arco, apertou violentamente os dedos do camarada cubano com a mão direita, e o invectivou desvairadamente com o indicador esquerdo, intimando-o a passar adiante e a vir escutá-lo imediatamente.
― Como te chamas, donde vens e quem representas? ― questionou Kaganev.
― Eu sou o camarada Caixinha, venho representar os camaradas do Alentejo...
― Só?! Mas então o camarada Kaganal ainda não chegou ao Minho? Com os sacos de rublos que lhe tenho dado, já era para ter, pelo menos, atingido o Douro. Ó Kaikai, com esse ritmo, nem daqui a cem anos pertenceis de facto à Internacional Proletária Unida.
― Como Vossa Excelência, o engenheiro da Grande Rússia, sabe, agora, lá em Lisboa temos um Primeiro Ministro que veio do Norte e...
― E vale mais que vós todos juntos, seus camelos! Bom, não te assustes, que ainda não é desta vez que te envio para o Gulag.
― Gulag?! Credo, cruzes, valha-me Nossa Senhora de Fátima! — benzeu-se o alentejano, fazendo o esquizofrénico escancarar as órbitas, tal diabo aterrado diante da cruz..
― Sim, Gulag, Cai...
― Caixinha!
― Pois é, camarada Cai... Ora... Ei, escuta, que não to volto a repetir: a partir de hoje, tu és o camarada Kaikai desse canteiro a que tu chamas Portugal, ouviste?
― Perfeitamente, camarada Kaganev. Perdão, camarada engenheiro!
― Engenheiro?! Mas... quem te permitiu tamanha intimidade?
― Perdão! Mil vezes perdão, camarada Presidente, Supremo Engenheiro da Internacional Proletária Unida!
― Basta de lérias, Kaikai! Amanhã, quero que digas ao Kaganal que só lhe dou até ao Natal...
― Amanhã, camarada Presidente?!
― Sim, amanhã! Aliás, ontem, porque eu já estou farto dos aprendizes revolucionários lá da vossa terra. O único que podia ter feito qualquer coisa era o Kutelo, mas... Bom, amanhã...
― Amanhã é impossível porque eu vim de combóio e em segunda classe.
― Niet! Niet, camarada Kaikai! Tu voltas de Topolev.
― Topolev?! Mas...
― Se te atreves a duvidar outra vez, mando-te para o Gulag servir sopa com escaravelhos aos...
― E se o Topolev cai?
― O Topolev nunca caiu, não cai, nem cairá, pelo menos enquanto que o mouro Kagaki nos der uns barris de petróleo...
― E ninguém o sabotar.
― Os sabotadores da revolução estão na Sibéria. Vá, aproveita a viagem para pedir uma ajudinha ao camarada Kagaki e diz ao Kaganal que não me apareça mais diante dos olhos sem ter resolvido todos os vossos problemas, porque a Revolução Suprema não pode esperar pelos atrasados mentais e pelos moinantes que tendes a viver à nossa custa lá no vosso canteiro. Resultados, quero resultados, ouviste, Kaikai?
― Sim senhor, camarada Presidente, Supremo Engenheiro e Comandante da Internacional Proletária Unida...
E mais não lhe permitiu Kaganev, despachando com um aceno. Retirando-se sisudo e mudo, Caixinha escondeu-se envergonhado debaixo do pórtico que protegia os ilustres comunistas da canícula estival: é que no mês de Agosto, Moscovo era um verdadeiro inferno.
A noite caía sobre o Kremlin, quando o Topolev descolou da base militar rumo ao ocidente. A bordo, além de Kagaki e dos seus capangas, seguiam mais duas babuschkas caucasianas que Kaganev lhe dera como prémio pelos serviços prestados à causa proletária. Intimidado com os trejeitos das loiras, Kaikai preferia fingir-se adormecido.

LMP - Luxemburgo, 1981

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