terça-feira, 3 de maio de 2011

Herói em fuga - Adeus até Abril ! Preâmbulo !

Preâmbulo - 1973: o vírus da Liberdade


Quando, na noite de S. Silvestre, os sinos e os relógios do Mundo assinalaram o nascimento do ano de 1973, a Humanidade ergueu os olhos ao Céu e, invocando o Omnipotente, formulou os mais variados votos, esperançada, como sempre, na resolução dos problemas.

Na América, enquanto milhares de famílias choravam os filhos mortos ou mutilados no Vietname e outras rezavam para que, no ano do décimo aniversário do assassinato do adorado Presidente John F. Kennedy, a vergonhosa e traumatizante guerra paralela contra o comunismo, por terras vietnamitas, acabasse de vez e com ela o suplício de milhões de inocentes, na Casa Branca, o Presidente Nixon procurava desesperadamente resolver um problema de consciência, mas nem toda a astúcia de Henry Kissinger, o diplomata mais badalado do planeta, conseguiu evitar a eclosão do escândalo do Watergate, que obrigaria o homem mais potente do mundo a vergar-se sob a força invisível da verdade.

Na Rússia, Brejnev e Gromiko tentavam, não menos desesperadamente, evitar o desmoronamento do Império Vermelho, manipulando o coração de milhares de ingénuos idealistas pelos quatro cantos do mundo e ateando dezenas de focos revolucionários na zona de influência Capitalista, para obrigar a América imperialista a dispersar as suas forças e a desperdiçar os bilhões dólares necessários a uma eventual 3ª guerra mundial; a Europa do Carvão e do Aço conquistara novos membros, entre os quais a céptica Grã-Bretanha que, demasiado isolada temia que o eixo Paris-Bona ganhasse demasiado protagonismo nos futuros Estados Unidos da Europa, constituídos com o Tratado de Roma; anos antes; em França, para onde haviam emigrado corajosamente milhares de portugueses, o presidente Georges Pompidou, apesar de minado por uma doença incurável e desenganado pelos médicos, revelava-se um digno sucessor do carismático Charles De Gaule; no Médio Oriente, Moshe Dayan, o mítico general da viseira negra, que havia, em seis dias, infligido aos árabes a mais cruel derrota depois da fundação do Estado de Israel, ia resistindo ao apelo da guerra; entretanto, a Europa, a África, a Ásia e a América descobriam incredulamente à formação de grupos terroristas, entre os quais se distinguiam o duo Bader-Meinhof na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, a ETA na Espanha, os guerrilheiros Tamil em Ceilão, os Siks na Índia, os Kemeres Vermelhos no Camboja, os Sandinistas na Nicarágua, o Sendero Luminoso no Peru, sem esquecer o combate do ANC contra o apartheid na África do Sul e, sobretudo, para Portugal os turras do PAIGC, chefiados por Amilcar Cabral na Guiné, o MPLA, o FLNA e a UNITA, comandados respectivamente por Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi em Angola, enquanto em Moçambique a FRELIMO era chefiada por Samora Machel, sem esquecer um franco-atirador de origem venezuelana, Carlos, o Chacal, que fazia da CIA e do MOSSAD gato-sapato.

Em Portugal, o regime fascista, nascido em 28 de Maio de 1926, contava com a DGSE, a ex-pide, para manter longe do solo pátrio os corrosivos ideias da ditadura do proletariado e no exército para liquidar a contagiosa rebelião africana, iniciada anos antes na Argélia francesa e no Congo belga. Mas, isolado internacionalmente, sobretudo depois do assassinato de Humberto Delgado, o general sem medo, em Badajoz, a ANP, o partido único começava a duvidar da tão apregoada perenidade do regime e a pensar em conceder a autonomia às colónias menos rentáveis, a Guiné e Cabo Verde, para concentrar o esforço de guerra em Moçambique e, sobretudo na riquíssima Angola, cuja dimensão chegara a tentar muitos dos senhores do país, que queriam transferir a sede do governo para Luanda, mas Salazar, julgando-se o guardião da sagrada nacionalidade, opusera-se-lhes veementemente, obrigando a nação a aceitar tal desígnio. E o povo, mentalizado para ouvir e calar e obedecer cegamente aos seus governantes, para bem da pátria, aceitou todos os sacrifícios, laborando de sol a sol e rapando fome, mas quando viu os seus filhos, ano após ano, regressar do ultramar em quatro tábuas, a sacrossanta fidelidade sofreu um rude golpe: os jovens corajosos ousaram passar por refractários e afrontar as sevícias da PIDE e, largando tudo, pai, mãe, irmãos e terra, foram fugindo para o estrangeiro, juntando-se aos intrépidos zés do pulo e engrossando assim as fileiras da emigração clandestina.

Não admira pois que, regressando legalmente à terra, os emigrantes vissem quão falaciosa era a verdade fascista. Mais que uma mina de patacas, os filhos da diáspora descobriram nos países de acolhimento um bem inestimável, que tanto os inebriava e os fazia sonhar para Portugal: a Liberdade! E, aos poucos, a liberdade começou a ulular nas suas veias da nostalgia e a confundir-se com a saudade.
No coração de Trás-os-Montes, a província esquecida, uma das inúmeras famílias de emigrantes, que anos antes decidira investir o magro salário que o pai ganhava Campo de Jales e o dinheiro do resto dos terrenos herdados em 1962, se preciso fosse, e agora, em 1973, os milagrosos vales cor-de-rosa que chegavam do Luxemburgo, para onde o senhor Alexandre se mudara em Abril, porque o sonho da mulher para os filhos estava a ficar cada vez mais caro.

Tudo começara em 1966. A D. Ilda, a gentil professorinha que substituíra, anos antes no Fiolhal o severo e galã professor Edgar de Vila Real, conhecendo perfeitamente a capacidade e os desejos do franzino David, o aluno predilecto, por ser o mais asseado e o mais estudioso, mas muito tímido e introvertido, mandou finalmente chamar a mãe dele, com quem falava amiúde, e, apoiada pelo pároco, tentou convencê-la a mandar o filho para o liceu, para que ele realizasse aquele sonho que alimentava secretamente desde menino de bibe e pião, quando viu o negócio dos pais ir por água abaixo.
“ Credo, para o liceu, D. Ilda?! Se o negócio não nos tivesse corrido mal, mas assim... O meu marido ganha tão pouco nas minas!.”
“ Por amor de Deus, senhora Luísa, venda um terreno, mas não corte as pernas ao David! Olhe que os meninos como ele raramente vivem e morrem onde nascem. Ah! se a senhora conhecesse a força do sonho!...”
“ Se o meu marido estiver de acordo e o senhor abade mo meter no seminário...”
“ No seminário, D. Luísa?! O David disse-me que queria ser advogado para meter na prisão aquele ladrão do Meireles e os da mesma laia... ”
“ Advogado, senhora professora?! Nem pensar!! Só se for para padre!...”
E foi de bom grado que o David, obtido o diploma da quarta classe no mês de Junho, se sujeitou aos duros exercícios de revisão com o exigente padre Ferreira, professor no Externato Técnico e Liceal de Murça, para se apresentar ao exame de aptidão no seminário de Vila Real em Julho. Passando com sucesso esse primeiro teste da sua vida, lá abraçou a clausura para fazer a vontade à mãe e sobretudo poder continuar a sonhar com Coimbra, onde se via já a estudar e a jogar na briosa Académica.

Dócil como era, não lhe foi difícil esconder o seu verdadeiro sonho e passar por seminarista modelo, tanto nos diocesanos, onde esteve dois anos, como nos Salesianos, com quem simpatizou, e onde ganhou fama de poeta, jornalista e jogador de futebol, mas, sem saber porquê, em Dezembro de 1972, nas férias do Natal, renunciou à vida eclesiástica, decepcionando terrivelmente a mãe, que já se via orgulhosamente com o marido ao lado do senhor bispo no dia ordenação sacerdotal do filho.
Além disso, estando no último ano do liceu e fora do seminário, se calhar ele deixaria de ser aquele menino aplicado, sem contar com o aumento das despesas e nas tentações da vida no Estoril, mas o David disse-lhe que sabia muito bem o que queria e fazia, garantindo-lhe que, não só concluíra o curso complementar dos liceus em todas as disciplinas, como obteria uma média que lhe permitisse livrar-se do exame de aptidão à universidade e ganhar uma bolsa de estudo. E a senhora Luísa acreditou, deixando-o acabar o ano como externo numa pensão, apesar dos custos adicionais que tal decisão lhe exigia. Aluno modelo, o David não só obtivera do Padre Maio, director da ESSA — Escola Salesiana de Santo António — a possibilidade de terminar o ano na escola, como a gratuitidade de ensino contra a assistência e enquadramento da pequenada nos recreios do meio-dia., missão que ele desempenhou com muito brio e lhe valeu pessoalmente uma onda de elogios por parte dos paizinhos dos meninos com quem brincava.

Mas naquele ano de 1973 a Terra era um mundo de revoluções, a que o ex-seminarista não permaneceria indiferente. É que as razões do coração, imprevisíveis e irreverentes como são, chegam quase sempre antes do tempo, falhando inevitavelmente o encontro com o destino.


Luís Macedo Martins Pereira

LMP - Lud MacMartinson - Luxemburgo 1979

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