sexta-feira, 6 de maio de 2011

Herói en fuga - Adeus até abril ! Capítulo II

II

No dia 7 de Setembro, a senhora Luísa ergueu-se bem cedo, preparou o café e, quando faltavam vinte minutos para a carreira do Cabanelas passar, foi chamá-lo, porém ele já estava a recompor a cassete do Fréderic François que o pai lhe trouxera de França e que levaria para a viagem.
Depois de tomar a malga de café com leite e bolachas, pegou na maleta onde levava uma muda de roupa e os documentos para a inscrição na Faculdade de Direito em Coimbra e foi postar-se na berma da estrada, espreitando ansiosamente para os lados do cemitério, donde surgiria a camioneta que o levaria até Vila Real. Ao despedir-se dele, a mãe viu-lhe nos olhos a alegria indescritível de quem parte para os braços de alguém e, beijando-o, pediu-lhe que tivesse muito cuidado, não fosse o diabo tecê-las, mas ele, feliz como estava, nem a ouviu, sorrindo ao cobrador.

Chegado à central da Autoviação Cabanelas, em Vila Real, só teve tempo de pegar na maleta e saltar para o autocarro do Porto, cujo cano de escape já fumegava. Acenando, entrou aflito e parou ofegante a meio do corredor à procura de um lugar.
— Aqui à frente há um! — gritou o condutor, apontando para o assento vazio.
— Muito obrigado! — respondeu jovial, aproximando-se do lugar indicado.
— Até que a menina Angela teve muita sorte — murmurou o funcionário do Cabanelas, espiando o passageiro pelo espelho.
— Porquê, senhor... Ah!!... — bradou a moça, cruzando o olhar sério do viajante.
— Com licença, menina — disse intimidado, pousando a gabardina no assento, enquanto arranjava um lugar para enfiar a maleta.
A rapariga puxou a saia para cobrir os joelhos e desviou-se um pouco, fixando silenciosamente os olhos na vidraça e espiando discretamente os trejeitos do estudante que, depois de arrumar a maleta e a gabardina, se assentou timidamente ao lado dela.
Embalado pelas curvas do Marão e intimidado pela voluptuosidade feminina, David preferiu fechar os olhos sonolentos e recordar as aventuras dos meses de Junho e Julho no Estoril, mas, perto de Amarante uma travagem mais brusca e um coro de ohs! fê-lo estremecer e cair das nuvens.
— Calma pessoal, isto não é nada! — gritou o chofer, encostando a carreira à valeta.
— O que foi, senhor Pinto? — perguntou o velhote que seguia no banco da frente.
— Um furo, senhor Raposo — respondeu o condutor, gritando: — Quem quiser pode aproveitar para sair, respirar um pouco e mudar a água às azeitonas.
E, um a um, os passageiros foram saindo para a berma da estrada. Enquanto uns se prontificaram para ajudar o chofer a trocar de pneu, outros esgueiraram-se pelo mato e foram satisfazer as necessidades, aproveitando as moitas contíguas ao terreiro onde se quedaram. Finalmente, depois de quarenta minutos de paciência, lá retomaram a viagem até à princesa do Tâmega, Amarante, onde muitos aproveitaram para beber um copo. Angela e David, que depois do furo ousaram falar-se, saíram também e foram tomar um café com o chofer à S. Gonçalo, a pensão onde costumavam parar os condutores do Cabanelas.
Chegando atrasados ao Porto, já não se apearam na estação da Campanhã, preferindo descer na zona de S. Bento, onde também poderiam tomar o comboio para Lisboa e teriam mais diversões. Angela, que, como lhe confidenciara, também seguia para a capital, amarrou-se a ele e, tal escrava, seguiu-lhe as pegadas durante toda a tarde. Depois de jantarem num restaurante da Ribeira, depositaram as malas na estação dos caminhos de ferro e foram deambular pelas ruelas citadinas, à procura de qualquer coisa para passarem o tempo.
O Ben Hur, o filme que o estudante há tanto queria ver, estava em exibição no Coliseu, mas era comprido demais e não se prestava para ser visto às pressas. Como de terror não havia nenhum, partiram rua abaixo e lá voltaram para a estação de S. Bento, descobrindo o mundo proibido da prostituição, sob a tácita conivência das autoridades. Apesar da galante companhia, nas esquinas da rua Escura, foi abordado por uma Maria bem gordinha que lhe propôs subir ao sétimo céu com ela a troco de uma cinquenta. Sentindo um repelão furibundo da companheira de viagem, David limitou-se a olhar os seios lácteos da meretriz e a sorrir envergonhado, prosseguindo a caminhada.
Em S. Bento, como ainda faltasse mais de uma hora para o comboio, aproveitaram para tirar umas fotos à la minute. Na cabina, Angela roubou-lhe apenas um beijo, nada mais. Corado, David retraiu-se e não a encostou e beijou como a tumescência lhe suplicava, preferindo adiar tal ousadia para a solidão da carruagem, quando o tremedouro do comboio e o cansaço da viagem os fizesse cochilar lado a lado.
E não se enganou. Até Santa Apolónia, não se cansaram de se excitar com beijocas e carícias clandestinas, enquanto os velhotes, que lhes faziam companhia, ressonavam encostados um no outro, indiferentes aos ardentes subterfúgios de tão simpático casalinho.

Lisboa dormia ainda, quando chegaram ao fim da viagem e tiveram que interromper aquele gostoso jogo sedutor.
Àquela hora, sem vivalma, as ruas da capital, tão buliçosas, mais pareciam a pasmaceira do Fiolhal. Decidiram então entrar na primeira casa de pasto que viram aberta, onde esperaram que fizesse dia, à volta de uma chávena de café com leite e dois pasteis de nata. Depois, dissipada a bruma nocturna, cada um seguiu o seu destino. Angela, que ia servir num bar da Avenida Almirante Reis, ficou muito triste, quando o viu levantar-se e vestir a gabardina para se ir embora. E uma lágrima inundou-lhe timidamente aqueles olhos negros onde se espelhava o sorriso meigo do estudante.
— Que pena que não tenhamos tido mais tempo, Angela.
— Tempo, David?! O tempo faz-se...
— O tempo não: o amor é que se faz, mas chega quase sempre tarde de mais.
— Ó David, nunca é tarde de mais para amar alguém, mesmo de fugida.
— Se calhar... — murmurou pensativo, fixando as retinas da donzela.
— Bom, por esta vez vai-te lá embora, senão ainda perco a cabeça e eu não te quero roubar a quem muito deve estar a sofrer por ti, David.
— Mas...
— Psch, não digas nada, porque eu sei que é verdade. Os teus olhos cruzam os meus, mas não são eles que tu vês; as tuas mãos seguram as minhas, os teus lábios beijaram os meus, pensando naqueles que te deram a volta à cabeça. Sabes, eu já vi muitos olhos assim apaixonados, por isso sei que não te mereço. A minha vida já é muito triste assim, por isso não a entristeças ainda mais, David!
— Por favor não digas nada, Angela! Até qualquer dia, se Deus quiser, e oxalá encontres um milionário que se enleie nesses teus olhos e te ame de verdade, porque a tua formosura merece toda a felicidade do mundo — murmurou sorridente, tapando-lhe a boca com o indicador.
— Adeus e boa sorte, David! — exclamou a rapariga, acenando pesarosa.

Comovido, não esboçou o mínimo gesto de adeus. E seguindo ao longo da calçada, lá partiu de maleta na mão até à estação do Cais do Sodré, a fim de apanhar a automotora para S. João do Estoril, onde queria chegar antes das nove horas, para ser o primeiro a ser atendido pela secretaria do liceu.
A Ponte Salazar e o Cristo Rei de Almada desvirginavam as trevas diluídas com os seus luzeiros cintilantes; a maresia matinal, furtando-se à vigilância da madrugada, perfumava a Baixa com o hálito das gaivotas, que em bandos pipilavam a sua sina; a escuridão, que mantivera de pé a igualdade todos os homens da cidade durante a noite, dissipava-se envergonhada diante do Sol nascente, donde emergia uma ditadura de preconceitos sociais, como se os homens não fossem iguais. Que pena que a igualdade só fosse o apanágio da noite, quando ninguém a via, e não permanecesse firme e inabalável durante o dia!
No Cais do Sodré, David teve apenas tempo de tirar o bilhete e entrar no comboio da Linha do Estoril. Trinta minutos depois, porque a automotora voltava vazia, chegava ao destino com duas horas de avanço...
Como os cafés de S. João do Estoril ainda estivessem fechados, lembrou-se da doce e tentadora Marisa, aquela professora atenciosa e meiga que, no dia do exame de História Universal, o livrou das manápulas dos gorilas do Ministro, pai da doce Giola, o seu primeiro e verdadeiro amor, conhecido na praia do Tamariz no dia 21 de Junho, uma segunda-feira, quando uma infernal temperatura de trinta e cinco graus o fez delirar em pleno areal. Ah, a Giola, como era bela a Giola! Depois, depois nem valia pena recordar aquele amor impossível, tão diferente era o mundo da donzela.
Caminhando à sorte pelo meio do bairro residencial, pousou a maleta e tirou da carteira o bilhete com o endereço da professora. Retendo o nome na cabeça, seguiu a estrada principal à procura da travessa em questão. Não demorou muito a encontrar o letreiro e o número do edifício. No rés-do-chão, sentiu-se amedrontado pelo brilho daquele mármore requintado e quase desistiu e voltou para trás, mas uma senhora dos seus cinquenta anos, que saía visivelmente para o trabalho, vendo-o de maleta, ironizou jovialmente:
— A vida é assim: quando uns vão, outros voltam. Bom dia, menino!
— Bom dia, minha senhora! — exclamou intimidado, apoiando no botão do elevador.
Diante da porta da professora, ainda hesitou, mas, enchendo-se de coragem, lá carregou na campainha e respirou fundo para afrontar um olhar mal-humorado ou, quem sabe, apanhar um par de bofetadas. Como ninguém respondesse, apoiou demoradamente uma segunda vez no botão e encostou-se à porta. Mal tivera tempo para arranjar uma fórmula de saudação e já o barulho das persianas lhe perturbavam o raciocínio. Aprumou-se e sorriu para o olho mágico da porta. Ouviu passos e sentiu a mãozeira mexer. Intimidado com a aparição, murmurou apenas:
— Oh! desculpe...
De cabelos emaranhados e uma combinação pelos ombros, a professora nem teve tempo para disfarçar a confusão que sentia com aquela inesperada visita. E, mirando-o de alto a baixo, abraçou-o demoradamente sem o beijar. Derreado para que ela lhe chegasse melhor ao pescoço, David não sabia o que fazer àquele corpo gostoso e deixou-se estar de maleta na mão esquerda até que os seus olhos se cruzaram, beijando-se de fugida.
— Entra, David, entra! — disse a professora, espreitando preocupada para as escadas do imóvel e fechando a porta à chave.
— Este prédio é muito chique, senhora professo...
— Marisa! — interferiu a docente.
— Marisa, eu... — balbuciou o estudante, subjugado pelos contornos voluptuosos.
— Deixa cá ver essa gabardina sinistra.
— Sinistra, senhô... Oh! desculpe, Marisa! — rectificou embasbacado.
— É, assim, mais pareces um polícia que...
— Que?!
— Um anjo!
— Um anjo, eu?! — indagou mais calmo, de costas na penumbra da entrada, pendurando a gabardina no bengaleiro.
Aproximando-se em pés de fada, a professora abraçou-o por detrás e, cheirando-o amorosamente, disse:
— Hum! Parece-me que o menino viajou em boa companhia!
— Porque diz isso?
— A tua roupa está impregnada com perfume de mulher.
— De mulher?! Hufa! Ainda bem, não? — ironizou envergonhado, sentindo-se arrastado para a intimidade da adorável solteirinha.
— Vá, acalma-te que eu não te como, David!
— Você não, que não terá fome, mas eu...
— Não me digas que eras capaz?!
— Quem sabe, Marisa, quem sabe?
— Hum!, até me parece que não. Coitado, o menino saiu-me cá um envergonhado!...
— Por favor, vista-se um pouco melhor que... — implorou cabisbaixo, diabolicamente excitado pelos seios e pelas nádegas da acalorada.
— Não fiques assim corado que agora aqui ninguém nos vê!
— Não, não é isso, mas tive uma longa viagem e, como vê, estou com falta de sono e com a pele pegajosa — desculpou-se, engolindo em seco, descontrolado pela terrível e incómoda erecção que a nudez lhe suscitava.
— Bom, então vai lá tomar banho, enquanto eu faço o café. O banheiro fica aqui mesmo ao lado. Tens sabão, xampu, toalha...
— Obrigado, senhora... Perdão! Obri..., Marisa. Com licença — disse cabisbaixo, retirando-se para o banheiro.
A professora abotoou a combinação e, sorrindo maliciosa, foi para a cozinha acender o fogão e preparar o pequeno-almoço matinal.
— Eu tenho que ir à secretaria do liceu buscar uma certidão para a inscrição na universidade, Marisa — acrescentou finalmente em voz alta, depois de um minuto de silêncio.
— E para onde vai o menino estudar? — perguntou curiosa, tilintando com o bule.
— Para Coimbra...
— Para te veres livre do Ministro ou da filha?
— Oh! Sei lá, às vezes tenho vontade de me inscrever aqui em Lisboa, mas a faculdade de Direito de Coimbra tem outra fama e, além disso, tenho medo que os gorilas do..., do sinistro me façam a folha...
— Infelizmente as coisas são assim, David: proibidos de falar há meio século, os portugueses parecem uma espécie de invertebrados...
— É muito triste ser-se escravo no próprio país, pois é?
— É, mas toma o banho que o café não demora. Diz, como o preferes? Brando...
— Eu prefiro-o bem preto e amargo, mas se lhe deitar leite...
— Ah, sim?! Muito bem, agrada-me saber que não tens preconceitos racistas.
— Por acaso, não, Marisa.
E o silêncio voltou a separá-los por instantes. Entretido a ensaboar-se e a fazer bolhas de espuma, David esqueceu-se do tempo e dos medos e, relaxado pela água quente que lhe chegava até aos joelhos, quase adormeceu, espiado nos seus trejeitos. O aroma do café, invadindo-lhe as narinas, fê-lo despachar-se, secar-se e vestir-se à pressa para não ceder ao apelo libertino que fervia nas suas veias, mas que o seu coração recusava inexplicavelmente. Saindo do quarto de banho, deu com os olhos na professora, cabisbaixa a tomar o café, mas em calças de ganga, ténis, blusa rosada e com o cabelo apertado em rabo de cavalo, como ele a conhecera na enfermaria do liceu.
— Hum!, este café deve estar óptimo, Marisa!
— Olha que as coisas nem sempre são como cheiram, David.
— O quê?! — retorquiu aéreo.
— Dizia que as coisas nem sempre são como cheiram.
— Não está a pensar no perfume da minha camisa, pois não?
— Porquê?! Não me digas que isto se aplicava...
— Não, estava distraído — disse pensativo.
— Tens geleia, torradas, manteiga, café, leite...
— Obrigado, você é muito gentil.
— Por favor não me trates por você que me fazes velha, David. Com vinte e três anos não sou assim tão velha, pois não? — retorquiu a professora, limpando os lábios vermelhos.
— Claro que não!
— Bom, em público até me podes tratar por senhora, mas entre nós, francamente!
— Certíssimo, Marisinha — disse carinhoso, empiscando-lhe a medo.
— Ah! gostei, David! Sinceramente, adorei muito, muitíssimo mesmo! — exclamou comovida, roçando-lhe os dedos esguios na epiderme ainda quente.
Ele sorriu e, respirando fundo, baixou os olhos sobre a mesa, admirando o bailado gracioso daquelas unhas vermelhas que o serviam delicadamente. Estático na cadeira, David bem quis dizer-lhe que estava muito linda, mas, com a voz embargada na garganta, nem teve a coragem de soltar uma palavra de gratidão. Realmente sentia-se muito confuso.
— Eh! Eh! acorda, sonhador! — disse radiante, pondo-lhe uma torrada com geleia de cereja diante dos lábios.
— Ah, desculpe, muito obrigado pela gentileza, mas deve ser do sono da viagem! — agradeceu distraído, fitando-a timidamente.
— Então, se tem sono, durma, menino.
— E a certidão? Não, agora que só já falta uma hora para a secretaria abrir...
— Sossega, deixa o relógio em paz que o liceu está aberto todo dia — interferiu sorridente, cravando-lhe inesperadamente as unhas vermelhas no relógio e no pulso.
Surpreendido por aquele impulso repentino, David sentiu um calafrio invadir-lhe a espinal medula e fustigar-lhe o corpo de lés a lés. E, como que picado na sua inércia contemplativa, começou a mastigar a torrada que havia segurado maquinalmente, recuperando o tempo perdido com a indecorosa divagação. Adivinhando o acanhamento do visitante, Marisa deixou-o só e retirou-se para a cozinha com a chávena, o prato e o talher na mão. Depois, sorrindo maliciosamente, foi arrumar o quarto. Livre da constrangedora presença feminina, que tanta confusão semeava no seu espírito, David acabou de levantar a mesa e, abrindo cautelosamente a torneira de água quente, passou rapidamente uma esponja na louça, embalado pelo tom crescente dos melodiosos vinte anos, do José Cid, cujo refrão implorava desesperadamente: “ Vem viver a vida, amor, que o tempo que passou não volta mais...”
Quando a canção acabou, já estava de gabardina vestida, mas desabotoada, com as mãos no bolso, numa pose descontraída, a olhar pela janela. Em baixo, a rua estava quase deserta; apenas duas crianças, de saco plástico a balançar e a colher a brisa matinal, quebravam a monotonia daquele bairro residencial a suspirar a algazarra dos dias de aulas! Não, afinal, o que ele mais detestava era mesmo a ditadura do silêncio, quando lhe queriam cortar a voz. Estranho, como lhe parecia incongruente a ilógica razão humana, de tudo querer e procurar a contratempo, como alguém que andasse permanentemente a reboque do passado ou de um futuro qualquer, sem nunca vivero presente, que é a própria essência da vida.
— Mas que detective mais apressado! — bradou irónica, ajustando-lhe a gola.
— Por favor, não me olhe assim, que eu não sou polícia.
— Mas parece.
— Pois é, mas as iludências aparudem! — retorquiu peremptório, num jocoso e repentino trocadilho que a fez corar e rir a gargantas despregadas, pondo fim àquele monótono e insípido aparte.
E, olhando-se seriamente, não se disseram mais nada. Os gestos e os sorrisos substituíram magistralmente as palavras, como se aquela inexplicável cumplicidade telepática fosse o amadurecido fruto de uma primeira incarnação.

Às nove e cinco, o pré-universitário conferia orgulhosamente diante da secretária do Liceu Nacional de Cascais, em S. João do Estoril, onde no dia vinte e três de Julho último concluíra brilhantemente o Curso Complementar, a tão desejada certidão que a empregada carimbou com o selo branco da república. A professora ficara encostada a um snobe Fiat Cinquencento que estava estacionado diante das escadarias, donde o espiava discretamente.
Eufórico, David pegou na folha, que dobrou e guardou na bolsa dos documentos, e correu ao encontro dela como uma criança mimada que acabava de realizar um sonho. Fingindo-se distraída a cortar as cutícula das unhas, a professora não se deu por achada, desdenhando aquele regozijo juvenil. Sentindo-se ignorado, o estudante acalmou os ardores e, mudando de cara, aproximou-se calmamente e balbuciou tristonho:
— Pronto, Marisa, agora já podemos ir buscar a minha maleta.
— Para quê? — perguntou cabisbaixa, lixando cuidadosamente as unhas.
— Então, agora tenho que ir à Escola Salesiana pedir uma declaração de bom comportamento — retorquiu de voz trémula, quase afónico.
— Pois, está bem, vamos — murmurou entretida com a manicura.
— Vejo que sente orgulho nelas — acrescentou resignado, espiando a periferia com aquele olhar nostálgico e enfiando a mão esquerda na gabardina.
— Bastante — murmurou simplesmente, mirando o verniz, antes de o fitar enigmaticamente.
— Vá, seja franca! Fui bem estúpido em aparecer aqui sem avisar, não fui?
— Sim e não só!… Foi bastante corajoso e teve muita sorte!
— Sorte, eu?! — indagou perplexo, olhando-a de alto a baixo.
— Sim, podia me ter encontrado com outro. Pois, foi um lapso da sua boa educação, ou uma insuficiência sociocultural, mas está bem, a sorte premeia sempre os audazes.
— Certamente, mas desculpe esta insolência: o seu sexto sentido apresenta uma insuficiência fundamental — retorquiu o estudante, corando profundamente.
— Ah sim?! Qual? — perguntou a professora, atirando os cabelos para trás das costas para melhor fazer emergir o busto.
— Bom, ou o seu sexto sentido estava a analizar outro, ou se engana redondamente, porque eu não sou nada audaz. Pelo contrário, sempre fui muito tímido. Um medricas...
— Pois é, mas o menino esquece-se que as..., como disse?, Ah!, as iludências aparudem!… — retorquiu graciosa e mimalheira, despindo-lhe a alma com um olhar voraz.
— Oxalá tivesse razão, Marisa! — exclamou o visitante pensativo, fitando enigmaticamente o horizonte com aquelas retinas apreensivas.
— Credo, David, parece que estás a ver o diabo!
— Não! É o inferno... — murmurou entristecido.
— Inferno?! — questionou perplexa.
— Sim, é um pressentimento que vive dentro de mim há muito tempo, mas..., enfim, estas não são contas do seu rosário e..., além disso chegámos — desculpou-se ele, deixando-a entrar no elevador.
A professora limitou-se a sorrir e a respeitar aquele olhar enigmático. A ascensão até ao segundo andar fez-se silenciosamente e, como dois estranhos, mal se olharam, mantendo a respiração suspensa até ao interior do apartamento, onde se imobilizaram num indecifrável e patético face a face, como duas estátuas de mármore. Descontrolado pelos lábios vermelhos e as sobrancelhas depiladas o moço engoliu em seco todas as emoções que efervesciam naquele coração ingénuo e balbuciou indeciso:
— Bom, Marisa, mais uma vez, muito obrigado e...
— Tem mesmo que ser, David?
— Não, não tem que ser, mas..., mas...
— Mas o quê?
— É que quanto mais demoro, mais me custa dizer adeus — confessou cabisbaixo.
— Porventura, pensas que a mim não me custa ver-te partir novamente sem...
— A si ?! Terá, porventura, a menina pensado em mim depois daquele dia em que me lambeu o sangue...
— Claro, mas não brinques com coisas sérias e, por favor, trata-me por tu, que eu sou quese da tua idade! Puxa, nós pertencemos ambos à mesma geração, David! — lembrou emocionada, agarrando-se-lhe ao pescoço.
— Longe de mim tal safadeza, Marisa! Sinceramente, o que é que pode faltar a uma mulher tão bonita e com um óptimo emprego? — perguntou emocionado, bafejando-lhe o ouvido.
— Talvez o melhor, David! — suspirou envergonhada.
— Pois, talvez!
— Talvez?!
— Sim, seguramente, com certeza, obviamente, está na cara: o amor, não é?!
— É!... — balbuciou arrepiada, soltando um suspiro que esbarrou nos tímpanos adónis e lhe eriçou a epiderme.
— Agora percebo como é difícil ser o pretendente de uma mulher assim — confessou ingenuamente, retendo as mãos afastadas, tetanizado pela maldita timidez que tanto o inibia.
— Oh! David, David!!! — suspirou comovida, aninhando os seios no peito varonil.
Domada a doentia timidez e o frenesi erótico que tanto o excitava, o estudante abraçou-a demoradamente e, batendo-lhe carinhosamente nos flancos, foi-a reconfortando fraternalmente, evitando o boca a boca langoroso que a libido lhe reclamava.
Controlado aquele impulso febril, julgando-se rejeitada, Marisa quis fugir, mas David reteve-a pelas nádegas, colando-lhe energicamente a tumescência viril contra o umbigo. Sentindo aquele desejo louco nos olhos do adolescente, a solitária cerrou as pálpebras e estendeu-lhe os lábios em bico para um beijinho, mas ele não lho deu e fugiu amedrontado, largando-a inexplicavelmente no meio do corredor. Confusa, Marisa correu a trancar-se no quarto. Arrependido, David ainda pensou ir reconfortá-la e explicar-lhe a razão daquele gesto, mas a vergonha reteve-o diante da porta, obrigando-o a sair cautelosamente.
E, pegando na maleta, lá se resignou a escutar a reprimenda da sua consciência. Depois, fechando o apartamento sem fazer barulho, assentou-se nas escadas e escreveu um bilhete que enfiou debaixo da porta. No elevador, mirando-se, não gostou nada da cara que via no espelho e berrou raivosamente: Palerma! palerma!!!

Perto da estação, ainda se virou, porém o orgulho impediu-o de voltar atrás. Na carruagem, tudo lhe era insensível; cabisbaixo, quis cavar no chão um buraco para se enfiar, mas não via terra onde meter as mãos; atribulado pelo vexame cerebral, o coração recusou-se a bater dentro de um peito tão cruel; só o egoísmo se vangloriava e lhe estoirava os tímpanos com um machismo ridículo.
Na Escola Salesiana, a declaração de bom comportamento académico, que obteve em dez minutos e leu por ler, não lhe suscitou nenhum regozijo. Diante do junto do Casino do Estoril, lembrou-se da Vika, a nórdica com quem andara nos últimos dias do ano escolar para esquecer a Giola, a maior conquista da sua veia poética, de quem se vira brutalmente afastado pelo Ministro, progenitor da donzela, mas não teve a coragem de se confrontar com um hipotético rival. É que a sibarita dos fiordes mudava de boy-friend como quem muda de camisa e o magnânimo senhor Anderson, impregnado com a cultura ultra-liberal da sua Suécia natal, não se ralava nada com as leviandades da herdeira. Não, agora que o desgosto da rejeição do clã do tirânico Almeida, estava definitivamente sarado e que sabia a doce Giola perdida para sempre, não queria embarcar em mais nenhuma aventura de ânimo leve, porque as rupturas, quando acontecem, sabe-se sempre quando começam, mas nunca como acabam e quanto mais estendia as suas conquistas, menos liberdade sentia, como se o poder do espírito residisse na capacidade de dizer não e aceitar as sevícias da solidão.

Por volta do meio-dia daquela sexta-feira, 8 de Setembro, David, que entretanto conseguira enfiar a gabardina na maleta, lembrou-se da mãe e entrou nos correios, donde telefonou para a taverna do Fiolhal e pediu ao senhor Filinto que mandasse um garoto avisá-la que estava tudo bem e que já tinha os papéis todos, mas só devia ir a Coimbra na segunda-feira, porque a secretaria da universidade fechava ao sábado.
Depois, retomando o velho hábito escolar, subiu a encosta do quiosque dos jornais, onde costumava parar quatro vezes por dia, de manhã e à tardinha, à ida e à vinda das aulas, e pousou a maleta para se deleitar com as edições da Playboy e da Penthouse de Setembro, porque as de Agosto o pai, descobrindo-lhe por acaso as de Julho no meio dos cadernos, já lhas tinha comprado perto do mercado de Vila Real. Ainda chegou a tirar a carteira do bolso para as comprar, mas, temendo ficar sem dinheiro, pousou-as novamente e dirigiu-se para a rua Guiomar Torrezão para visitar a família nabantina onde vivera os últimos sete meses do ano escolar. Mal entrou no pátio, alguém lhe gritou:
— O senhor Manuel e a D. Maria Rita não estão, David!
Surpreendido, o estudante virou-se para a esquerda e deu com os olhos na vizinha do 109, uma senhora dos seus cinquenta anos que andava sempre de preto e cheia de pêlos de cães, a quem queria como gente.
— Olá!, D. Guilhermina, como está?
— Bem, obrigada. O David sempre vai voltar para casa do senhor Firme, vai? Nós bem dizíamos que o menino acabaria por se decidir por Lisboa. Coimbra está longe, muito longe!...
— Coimbra está longe de quê, D. Guilhermina?
— Da menina então! — desabafou a senhora, acariciando o lombo de um pastor alemão preto.
— Qual menina? Desculpe, mas eu não sei...
— Segredeiro! Guardou o namoro a sete chaves! Se não fosse a Lita, ninguém sabia que o menino e a filha do senhor Ministro...
— A filha do senhor Ministro?!
— Não se faça despercebido que eu bem a vi rondar por aqui e cochichar com a D. Maria Rita e os filhos depois que o David se foi para Trás-os-Montes. Ponha-se a pau que o Zezito ainda lhe rouba a..., como se chama?
— Giola! Giola!!! — gritou bem alto, como que a pedir socorro, traído pela magia e o encanto de um nome que julgava jamais poder pronunciar assim.
— Ah, está a ver como é verdade!
— Se o senhor Manuel ainda voltar de Tomar com a família este fim-de-semana, a D. Guilhermina, por favor, diga-lhes que eu estive aqui para os ver e que vou para Coimbra na segunda-feira.
— O David sempre vai ver a menina Giola? — insistiu a curiosa.
— Não, não vou — respondeu o ex-hóspede dos Firmes, tristonho.
— Onde é que eles o podem encontrar, David?
— Não sei. Adeus, D. Guilhermina! — exclamou triste.
E, acenando maquinalmente, foi-se embora pela rua abaixo até à Faena, o café onde costumava ir beber a sua bica. Acabrunhado e abúlico, saudou molemente os clientes do bar sem os olhar e foi assentar-se cabisbaixo no canto onde estudara tantas lições e escrevera muitas coisas lindas. Vendo-o assim tão cabisbaixo, a empregada fingiu que não o viu e deixou-o respirar um pouco, esperando que a chamasse, mas o tempo passava sem que aquele rapaz estranho a olhasse ou levantasse o dedo. Até que surgiu o fala barato com as suas habituais farelices para alegrar a malta, traquinando a rapariga:
— A menina já pina?
— Psch! Fale mais baixo e tenha juízo seu velho maluco! — sussurrou a rapariga.
— É, a mim pode-mo dizer que...
— Psch! Está ali um...
— Oh, eu conheço-o! — respondeu o palrador, surpreendido pela presença do estudante.
— Conhece-o?! Quem é?!
— Então o menino agora já não fala aos amigos?
— Olá, ti Chico, como está?! — bradou animado, dirigindo-se ao velhote.
— Não me diga que as gajas já não lhe ligam, doutor David?
— Doutor ainda não, senhor Francisco — corrigiu o moço, sorrindo levemente ao apertar a mão ao faroleiro.
— Mas há-de ser, mas há-de ser, David.
— Sei lá, como estou já nem sei se chego amanhã.
— Credo! Cruzes!, que o diabo seja surdo! — exclamou o velhote, batendo os nós dos dedos no balcão, ante o pasmo da rapariga.
Aproveitando o silêncio daquele abraço, a servente perguntou timidamente:
— Desculpe, mas já lhe posso servir alguma coisa, senhor doutor?
— Um prego e um sumol, se fizer o favor, menina...
— Catarina, Catarina como a Eufemia — respondeu a rapariga.
— Não me diga que é alentejana?
— De gema, como aqui o Chico Caixinha — adiantou orgulhosamente o alentejano de Castro Verde.
— Ah! então é por isso que o ti Chico se permite certas familiaridades...
— Que fa...; fami...? — indagou atrapalhado.
— Familiaridades?
— Isso, sim essa coisa, o que quer dizer? Diga que a rapariga é surda — insistiu o castiço Chico, bebendo a bica e espiando a porta da cozinha, onde estava a Catarina.
— O senhor não tem vergonha de perguntar à moça se ela já pina?!
— Então, compadre, ela já tem idade!
— Terá, mas...
— Mas quê senhor doutor? — perguntou a moça toda airosa.
— Nada, menina, eu só queria cortar a língua a este compadre — desculpou-se confuso, corando instantaneamente.
— Pois, quando era novo o ti Chico foi pastor e como apanhou muito sol na moina... às vezes desafina. Ah! Maluquices de velho não engravidam gaiatas!
— Oh, a ingrata está a chamar-me velho, doutor!
— E não é, ti Chico?
— Está bem, pronto, os doutores e os engenheiros arranjam sempre maneira de nos dar a volta. Tu toma cuidado com ele, Catarina, que este é o maior garanhão do Estoril.
— Não diga asneiras, que me envergonha, ti Chico — suplicou o estudante baralhado.
— Bom, porque é bom rapaz e me vai pagar a bica não lhe vou destapar a careca...
— Lá por isso, beba outra.
— Outra não, mas um prego e uma cerveja...
— Pronto, faça lá outro para este crava, Catarina — ironizou o transmontano, empiscando à moça e retirando-se para a mesa mais próxima.

Enquanto a servente lhes preparou os pregos, o ti Chico despejou o saco e contou-lhe as últimas novidades do S. Pedro: ao que parecia, a patroa do café Faena não continuaria viúva por muito tempo; o Manuel Firme andava todo contente porque a Lita, a filha, namorava com um rapaz da terra e, nos fins de semana, já ajudava a tia telefonista de um grande hotel de Cascais, aumentando as mesadas que entravam lá em casa...
— Mais nada ti Chico?
— Ah! Desculpa, já me esquecia: uma boazuda, loirinha como uma espiga de trigo antes da ceifa, ainda aqui veio quatro ou cinco vezes perguntar por ti, mas...
— Com licença, os vossos pregos — gritou a servente, colhendo-os de surpresa.
— Obrigado, Catarina, só falta o sumol e a cerveja.
— Não, traz-me antes um copo desse tinto...
— Mau-mau, ti Chico! — berrou-lhe a rapariga, vendo-o tão abusador.
— Deixe lá, Catarina, se calhar não nos voltamos mais a ver...
— Mau-mau, David! — gritou o alentejano, arregalando os olhos e batendo duro na mesa.
— Não, ti Chico, não é o que o senhor pensa — disse o estudante, muito mais jovial.
— Também estava ver! Então o compadre não vê que ainda é muito novo para ir dar de comer aos bichinhos? Bom rapaz como é, e com tanta coisa boa...
— Coma e cale-se, senão é você quem tem que pagar o estrago, ouviu?
— Pronto, doutor. Ei! Catarina, pst! saúde! — exclamou o linguareiro, brandindo o copo e empossando maliciosamente.
— Saúde não, juízo e muito!!!
Entretidos com os bifes, que mastigaram silenciosamente, perderam o fio à meada e quando acabaram não o encontraram mais. Depois de tomar a bica, David apertou a mão ao velhote, pediu à criada que desse um abraço à patroa e bradou jovial:
— Adeus, Catarina! Adeus, ti Chico!
Adeus e obrigado, David! — exclamaram ambos, acenando também.

Pela janela da cozinha, a rapariga não lhe tirou os olhos de cima. Apressando o passo, pôs-se na Marginal em menos de dois minutos. Diante da Azambujinha, ainda pensou dar um salto até ao areal, mas, vendo-se com a maleta na mão, receou que os veraneantes o tomassem por um provinciano.
Intimidado pelos bólides que passavam, não fosse reconhecido por alguém, preferiu continuar a viagem pelo trajecto que contornava S. Pedro e seguia até S. João pelo sítio da pedreira, seguindo o percurso do autocarro que levava os alunos para as aulas. Perto do liceu, a coragem, que tinha forjado mentalmente ao longo da berma da estrada, desfaleceu, deixando-o a braços com um dilema do tamanho do mundo: partir ou ficar? Se partisse, seria cobarde, mas teria a vida inteira para curar o remorso, se ficasse, correria o risco de tudo perder, certo, mas também de tudo ganhar. Que fazer, Santo Deus? Mas porque diabo havia ele ter recusado aquele beijo à Marisa? Se calhar ela até só queria sentir o calor da sua amizade. Como é incoerente a razão do coração!...
Farto de dar voltas à cabeça e de implorar a clemência dos Céus, saltou do muro e dirigiu-se para a estação. À medida que se aproximava da rua da residencial, as palpitações aceleravam vertiginosamente, pondo-o em pânico; as mãos suavam cada vez mais e os tremeliques eriçavam-lhe a epiderme, como se um fluxo magnético lhe trespassasse o corpo. Na esquina do prédio, pousou a mala para limpar um súbito calafrio e, mirando as janelas do segundo andar, viu as persianas descer. A professora devia estar a amaldiçoá-lo atrás da vidraça. E se fosse pedir-lhe perdão?
Não hesitou. Pegando na maleta, correu como se tivesse asas. E, precipitando-se no elevador, lá chegou ao destino. Contudo, diante da porta, foi como se tudo se desmoronasse. Os medos ressuscitaram e com eles a maldita timidez. Sem coragem para carregar tenuemente que fosse na campainha, assentou-se nas escadas de mármore e acabou por adormecer com o queixo apoiado na maleta, iniciando uma interminável viagem ao fundo do inferno.
No meio do sonho, quando os anjos das trevas iniciavam o ritual do sacrifício, teve medo e arrancou desesperadamente a lâmina do alfange, mas não se cortou. Incrédulo, apalpou-o novamente e viu que a imagem cerebral não correspondia à doce sensação que lhe aquecia a ponta dos dedos. E, apalpando bem para se certificar que não sonhava, sentiu uma mão de fada limpar-lhe o suor da testa. Quis ligar o sonho, mas a imagem do inferno metamorfoseara-se na mais inefável paisagem que jamais os seus olhos viram: estava num vale florido, vestido de branco e conversava com uma donzela. O rosto não lhe era estranho, mas o sofrimento desfigurava-a e quanto mais se esforçava por lhe desvendar a identidade, menos nítida a via e uma voz suave, surgindo das entranhas daquela terra paradisíaca, segredou-lhe placidamente ao ouvido: “ não te atormentes por tudo e por nada que a dor purifica o amor. ” e desfez-se num jorro de luz tão intensa que, cego, ele deitou as mãos os olhos para se proteger.
— Mas!!!
— Psch! Vá, descansa, dorme e sonha.
E, cerrando lentamente as retinas, o nefelibata adormeceu novamente com as mãos debaixo do rosto. Sentindo-o respirar e dormir placidamente, o anjo da guarda interrompeu aquela platónica vigia, retirando-se para o seu ninho de veludo. No clímax da refrega quimérica, o fugitivo intersideral sentiu sede e, meio tonto ainda, levantou-se. A lâmpada amarela do candeeiro de parede iluminava tenuemente o apartamento. Caminhando descalço, abeirou-se da torneira da cozinha e, abrindo-a levemente, bebeu, bebeu, sem deixar cair uma gota de água na bacia. Depois, espreguiçando-se, encostou os lábios num pano, secou-os e, atraído por uma luz avermelhada que se esgueirava do quarto, foi ver. Um lençol cor-de-rosa cobria parcialmente as coxas daquela fada desguedelhada; os brincos estavam na mesinha de cabeceira ao lado de um livro de psicologia. Fascinado pelos contornos herógenos, David pegou numa almofada e ajoelhou-se mesmo diante do nariz. Depois de mais de dez minutos de uma fervorosa e muda contemplação, o escravo não resistiu à tentação de lhe beijar timidamente a mão que caía para fora do leito. E, como os lábios da princesa adorassem aquelas cócegas, foi alastrando os beijos carinhosos pelos braços e os pés descobertos. Inevitavelmente, o fascínio metamorfoseou-se sujeição e a sujeição em cegueira e a cegueira em gratidão e a gratidão em desejo e o desejo em tentação, como se, depois da alma, a paixão lhe hipnotizasse o coração e lhe fizesse adorar a aquela escravidão. Deleitada com tanta ternura, a vénus adormecida sentiu um ardente fluxo libidinoso invadir-lhe as entranhas e, introduzindo os dedos esguios na boca, começou a mordê-los e a contorcer-se. Intimidado pelo primeiro suspiro, o intruso corou e parou a ousadia, ajoelhando-se na almofada. Depois, pegando-lhe nas mãos macias, beijou-as e, roçando o rosto nelas, pediu-lhe perdão. Suspirando baixinho, a professora puxou a mão direita e começou a acariciar e a beijar-lhe o cabelo e o pescoço, arrepiando-o todo. E, arrastando-se para trás, deixou-lhe o lugar quentinho para que ele se deitasse a seu lado. Radiante, David animou-se-lhe nos braços mesmo todo vestido e, sorrindo-lhe aliviado, ofereceu-lhe os lábios para um beijo, mas ela, fazendo-se rogada, manteve os dela afastados. Cerrando as pálpebras e franzindo a testa, ele manteve-se firme e esperou pacientemente o contacto, enquanto ela, sorrindo maliciosa, se deleitava com a provocação. E cada segundo sem resposta parecia uma eternidade; os braços, espetados no colchão, vacilavam, os músculos faciais tetanizavam-se e a respiração, involuntariamente suspensa, acelerava-lhe o fluxo sanguíneo, mas ele mantinha-se irresistivelmente inerte. Perdido e retomado o fôlego, David sentiu a escuridão invadir-lhe as retinas e as lágrimas, abrindo uma fenda nas pálpebras, começaram a resvalar-lhe pela face, mas, mesmo assim, não desistiu e manteve-se firmemente estático até que sentiu os lábios engolidos pela langorosa saliva feminina. E as suas bocas sequiosas lançaram-se perdidamente num gemebundo boca à boca que fez transbordar a demência sensual pelas margens do leito onde os seus corpos loucamente entrelaçados em paisagem natural se apostrofaram violentamente, iniciando uma apoteótica e irracional primeira vez.
Depois de lambidos, mordidos e atiçados os mais recônditos poros da epiderme alagada, os libertinos, resfriando as mais ardentes súplicas libidinosas, que lhes imploravam o fim do inefável suplício, olharam-se e, fitando o membro viril, retardaram a manobra siamesa. Saltando do leito, o carrasco correu a procurar na maleta uma camisa de vénus, com que vestiu o alfange do prazer, ligeiramente ensanguentado. Deitando-se de costas, a Afrodite abriu as coxas e, friccionando a ponta da adaga do sacrifício na vulva ferida, acelerou o vaivém violador, cerrando o dentes. Depois, espalmando as mãos nas nádegas do seu cupido, orquestrou o movimento final, suspirando, gemendo e implorando: assim, assim, vai, vai, isso, mais, mais, ai! ui! ai!, mais, sempre, isso, força, força, mais, ui! ui! mais, amo-te, amo-te, mais, isso, estoira, estoira, ai, meu Deus, David!...
E, pressionado por aquele desvairado e endemoninhado vaivém, o prepúcio dolorido rompeu finalmente o véu virginal, rasgando de vez o hímen virginal com uma explosão seminal que, em jorros intermitentes, se precipitou contra o cautchú e se alojou diante da glande. Cansado, deixou-se cair sobre a presa e, amassando-lhe os seios alagados, beijou-lhe a testa, as sobrancelhas e a face corado, enquanto os seus dedos se entrelaçavam nervosamente. Unidos pela cintura pélvica e pelo olhar vidrado, puxaram o lençol até que o suor secou nos seus corpos exaustos.
Depois, sentindo a virilidade esmorecer aos poucos e a vulva retrair-se, deram-se um beijinho e, soltando-se cuidadosamente, descobriram as manchas de sangue no lençol e no preservativo. E, sorrindo feliz, Marisa arrancou os lençóis da cama, amarrotou-os e deitou-os para um canto do quarto. Segurando o pénis com a mão, David correu para o quarto de banho e retirou a camisa de vénus, retendo o sémen liquefeito com um nó, e deitou-a ao lixo, antes de temperar a água da banheira e mexer no xampu. E, assentando-se num canto a brincar com a nuvem de espuma, esperou que a princesa viesse esconder-se nela e brincar um pouco com ele, para afastar de vez o mal-entendido da véspera, que já era sábado àquela hora. Porém, impaciente como estava, não aguentou mais de dois minutos sozinho. Saindo cuidadosamente da banheira, secou os pés na toalha e foi surpreender a sua deusa de pé, diante do espelho do armário do quarto, com um manto de seda pelos ombros, a pentear a madeixa negra. Obcecado, engoliu em seco e, abeirando-se dela em pés de lã, beijou-a no pescoço. Suspirando arrepiada, Marisa voltou-se e aninhou-se-lhe nos braços, sussurrando trémula:
— Eu amo-te, David!
— Eu...
— Psch! Não digas nada, doidinho! Isso, beija-me, assim, isso, assim...
— Ui! és tão boa, Marisa! Estes lábios, estes seios, esta boca, estes olhos, ui!, se soubesses como adorei aquele teu jeito sensual, quando te contorcias toda e imploravas mais, sempre mais e me agarras...
— Pst!, não digas isso que me envergonhas, David!
— Pronto, tolinha, quero que saibas que nunca mais esquecerei esta noite magnífica e que o lugar que conquistaste no meu coração, ninguém to roubará jamais — disse sério, segurando-lhe carinhosamente o queixo avermelhado.
— Verdade verdadeira, David?
— Duvidas, Marisa?
— Então jura!
— O quê?
— Que me reservarás um canteiro cheio de água no jardim do teu coração, juras?
— Juro! Mas... cheio de água?! Porquê?
— Para o meu coração ter onde ir matar a sede e afogar as mágoas...
— Ah! está bem, fofinha, mas vem que a da banheira arrefece — disse eufórico, puxando-a pela mão.
Felizes, lá foram mergulhar na nuvem de espuma, onde se beijaram e abraçaram e tudo recomeçaram até ser dia. E, quando o sol lhes bateu na persiana para os acordar, as suas almas viajavam calmas e entrelaçadas pelos meandros da inefável quimera, lá nos fiordes do Infinito, onde os corações apaixonados gozavam as eternas delícias da Primavera, a única estação daquelas paragens.
Ao meio-dia, despertando primeiro, Marisa libertou-se cuidadosamente dos braços varonis e, examinando a virgindade perdida, vestiu umas calcinhas macias. Depois, beijando o cupido adormecido, foi espremer um sumo de laranja para o pequeno almoço.

Sábado à tarde, planeado o fim-de-semana, foram a Algés comprar um pijama, umas cuecas de homem e um saco de viagem. À noite, depois do pôr do sol, ainda pensaram ir a uma discoteca do Estoril, mas a febre do desejo subiu vertiginosamente e quase lhes explodiu o coração, esse termómetro do amor. E foi no sofá que iniciaram uma sussurrante litania de mimos e galanteios mútuos, num prelúdio à sinfonia empírica, primorosamente executada no leito cor-de-rosa, onde os sentidos puderam, enfim, saborear o deleite infinitesimal de um concerto transcendental. Perdida nos labirintos da paixão, a nudez perdeu a vergonha da insensatez e a lucidez, transfigurada pelo amor, enlouqueceu de vez. E, adeus tabus, adeus sacrilégios, adeus pecado!...


LMP - Lud MacMartinson - Luxemburgo 1979
Romance inédito e não corrigido !!!

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